Leitura Legal

Doação de órgãos presumida

A nova tendência legislativa é fazer prevalecer a doação presumida post mortem também conhecida por "silêncio-consentimento" de órgãos e tecidos, aquela em que a pessoa em vida faz uma declaração para ser realizada após a morte.

17/9/2023

Com o advento da pandemia ocorreu uma expressiva queda na doação de órgãos e, consequentemente, um acentuado declínio na realização de transplantes, além de aumentar consideravelmente a lista de espera para o procedimento. O Brasil, assim como outros países, experimentou uma redução de seus índices e procura uma fórmula mais adequada para incrementar, a curto prazo, medidas que possam dar continuidade à invejável projeção alcançada antes do período pandêmico.

Agora, recentemente, fato novo veio à tona com o bem-sucedido transplante de coração a que foi submetido o apresentador Fausto Silva. A população acompanhou detalhadamente todo o caminhar progressivo do paciente até receber o órgão doado e a posterior alta hospitalar. A conclusão outra não foi a não ser aplaudir tal prática que tem eficácia mais do que comprovada.

Ficou evidenciado que o homem quer, a todo custo, prolongar sua vida. Pode até ser uma vocação natural procurar viver mais e, para tanto, corrigir os defeitos para se atingir uma existência mais rica, voltada para valores espirituais, de liberdade, da própria dignidade humana, de solidariedade social. É uma eterna recriação. A medicina detecta o órgão doente, e, em seguida, através de uma intervenção reparadora-destruidora-substitutiva, consegue manipular um órgão são e recolhido de outro organismo, corrigindo aquele comprometido na sua funcionalidade.

Na sequência, como se tudo fosse orquestrado, alguns projetos de leis que gravitavam em torno do tema, ganharam espaço, principalmente aqueles relacionados com a doação de órgãos presumida, que já fez parte do texto original da lei 9.434/97, oportunidade em que admitia a possibilidade da doação presumida de órgãos e tecidos, devendo o cidadão fazer constar da sua Carteira Nacional de Habilitação se era ou não doador. A lei 10.211/2001, no entanto, alterou esta opção e prevalece agora somente a vontade do cônjuge ou parente até o segundo grau. Quer dizer, o desejo manifestado anteriormente pelo cidadão a respeito da utilização ou não das partes de seu corpo e órgãos, não mais se concretiza e prevalece o ditado pelos interesses dos familiares ou responsáveis

A nova tendência legislativa é fazer prevalecer a doação presumida post mortem também conhecida por “silêncio-consentimento” de órgãos e tecidos, aquela em que a pessoa em vida faz uma declaração para ser realizada após a morte. Como a que prevalece em alguns países. Na Espanha, por exemplo, a pessoa já nasce sendo doadora de órgãos e qualquer restrição em contrário, deve constar de documento de uso pessoal.

A nova proposta faz prevalecer o princípio da autonomia da vontade do paciente, um dos sustentáculos da Bioética. Da mesma forma em que, no tratamento terapêutico prevalece a autonomia do paciente, regida pelo princípio da autodeterminação, a disposição do corpo, suas partes e órgãos ficariam, com igual razão, ao indivíduo. Uma vez que o corpo a ele pertence, poderia direcionar a finalidade que julgar conveniente, principalmente quando se encontrar lúcido e consciente, diante de uma futilidade terapêutica.

Mas, na realidade, a pessoa não exerce com exclusividade a propriedade de seu corpo. Assim, mais uma vez, ocorre a prevalência do interesse estatal, em detrimento da vontade individual do cidadão. Não se trata de uma regra de proibição, mas sim de disciplina do procedimento. Pretender prevalecer sua escolha em doar os órgãos a determinada pessoa post mortem, não terá nenhuma eficácia, pois a vontade que predomina é a do Estado, que regulamentará e indicará o paciente a ser beneficiado. Não é também uma forma de “estatização dos cadáveres”, mas sim um gerenciamento para uma correta distribuição dos órgãos e tecidos humanos às pessoas cadastradas e que aguardam um transplante para ter chance de uma vida digna.

Enfim, como o bom vento vai inflando a esperança  da comunidade, o momento é propício para a aprovação legislativa da proposta.

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Coordenação

Eudes Quintino de Oliveira Júnior promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde e advogado.