No atestado de óbito da rainha Elizabeth 2ª consta que ela faleceu aos 96 anos de idade em razão de velhice, "old age" em inglês, e, segundo informações do Palácio de Buckingham, morreu serenamente. A mesma causa mortis ficou constando do registro de óbito do duque de Edimburgo, seu esposo.1
Volta à baila novamente a velhice como causa mortis a constar de documento oficial. É sabido que a Organização Mundial da Saúde, na contramão de direção do alinhamento mundial, tinha incluído a velhice como doença na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), com o código MG2A, com vigência a partir de 2022.
Salientou, no entanto, a OMS que se tratava de uma substituição na nomenclatura, consistente em retirar o rótulo senilidade, já existente (CID10), e substitui-lo por velhice, sem a intenção de transformar esse último em doença. A realidade, no entanto, como é sabido, a CID é um dispositivo de classificação de doença. Assim, para uma pessoa no Brasil que viesse a falecer e tivesse mais de 60 anos de idade, a causa mortis poderia ser apontada como velhice, encobrindo, desta forma, o diagnóstico da doença responsável pelo óbito, como, por exemplo, as cardiológicas, neurológicas, oncológicas e muitas outras. E pior. Acarretaria uma diminuição de pesquisas das doenças relacionadas com os idosos, como o Alzheimer e o Mal de Parkinson.
Diante de tantos argumentos contrários a OMS retirou o código velhice da 11ª revisão do Código Internacional de Doenças e reiterou que, na realidade, a intenção não era transformar a velhice em doença, com capacidade de provocar a morte.
As explicações científicas não trazem justificativas convincentes de que a velhice vem a ser sinônimo de doença, principalmente no momento atual em que se vivencia o crescimento plausível da longevidade, sabendo-se que as gerações infantis de hoje ultrapassarão a faixa dos 100 anos, como resultado de inúmeras pesquisas científicas desenvolvidas com essa finalidade.
Além do que vai evidenciar ainda mais o preconceito em razão da idade e dar azo ao ageísmo, pois qualquer cidadão que no Brasil entrar na faixa de 60 anos de idade, parâmetro biomarcador preconceituoso, mesmo que seja saudável, passa a ser considerado um doente, tanto na convivência familiar como na comunitária, não potencial, mas por ficção etária.
Mas, pode até ser, em sentido contrário, fazendo uma leitura mais voltada para o futuro, que a OMS pretendeu dar uma justificativa aos óbitos ocorridos entre idosos que não ostentam qualquer doença. É até mesmo compreensível tal pensamento, pois a longevidade, que já não é mais uma ambição remota e sim uma realidade incontestável, permite tal conclusão. Basta ver a lei 13.466/2017, que confere prioridade especial aos maiores de 80 anos de idade no atendimento à saúde e outros direitos, com preferência aos demais idosos. O país está cada vez mais sendo habitado pelos idosos. E, em razão de uma longevidade saudável, com boa qualidade de vida, o longevo pode não registrar nenhuma das doenças catalogadas pelo CID.
É interessante observar que na certidão de óbito da rainha, no item 10, quando trata da causa da morte, há alternativas suficientes para agrupar doenças ou comorbidades que contribuíram para o falecimento. O médico, no entanto, que provavelmente acompanhava a paciente há muitos anos, limitou-se a preencher o item 1, letra "a", com "Old Age". E, certamente, assim agiu porque não encontrou qualquer causa ou concausa que justificasse o evento morte.
Dizer que referida certidão não representa a verdade é temeroso, levando-se em consideração que a constatação médica encontrou na velhice a única causa da morte. Há, no entanto, evidente contradição com a interpretação da OMS. Verdadeira antinomia. Um imbróglio de difícil explicação.
Faz lembrar o exemplo clássico oferecido por Eco com relação à frase "Eu estou mentindo", que não pode ser verdadeira e nem falsa: "Se fosse verdadeira, significaria que estou dizendo a verdade e, portanto, é verdade que estou mentindo; se fosse falsa, então não seria verdade que estou mentindo e, portanto, seria verdade que estou dizendo a verdade, logo eu estaria, na verdade, mentindo."2
1 Disponível aqui.
2 Eco, Umberto. Nos ombros dos gigantes: escritos para La Milanesiana, 2001/2015. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2018, p.215.