Uma mulher foi processada pela prática do crime de aborto perpetrado pela gestante (autoaborto), tendo sido inclusive pronunciada para ser julgada pelo tribunal do júri como incursa na sanção prevista no artigo 124 do Código Penal. Inconformada, a defesa impetrou ordem de habeas corpus junto à 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça que, por unanimidade, trancou a referida ação penal em razão da nulidade das provas produzidas no processo.1
Em suscinto relato, a gestante passou mal e procurou auxílio de um hospital, oportunidade em que foi atendida por um médico que, inicialmente, suspeitou que ela tivesse ingerido medicamento abortivo. Daí que, após conclusão posterior, solicitou o concurso da Polícia Militar, além de entregar o prontuário da paciente à autoridade policial para comprovar seu relato e, por tanta informação, foi arrolado como testemunha acusatória na fase processual.
O Código de Processo Penal faculta a qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de crime em que caiba ação pública, que é o caso do abortamento, poderá, verbalmente ou por escrito, comunicar o fato à autoridade policial, que irá instaurar inquérito, se procedente a notitia criminis. Assim, a vizinha da gestante teria legitimidade para fazer a narrativa do fato delituoso à autoridade. O médico que atendeu a gestante no hospital, não.
A relação médico-paciente, além de criar um vínculo obrigacional, vem acobertada pela confiabilidade que deve orientar as partes envolvidas. No instante em que a paciente foi atendida e que o médico constatou a presença de medicamento abortivo, tal fato, por si só, elege o profissional como depositário e guardador de seu segredo. Tais informações são imprescindíveis e devem ser utilizadas somente para providências em favor da paciente, permitindo a realização de exames clínicos, obstétricos e complementares, indicados para o caso. Tamanha é a importância do sigilo médico que, mesmo que o fato seja de conhecimento público ou até mesmo que o paciente tenha falecido, o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal.
A preservação da confiança da paciente que procurou um atendimento médico de urgência, mesmo que o fato gerador seja considerado ilícito, jamais poderia ser quebrada, por se tratar de circunstância de caráter íntimo e direcionada para uma prestação de serviço mais eficiente e não pode provocar, em contrapartida, a exposição pública e submeter a pessoa que foi atendida a uma investigação penal.
O Código de Ética Médica (resolução CFM 2217/2018), que contém as normas que devem ser seguidas pelos profissionais, em seu artigo 73 é taxativo ao afirmar que é vedado ao médico: "Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente."
Tanto é que o Código Penal, em seu artigo 154, erigiu à categoria de crime a revelação, sem justa causa, de segredo de que o agente tenha ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão e cuja revelação possa produzir dano a outrem. É importante observar que a definição de segredo no Código Penal corresponde a todo fato cuja divulgação a terceiro possa produzir um dano para seu titular. A intenção da lei é fazer prevalecer a confiança pública depositada no profissional da saúde, justamente para que seu serviço possa ser executado com toda segurança, presteza, sem qualquer atropelo coativo. Preserva a vida privada e a intimidade do paciente, expressões blindadas pela Constituição Federal e Código Civil para resguardar o foro íntimo como o asilo inviolável do cidadão, nos moldes do peace of mind (paz de espírito) do direito americano. Assim, com a divulgação do segredo quebra-se o pacto convencionado entre as partes e a publicidade indevida passa a representar uma invasão à vida privada da paciente, acarretando não só a inconveniente investigação policial e posterior persecução judicial, como, também, a intranquilidade do espírito pela intromissão alheia.
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1 Disponível aqui.