Uma questão que frequenta com certa assiduidade o interesse popular é saber se a colocação de ofendículos1, que são os obstáculos ou qualquer tipo de engenho utilizado para impedir o acesso em residência, como, a instalação de sistema mecânico de defesa à base de eletricidade em cercas dispostas em muros, é prática que se enquadra no âmbito da legítima defesa. Em nome da segurança, as pessoas quebram a estética de sua moradia, constroem muros altos e fincam cercas eletrificadas. Um verdadeiro casulo protetivo do lar. É certo que o tema é de natureza jurídica, mas também atinge a curiosidade popular.
O homem, desde sua origem, impregnado pelo DNA de sua natureza, carrega importante informação a respeito dos direitos que compõem seu arsenal protetivo, sem necessidade de buscar qualquer auxílio legal interpretativo. Assim é que a noção do justo e correto surge com o próprio homem, pois o que assim for considerado é salutar para a vivência harmônica e serve de diapasão para o regramento social. É a regra do direito natural que, após passar por todas as etapas de aprovação, vem a ser materializada em normas contidas no direito positivo. Pode-se dizer que é um direito que transcende todas as regras impostas pelo homem, pois tem como sustentáculo princípios universais imutáveis que jamais poderão ser confrontados, uma vez que giram em torno da essência e da dignidade do ser humano.
Nesta linha de pensamento a prescrição de não agredir ou matar o próximo, exempli gratia, carrega um preceito solidificado que seria até inconcebível inseri-lo no rol de regras proibitivas estabelecidas pela legislação. Mas assim deve ser o procedimento porque o homem também criou a autodefesa como uma justificativa da conduta contrária à regra convencional.
O direito codificado é um conjunto de regras firmado por uma convenção social que visa atender a um critério de justiça estabelecido pelo próprio homem, ser gregário que é. Mas tais valores socioculturais, obrigatoriamente, devem carregar os padrões mais singelos e simples da convivência humana, com os direitos e obrigações que foram catalogados pelo homem desde seus primórdios.
O direito de defesa insere-se neste rol. Compreende-se aqui a defesa de qualquer direito consagrado legalmente, que pode ser a vida, liberdade, segurança, patrimônio e outros, desde que seja para repelir uma agressão injusta, atual ou iminente, com a utilização moderada dos meios necessários. A legítima defesa não se caracteriza pelo legítimo ataque e sim pela franquia concedida pelo legislador para que o cidadão repila a agressão na defesa do bem juridicamente tutelado.
Não há nenhuma dúvida de que a propriedade é um bem jurídico e como tal deve ser defendida pelo Estado, em sua função preventiva, ou até mesmo pelo proprietário. Não se exige do último que monte guarda ou se posicione durante todos os dias e noites em situação de defesa, que compreende aqui a sua própria, a de seus familiares e de seu patrimônio. Necessitas non habet legem (diante da necessidade não prevalece a lei), já preconizava o Direito Canônico. Pode sim eleger mecanismos para evitar eventual agressão ao seu direito, desde que consentâneos ao bom senso e à moderação dos meios. Badaró, citando um antigo parecer de Francisco Mendes de Pimentel, com toda propriedade, antevendo uma situação futura de uma sociedade com expressiva violência, observa que "a defesa preventiva não pode ser usada inconsideravelmente, mas proporcionada ao risco da agressão, vez que engenhos mortíferos só se admitem contra assaltantes perigosos, roubadores terríveis (thieves and burglars), não se justificando em prevenção de simples gatunos, de meros transgressores (trespassers) da inviolabilidade domiciliar sem ânimo facinoroso (felonious intent)".2
Seria a chamada legitima defesa preordenada ou antecipada, que tem por objetivo repelir a injusta invasão. Mas, não se pode negar que, dependendo da apresentação da ofensa, há também uma acentuada adequação à excludente do exercício regular de um direito.
Na realidade, observando as duas situações, conclui-se sem muita dificuldade, que o agente pode instalar em sua casa o mecanismo que considerar necessário e conveniente, dentre aqueles permitidos, para proteger seus bens. A instalação, por si só, recomendada que seja visível no sentido de advertir aquele que desconsidera a propriedade alheia, é considerada como previdência de defesa, uma ação visando coibir a possibilidade e a probabilidade de uma possível agressão ao seu direito, e não um revide. Aconselha-se ao defendente que tome também a cautela necessária para alertar as pessoas a respeito do instrumento defensivo, pela afixação de placas escritas ou sinalizadas indicativas do perigo. Nem todas as pessoas agem com o intuito criminoso, como a criança que pretende pular o muro para apanhar a bola que caiu no quintal da residência.
Diante da consideração ora feita nada mais justo do que rotulá-la de exercício regular de um direito. E, acobertado por tal excludente, não se exigirá do defendente os requisitos da injusta, atual e iminente agressão. Sem falar ainda na proporcionalidade do revide, que pode não se submeter aos parâmetros da defesa suficiente, apesar de que o exercício deve ser "regular", obedecendo aos índices variáveis da moderação. A prevalecer tal entendimento é de se arrematar que o legislador concedeu alforria ao proprietário para causar dano a outrem, possivelmente muito além do que aquele que iria experimentar.
Enquadrar a defesa antecipada na esfera da legítima parece mais coerente e condizente com o sistema penal brasileiro. Há o permissivo legal para a instalação dos meios mecânicos que irão deflagrar sua força operante no instante da agressão, oportunidade em que poderá será avaliada a excepcionalidade da defesa, pois a engenhoca somente produzirá resultado no momento do ataque e não quando foi instalada.
É óbvio que, se o morador, valendo-se do pretexto de defender sua moradia, instalar uma cerca eletrificada com uma voltagem considerada mortal, extrapola o exercício de seu direito e responderá dolosa ou culposamente pelo excesso. A permissão concedida cessa com o objetivo pretendido, qual seja, o de impedir o acesso à residência. Toda cautela se faz necessária para a avaliação da defesa e de sua proporcionalidade em cada caso. Assim, não se pode falar em culpa consciente se o agente não previu o resultado morte, que fica totalmente afastado de sua linha de volição. Mas, por outro lado, é de se observar também que, se o agente prevê o resultado morte e com ele se satisfaz, incide no dolo eventual.
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1 Offendiculum ou offensaculum, no Direito Romano, com o significado de obstáculo, tropeço, impedimento.
2 Badaró, Ramagem. Delitos sem criminalidade. São Paulo: Editora Juriscredi Ltda., 1972, p. 42.