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O xenotransplante que se avizinha

A ciência médica avança rapidamente, buscando meios para melhorar a qualidade de vida e saúde humana. Observando o princípio da Beneficência da Bioética, visa maximizar resultados positivos e minimizar eventuais contrapartidas. O campo do transplante de órgãos destaca-se não apenas pela precisão cirúrgica, mas também pela crescente longevidade alcançada.

12/11/2023

A ciência médica progride a passos longos e, com o dinamismo que lhe é particular, alça voos inimagináveis bem próximos da ficção científica. O propósito que move tamanha especulação é buscar mecanismos, instrumentos e medicamentos para que o ser humano possa encontrar uma qualidade de vida referendada pela boa saúde. E é salutar que nesta peregrinação seja observado o princípio da Beneficência da Bioética para buscar sempre os melhores resultados, maximizando os que tragam dividendos positivos, assim como minimizar aqueles que, por uma circunstância ou outra, possam produzir adventos contrários.

Uma das áreas da medicina que vem se destacando com celeridade é justamente aquela relacionada com o transplante de órgãos, tecidos e partes do corpo humano. Não só com relação à precisão cirúrgica como também pela longevidade alcançada.

Ocorre que é inevitável o problema da escassez de órgãos humanos, fazendo com que muitos pacientes, em estado delicado de saúde, fiquem aguardando durante longo tempo nas filas dos transplantes a oferta de algum órgão que seja compatível. Isto também se deve porque não há, no Brasil, uma política de divulgação eficaz e penetrante em todas as camadas sociais para que os cidadãos saibam que a doação de órgãos poderá ser comunicada em vida aos familiares e, após sua morte, a autorização somente será ofertada pelo cônjuge ou parente maior de idade, obedecida a linha sucessória reta ou colateral, até o segundo grau, inclusive, de acordo com o artigo 4º da lei 9.434/97.

Daí que, diante desta restrição, o homem, usufruindo de toda a tecnologia até então conquistada, iniciou pesquisas envolvendo animais como doadores de órgãos para receptores humanos, em razão da possibilidade da preparação e manipulação prévia dos órgãos para evitar uma possível rejeição após o procedimento.

É o chamado xenotransplante, que na precisa definição de Marcelo Coelho é “o transplante de um órgão, ou tecido, ou células de um animal a outro de espécie distinta e é uma das grandes promessas da medicina para suprir as necessidades de órgãos, tecidos e células transplantáveis”.1 Não que a notícia cause estranheza – levando-se em consideração a evolução da transplantação que vai ganhando espaços até então desconhecidos - mas sim pela exemplar conduta científica e o resultado atingido.

Animal transgênico é aquele que experimentou mudança em seu patrimônio genético, em consequência da inoculação de um ou vários genes humanos com a finalidade de compatibilizar a realização de transplantes. Tal prática hoje já é uma realidade no meio científico, principalmente com a utilização de porcos transgênicos, cuja anatomia de órgãos é bem semelhante à dos humanos. Não se trata de criação de quimeras da mitologia grega, representada pela cabeça de leão, corpo de cabra e rabo de serpente, e sim de experimentos científicos voltados para proporcionar benefícios de saúde para o ser humano.

A legislação brasileira a respeito da experimentação animal permite a utilização de animais, desde que não sofram dor e que os resultados pretendidos e obtidos tragam ganho à vida e à saúde humana e animal. A lei nº 11.794/2008 estabelece o procedimento para o uso científico dos animais, inclusive, quando for necessária, a morte por meios humanitários, com o mínimo sofrimento físico ou mental, com o rigoroso controle das Comissões de Ética no Uso de Animais (CEUAs).

A título de ilustração, nos Estados Unidos, no ano de 2022, um paciente com 57 anos de idade, portador de doença cardíaca terminal, foi submetido a um procedimento e recebeu um coração de porco geneticamente modificado, ofertando, para tanto, seu consentimento em um processo ainda em linha de pesquisa, com riscos e benefícios desconhecidos.2

Qual não foi a surpresa quando o coração funcionou sem a rejeição inicial e só parou de bater dois meses após o xenotransplante?

É de conhecimento público, pelas informações veiculadas pela Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, que o Brasil goza de destaque mundial na realização de transplantes de órgãos, apesar ainda da baixa taxa de doadores efetivos e da consequente diminuição ocorrida durante o período pandêmico. É de se esperar que o estudo anunciado, estribado no melhor embasamento científico e ancorado pelo pensamento bioético, proporcione uma acalentadora esperança para a humanidade.

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1 Marcelo Coelho, Mario. Xenotransplante – ética e teologia. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 56.

2 https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60682956.

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Coordenação

Eudes Quintino de Oliveira Júnior promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde e advogado.