Leitura Legal

A lei como justa medida

A lei, por sua natureza, não pode abarcar todas as situações. A Hermenêutica, através de interpretações, expande ou restringe seu alcance conforme a necessidade.

17/3/2024

A lei, por si só, quando editada, carrega um mandamento direcionado para atender a um reclamo social. Por mais que pretenda atingir os objetivos propostos, inserindo múltiplas opções em seu texto, jamais conseguirá alcançar todas as possibilidades previstas e até mesmo aquelas que, de forma difusa, habitam seu conteúdo originário. 

Daí que a lei não nasce perfeita e acabada. A Hermenêutica, instrumento interpretativo da mens legis, é encarregada, não só de direcionar o texto legislativo, como, também, ampliá-lo para que possa atender a outras necessidades que guardam certa semelhança ou analogia com o fato apresentado. Nesta linha de pensamento, pelas interpretações literária, gramatical, lógica e teleológica, o intérprete poderá conferir a dimensão necessária à norma, ampliando-a, em alguns casos, para que possa ordená-la e, em outros, restringindo-a para que seja alcançada a justa medida. 

O direito, pela sua própria estruturação interpretativa, revela-se cada vez mais um instrumento voltado para atender as necessidades do homem. Vale-se da lei, que estabelece os parâmetros permissivos e proibitivos, porém, não se prende a ela de forma servil e sim, com a autonomia que lhe é peculiar, alça voo em busca de uma verdadeira integração entre a norma e o fato perquirido, avizinhando-se da realidade pretendida. Pode-se até dizer que a lei é uma ficção, enquanto sua aplicação na medida certa depende unicamente da forma pela qual será interpretada.

Diz-se, e com muita razão, que o Direito vem da mesma linha genética da filosofia. Nessa, o homem, pela sua sabedoria e experiência, aponta os princípios éticos e sociais que devem reger a vida em comunidade. Naquele, é a articulação de todas as condutas humanas catalogadas em um regramento, tendo como base as recomendações filosóficas.

A lei, enquanto ferramenta, é um instrumento social de enorme valia. Justifica-se por si só, vez que dita as regras que devem ser observadas no relacionamento entre as pessoas, tudo visando um convívio social harmônico. Pode até ser considerada hostil, mas é necessária para que o homem possa viver numa sociedade adequadamente ordenada. Porém, apesar de trazer uma regra mandamental, vem despojada de sentimento.

A lei é ordem e uma boa lei é uma boa ordem, já sentenciava Aristóteles. É um corpo sem alma e cabe ao intérprete fazer o ajustamento adequado, cum grano salis e a necessária dose de bom senso. É um bólido que deve ser teleguiado por técnicos que tenham conhecimento de sua potencialidade: se não for feito o ajustamento do alvo, o impacto em local não apropriado pode ser desastroso. 

Para evitar transtornos sociais surge a necessidade de se fazer uso da Hermenêutica. Se o operador do direito terminar a leitura do texto legal e aplicá-lo ao caso concreto, estará simplesmente realizando uma operação sistemática, praticamente matemática, sem levar em consideração a elasticidade escondida nas palavras da lei, com o consequente fiat justitia, pereat mundus. Aplica o texto frio e gélido, sem qualquer riqueza de conteúdo, como pretendia Justiniano, com seu Corpus Juris.

Se, porém, contornar o biombo que o esconde e ingressar no cerne da norma, descobrirá a riqueza nela contida, possibilitando alcançar situações que, até mesmo originariamente, não estavam contidas na mens legis. E a ciência Hermenêutica propõe não só a compreensão de um texto, mas vai muito além, até ultrapassar as barreiras para atingir seu último alcance. “Quando, argumenta com toda autoridade Ferraz Júnior, dizemos que interpretar é compreender outra interpretação, (a fixada na norma), afirmamos a existência de dois atos: um que dá a norma o seu sentido e outro que tenta captá-lo”.1

A lei vem expressa por palavras, nem sempre correspondendo à real intenção do legislador. “A palavra, já advertia Maximiliano, é um mau veículo do pensamento; por isso, embora de aparência translúcida a forma, não revela todo o conteúdo da lei, resta sempre margem para conceitos e dúvidas; a própria letra nem sempre indica se deve ser entendida à risca, ou aplicada extensivamente; enfim, até mesmo a clareza exterior ilude; sob um só invólucro verbal se aconchegam e escondem várias ideias, valores mais amplos e profundos dos que os resultantes da simples apreciação literal do texto”.2

A lei, desta forma, não vale pelo seu frontispício e sim pelo seu conteúdo. É uma porta semiaberta convidando o intérprete a penetrar em seu interior e de lá garimpar todas as riquezas necessárias para atendimento das necessidades do ser humano. E, quanto mais for retirado, melhor atingirá sua finalidade, em razão da elasticidade interpretativa que possibilita a criação de um amplo leque de benefícios. De nenhuma valia a lei que se esgota em si mesma, pois atende necessidade única, e também em uma única oportunidade. 

A Hermenêutica, por sua vez, coadjuvante que é, não carrega somente um embasamento filosófico, mas retrata, na realidade, a interpretação da própria vida, visto que procura sempre o caminho da melhor e mais justa solução social. Pode-se até dizer que ela, por ser uma ciência que tem por base a finalidade teleológica, abre valas para desvendar opções e após escolher a que melhor se ajusta ao caso concreto.

__________

1 Ferraz Júnior, Tércio Sampaio. A ciência do direito. São Paulo: Atlas, 2006, p. 72.

2 Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 29.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Coordenação

Eudes Quintino de Oliveira Júnior promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde e advogado.