Machado de Assis, com sua sensibilidade descritiva aguçada, mestre da observação psicológica, romântico e parnasiano-realista, querendo satisfazer uma curiosidade a respeito da influência do sangue no ser humano, fez uma incursão na área do xenotransplante. Pela experiência narrada, Stroibus e Pítias, dois amigos filósofos e cientistas, descobriram que se a pessoa ingerir o sangue do rato irá tornar-se ratoneiro, da coruja, sábia, da aranha, arquiteta, da andorinha, viajante, da rola, fidelidade conjugal, do pavão, vaidade. Tomaram o sangue de rato. Foram presos na corte de Ptolomeu e condenados à morte por seguidos furtos de raras obras literárias da Biblioteca de Alexandria.1
É certo que a ficção científica nunca foi o campo preferido do Bruxo do Cosme Velho, mas faz ver que o homem sempre se interessou por aventuras biológicas relacionadas com o sangue. Tamanha verdade que a própria ciência médica entabulou os procedimentos envolvendo transplantes sanguíneos com inquestionáveis sucessos para a saúde humana. E assim é possível caracterizar o homem como proprietário de um imenso latifúndio chamado corpo humano e, ao mesmo tempo em que representa um patrimônio individualizado, carrega a semente universal, que irá proporcionar a continuidade da humanidade.
A Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (SES) realiza a campanha Fevereiro Laranja, que tem com referência o Instituto de Câncer do Estado (ICESP), a respeito da conscientização das leucemias e a doação de medula óssea.
Referida doação é sempre a título gratuito, em razão do disposto no artigo 199 § 4.º da Constituição Federal e da lei 9.434/97, em seu art. 1º. Percebe-se, pelo relato legislativo, que a pessoa não divide com o Estado a legitimidade de doar sua medula óssea e pode fazê-lo a quem lhe aprouver, prevalecendo sua autonomia.
Observa-se que a solidariedade do povo brasileiro vem crescendo anualmente e, de forma espetacular, o número de pessoas cadastradas como doadoras de medula óssea. Em pouco tempo o Brasil atingiu patamar mundial relevante e é detentor de lugar de destaque no banco de doadores de medula óssea.
A medula óssea é um tecido gelatinoso encontrado no interior dos ossos, local onde se alojam as células-tronco, responsáveis pela produção das células sanguíneas. Geralmente o doador é procurado na família. Se a busca não der resultado positivo, faz-se a consulta ao Registro Nacional de Doadores Voluntários de Medula Óssea (REDOME) que, por sua vez, age articulado com o cadastro mundial, sendo as buscas realizadas simultaneamente no Brasil e nos bancos internacionais. Assim, quanto maior o número de pessoas inscritas, maior a possibilidade de se encontrar doador compatível.
A margem de probabilidade de encontrar doador 100% compatível é muito difícil, pois depende em grande parte da miscigenação, que no Brasil é muito diversificada. Porém, com o surgimento de novas técnicas sobre histocompatibilidade, é possível o transplante com doadores parcialmente compatíveis.
O Registro Nacional de Doadores Voluntários de Medula Óssea, órgão ligado ao Sistema Único de Saúde (SUS) e de administração direta do Instituto do Câncer (INCA), é responsável pela captação e identificação dos doadores, buscando, cada vez mais, ampliar o número de voluntários. O interessado deve procurar pelo hemocentro da cidade em que reside ou da região, ter entre 18 e 35 anos de idade e gozar de boa saúde. Antes a idade máxima era de 55 anos, mas a portaria MS- SAES 685/2021, reduziu para 35 anos, observando que as pessoas já cadastradas antes de junho de 2021, não são atingidas pela nova faixa etária. No ato é coletada uma pequena quantidade de sangue para a correta classificação.
O material coletado irá determinar as características genéticas que são exigidas para a compatibilidade entre doador e receptor, por meio de um sistema que realiza o cruzamento de informações entre ambos, visando à realização do transplante. Em caso de compatibilidade, o doador será comunicado e, se concordar, será submetido a exames complementares. Daí a necessidade de se fazer a atualização constante do cadastro.
Se o doador for considerado compatível com algum paciente que necessita do transplante, será convidado para participar do procedimento, que terá lugar em centro cirúrgico, após criteriosa avaliação médica. O ato médico é invasivo e se resume na retirada do sangue do interior dos ossos da bacia, mediante punções e, na sequência, faz-se a substituição da medula óssea doente pelas células normais coletadas. A recomposição da medula se dá em menos de um mês aproximadamente, sendo que a pessoa pode doar mais de uma vez, respeitando o prazo de seis meses para nova retirada. Quando se tratar de doação feita por adolescente, é exigido um termo de autorização assinado por um dos pais ou pelo responsável legal.
É, sem dúvida, um ato de indizível solidariedade, revelador de um sentimento humanitário digno de todo respeito e admiração, demonstrando que a natureza humana proporciona o bem-estar àquele que é saudável e acode o vulnerável com os recursos do corpo humano alheio. Tamanha doação não permite que a pessoa possa se cadastrar para servir um paciente específico, com exceção do procedimento aparentado, mantendo-se preferencialmente o anonimato entre o doador e o receptor.
Na realidade a doação é um demonstrativo inequívoco da dignidade da pessoa humana, assim consagrado constitucionalmente, e representa um ato de comunhão, de alteridade, levando-se em consideração que a natureza humana tem como sustentáculo o altruísmo. O sangue que circula no corpo ou se aloja na medula óssea de uma pessoa, tem compatibilidade para se transferir para outro corpo e restaurar uma vida atingida por doenças que afetam as células, como as leucemias. É, por um lado, uma doação representando um gesto de extrema solidariedade, com rápida reconstituição do material doado e, por outro, a única chance de vida para o doente receptor.
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1 Conto Alexandrino, escrito em 1884.