O conceito social da medicina não se resume exclusivamente na competência e na excelência do serviço prestado pelo profissional da ars curandi, mas envolve, também, relações interdisciplinares com outras ciências visando atender aos reclamos advindos, não só da transformação social, como os resultantes dos incessantes avanços tecnológicos, que acarretam, inevitavelmente, implicações éticas, bioéticas, jurídicas, políticas e outras mais. No atual estágio da medicina - que antevê um futuro com considerável reestruturação nos cuidados médicos e na práxis dos profissionais - destaca-se a relevante função da Bioética.
Assim é que as novas tecnologias, que a cada dia vão se acumulando na área da saúde - quer sejam experimentais ou não - vão produzindo realidades diferentes no mundo exterior, provocando reflexo imediato no homem, seu destinatário exclusivo. Kant já traçava que o homem é o fim em si mesmo e não é recomendável, pelo ideal hipocrático, promover a artificialização do ser humano e sim buscar um bom sinalizador para preservar a dignidade existente na pessoa individualizada, conforme preconiza a Constituição Federal.
Daí que surge a Bioética com seu ideal humanista como um espaço de reflexão congregando pessoas com diversas formações, não para conter o progresso técnico-científico, que é necessário e salutar, e sim direcioná-lo para acumular benefícios para a humanidade, tendo sempre em relevo o primum non nocere. A Bioética, desta forma, proporciona debates a respeito de temas atuais e provocativos a respeito de realidades até então desconhecidas e inéditas.
Tendo como foco as questões de Bioética presentes no dia a dia das instituições e dos profissionais de saúde, principalmente aquelas que causam inquietude acadêmica, o Conselho Federal de Medicina editou a Recomendação 8/2015, incentivando a criação, funcionamento e participação dos médicos nos Comitês de Bioética. Tais colegiados não se assemelham aos Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs), regulamentados pela Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, que cuida do respeito, dignidade e segurança dos participantes de pesquisas científicas envolvendo seres humanos.
O Comitê de Bioética, por sua vez, compreende um colegiado multiprofissional, envolvendo médicos e representantes de diversos setores da sociedade, com o objetivo de auxiliar na reflexão e na solução de questões relacionadas à moral e à Bioética que surgem na atenção aos pacientes. Daí que as funções prioritárias são: a) dispor sobre e subsidiar decisões envolvendo questões de ordem moral; b) sugerir a criação e a alteração de normas ou de documentos institucionais em assuntos que envolvam questões Bioéticas; c) Promover ações educativas em Bioética.
Uma decisão médica – levando-se em consideração a relevância do princípio da autonomia da vontade do paciente - necessita muitas vezes da conjugação de outras vontades para se atingir o pluralismo ideal e necessário para se atingir o princípio da beneficência.
A formação em Bioética por parte do profissional da saúde é de inegável importância, vez que na decisão médica está compreendida também um rol de outros problemas e dilemas, exigindo, desta forma, não só a participação do paciente, seus familiares e outras pessoas, formando um colegiado multidisciplinar com a finalidade de buscar uma solução que seja adequada para a atenção devida ao paciente.
Surge, diante de tal propósito, o Comitê de Bioética como uma plataforma administrativa para receber e analisar os conflitos de ordem ética, moral, religiosa ou de qualquer outra procedência, com a restrição de não impor decisão e nem emitir juízos de valor sobre práticas profissionais. Basta ver que o princípio da autonomia da vontade do paciente ganhou considerável espaço no Código de Ética Médica, como, por exemplo, a deliberação a respeito do final da vida que, às vezes, colide com condutas médicas amparadas pelo princípio da beneficência ou até mesmo vai contra a vontade do representante e dos familiares do paciente.
Isto porque os fatos científicos, em certos momentos, se entrelaçam com contornos sociais aparentando uma certa colidência na regulação ética das práticas humanas e exigem uma atuação compartilhada de um grupo que tenha sólida formação em humanidades, para extrair uma postura que seja considerada adequada e recomendada ao caso. Pode-se dizer que aí reside a marca identitária da Bioética e seu papel interventivo diante de um dilema que exige uma convergência de respostas. É a ética cívica indispensável para uma sociedade que avança destemida para um futuro que se guiará pelos mais complexos progressos biotecnológicos na área da saúde.