O Código de Processo Penal foi promulgado em 1941 e, durante sua longa trajetória de vigência, vários institutos foram modificados e alterados com a intenção de atualizá-lo e, principalmente, adequá-lo às diretrizes da Constituição Federal de 1988. Isto demonstra que a legislação processual penal, apesar de condensada em um vetusto código, necessita constantemente de leis esparsas justamente para que as novas construções jurídicas tenham espaços para dinamizar as relações processuais, conferindo não só a proteção da sociedade como a prevalência e garantia dos direitos do acusado.
Na sessão do dia 24 de agosto de 2023, a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Rosa Weber, proclamou o resultado do julgamento das quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs 6298, 6299, 6300 e 6305) que questionavam alterações no Código de Processo Penal (CPP) pelo Pacote Anticrime (lei 13964/2019), entre elas a criação do juiz das garantias1.
Destarte, em que pese ser um instituto objeto de inúmeros questionamentos doutrinários, têm-se por necessárias algumas reflexões sobre o juiz das garantias, sem o escopo de se esgotar o tema neste espaço.
Sendo assim, pode-se destacar, inicialmente, que "o juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário" (art. 3-B do CPP).
Ou seja, relevante função emerge ao juiz das garantias para controlar as matérias resguardadas pela cláusula de reserva de jurisdição, isto é, aquelas que somente podem ser apreciadas e concedidas pelo Poder Judiciário (interceptação telefônica, por exemplo).
Ademais, a razão de ser do juiz das garantias repousa, também, no fato de se buscar a imparcialidade do magistrado que irá sentenciar o feito, já que, como regra geral, ele não teria (ou não deveria ter) contato algum com o material probatório produzido na primeira fase da persecutio criminis.
Deste modo, o primeiro entendimento fixado pelo STF é o de que o artigo 3-B do CPP é norma de aplicação obrigatória, tendo todos os Tribunais brasileiros (estaduais e federais, portanto), o prazo de 12 meses, prorrogável por mais 12 meses, a partir da publicação da ata do julgamento, para a adoção das medidas legislativas e administrativas necessárias à adequação das diferentes leis de organização judiciária, à efetiva implantação e ao efetivo funcionamento do juiz das garantias em todo o país, conforme as diretrizes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Outro ponto sensível da questão era o termo processual ad quem do juiz das garantias: até onde atua o juiz das garantias? Qual o ato processual que encerra sua competência jurisdicional?
Essa questão ainda reverbera com intensidade na doutrina processual brasileira, tendo o STF fixado o oferecimento da denúncia como o ato em que se encerra a competência do juiz das garantias.
Logo, pode-se concluir que o recebimento da denúncia já será tarefa do juiz da instrução, que além de analisar a exordial acusatória, deverá também decidir eventuais questões pendentes.
Aqui, propõe-se uma reflexão importante: se o juiz da instrução pode decidir sobre questões pendentes da fase investigativa, tem-se sensível redução da importância dada ao juiz das garantias, data maxima venia. É que será concedido, ao magistrado da causa, a possibilidade de contato direto, íntimo, com a fase investigativa – hipótese que se busca justamente evitar com o juiz das garantias.
De igual modo, em até 10 dias após o oferecimento da denúncia (ou da queixa-crime), o juiz da instrução deverá reexaminar a presença dos requisitos que ensejaram a imposição de medidas cautelares (prisão cautelar ou medidas alternativas).
Neste ponto, o STF afastou a regra que previa o relaxamento automático da prisão cautelar, por excesso de prazo na investigação. Aqui, STF levou ao juiz da instrução a possibilidade de reanálise, fato que também atinge a hipótese protetiva do juiz das garantias.
Com efeito, para manter ou revogar a prisão cautelar (ou medida alternativa), certamente o magistrado da instrução deverá se debruçar sobre os elementos colhidos na fase investigativa, notadamente dentro do prazo de 10 dias após o recebimento da denúncia, momento processual em que sequer foi estabilizada a relação jurídica processual – inaugurada pela denúncia ou queixa.
Mas não é só. Outra questão que também esvazia o juiz das garantias é o entendimento fixado de que os autos de investigação, a partir de agora, devem ser remetidos para o juiz da instrução, obrigatoriamente. Então, a norma processual que previa a permanência dos autos com o juiz das garantias foi declarada inconstitucional.
Sendo assim, o juiz da instrução terá a possibilidade de contato com todo o material probatório produzido na fase investigativa, o que acaba por enfraquecer a proteção idealizada pelo instituto do juiz das garantias.
Seguindo o tema, o STF fixou entendimento de que o juiz de garantias não será instituído nos processos de competência originária do STJ e do próprio Supremo; aos processos de competência do Tribunal do Júri; aos processos relativos à violência doméstica e familiar, bem como às infrações de menor potencial ofensivo.
Em todas as demais esferas de competência, incluindo-se a eleitoral, haverá – obrigatoriamente – a atuação do juiz das garantias.
Quanto às investigações criminais conduzidas pelo Ministério Público, o STF entendeu que elas devem ser submetidas, obrigatoriamente, a controle judicial. Desta forma, fixou o prazo de até 90 dias para que os representantes do MP encaminhem todos os PICs (Procedimentos Investigativos Criminais) – ou qualquer outro sob denominação diversa – ao juiz natural da causa, ainda que não se tenha instalado o juiz das garantias.
Quanto à audiência de custódia, STF entendeu que ela deve ser, preferencialmente, presencial. A possibilidade da videoconferência deve repousar apenas em casos de urgência, com a devida fundamentação.
Por fim, a figura do juiz contaminado, que era prevista no § 5º, do artigo 157, do CPP (O juiz que conhecer do conteúdo da prova declarada inadmissível não poderá proferir a sentença ou acórdão) foi declarada inconstitucional, o que reforça o esvaziamento do instituto ora estudado.
Em apertada síntese, é o que se extrai do julgamento do STF. Outros pontos, menos polêmicos e mais diretos, também foram objeto de enfrentamento por nossa Suprema Corte, mas que não foram aqui tratados tendo em vista o espaço e a proposta ora debatidos.
Assim, em que pese ser um instituto importante, embora supervalorizado por muitos, o juiz das garantias parece perder um pouco de seu papel, notadamente quanto ao reforço da imparcialidade do magistrado sentenciante, fato que enseja ainda mais reflexões sobre o tema, ainda que já com parâmetros devidamente fixados pelo Supremo Tribunal Federal.
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1 Disponível aqui.