Uma paciente com 45 anos de idade, diagnosticada desde os 12 anos com polimiosite, doença degenerativa, pleiteou junto à Suprema Corte do Peru autorização para a prática da eutanásia, procedimento proibido pela legislação do país. Isto porque, apesar de todos os esforços envidados na área médica, não logrou qualquer êxito, a não ser suportar uma fraqueza muscular acentuada e progressiva em razão da doença incurável. A Corte julgou procedente seu pleito em 2022 e, para sua execução, foi elaborado um “Plano e Protocolo de Morte Digna, conforme exigência do Seguro Social de Saúde do Estado". A morte ocorreu no dia 21/4/24, por injeção letal e indolor, com o auxílio de um médico.1
O tema morte começa a fazer parte direta da vida das pessoas e a tendência é procurar uma modalidade mais ética que se coadune com a conveniência humana, que tem a morte como o esgotamento de todo o esforço terapêutico e o esvaziamento das reservas de resistência do paciente. Já que o morrer é inafastável, a tendência é buscar uma alternativa que se enquadre nos limites da razoabilidade ética. Mas o homem, na sua incansável evolução, arrebenta os diques das regras consuetudinárias e ingressa no domínio da etapa final de sua vida. Quer, também em razão da autonomia adquirida por inúmeros direitos assimilados, decidir a respeito das modalidades da morte.
É até difícil aparentemente aceitar a postura da paciente peruana que não se encontrava no estertor da morte e nem mesmo internada em ambiente hospitalar. Além do que, pelo que se sabe, a doença é grave, mas não minou todas as suas forças a ponto de tornar a vida insuportável. Nessa linha de pensamento, qualquer doença degenerativa grave acarretaria idêntico final de vida.
É desejo insculpido na sabedoria popular que toda pessoa tenha uma morte rápida, sem o calvário de qualquer sofrimento, isto após ter vivido intensamente a vida. Sêneca, na antiguidade do Império Romano, já proclamava que morrer bem significa escapar vivo do risco de morrer doente.
O direito de autodeterminação se faz presente no caso acima relatado. A autonomia do ser humano possibilita a tomada de decisões de acordo com sua vontade, com exceção dos casos de colidência com interesses maiores e tutelados legalmente. O morrer com dignidade compreende, em situação de sofrimento interminável, transferir a um profissional da saúde não o direito à sua própria vida, mas sim à renúncia ao direito de continuar vivendo em situação angustiante.
Pode-se até dizer que se trata de uma morte voluntária, consensual do paciente em busca da morte com dignidade, após constatar que não há mais intervenção médica para estagnar a doença ou até mesmo administrá-la. É o momento de abandonar a medicina curativa e ingressar em um procedimento médico regrado pela antiga parêmia do voluntas aegroti suprema lex, no sentido de que o paciente tem o direito de decidir a respeito de sua morte, desde que ela se avizinhe de forma inequívoca. Com a maestria acadêmica que lhe é peculiar, D’Agostino assim se expressou: “Eis porque a vida humana, mesmo a vida doente, mesmo a vida perdida nos labirintos da loucura ou afundada nos abismos do coma irreversível, nunca pode perder a dignidade: porque continua sendo vidas ao lado de vidas, fonte e doadora de significados mesmo quando nem mais o perceba.”2
O divisor agora determinante é justamente a autonomia da vontade do paciente, encartada definitivamente na dignitas hominis. Abre-se, desta forma, um enorme espaço de reflexão no caminhar de uma realidade nova que descortina um século que, obrigatoriamente, para a sobrevivência da humanidade, deve ser destinado ao processo de humanização. Não é de se levar em conta única e exclusivamente a intenção do paciente e sim colher também a manifestação médica no sentido de justificar que não há qualquer perspectiva de tratamento para combater a doença e que o sofrimento será cada vez mais acentuado e insuportável na já existente agonia terminal.
Percebe-se que o caso narrado apresenta uma aproximação entre a eutanásia e o suicídio assistido. Ambos não se confundem. A eutanásia é o ato pelo qual o médico pratica um ato específico para colocar fim à vida humana em estado irreversível e terminal, antecipando a morte do paciente. O suicídio assistido vem a ser a vontade expressa pelo doente, que se encontra em perfeitas condições mentais, de dar fim à sua vida, realizando, ele próprio, os atos para garantir o seu intento, sempre orientado por médico, em razão de uma determinada doença. “No suicídio medicamente assistido, esclarece o sempre lembrado bioeticista Pessini, envolve a participação de um médico, na provisão, mas não na administração direta para ajudar a pessoa a abreviar sua vida”.3
No Brasil, é terminantemente proibida a prática do suicídio assistido e também da eutanásia, ambas modalidades incriminadas no Código Penal.
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1 Disponível aqui.
2 D’Agostino, Francesco. Bioética segundo o enfoque da Filosofia do Direito. Tradução: Luisa Raboline – Rio Grande do Sul: Editora Unisinos, 2006, p. 203.
3 Pessini, Leo. Eutanásia – porque abreviar a vida? São Paulo: Editora Loyola, 2004, p.127.