Leitura Legal

Furto por necessidade e furto insignificante

O CP, que carrega um olhar vetusto e corroído pelo tempo, merece sim uma remodelagem, tanto para captar qualquer lampejo da sensibilidade necessária como para distinguir aquele que faz do crime um verdadeiro meio de vida.

25/9/2022

Tramita pela Câmara Federal o projeto de lei 4.540/21, de autoria da deputada Talíria Petrone e outros deputados, apensado ao PL 1244/11 para uma decisão em conjunto pelas comissões,  que visa alterar o artigo 155,§ 2º do Código Penal para nele acrescentar que não haverá prisão quando ocorrer o furto por necessidade e o furto insignificante, mesmo em se tratando de agente reincidente, cabendo ao juiz aplicar uma pena restritiva de direitos ou multa, além do que, eventual ação penal será de natureza exclusivamente privada, mediante iniciativa da vítima.1

A proposta cria duas modalidades diferentes de furto. A primeira, por necessidade relacionada diretamente com a situação de pobreza ou extrema pobreza do autor que pratica a subtração para saciar sua fome ou para atender necessidade básica de sua família, conduta já conhecida dos meios judiciais como furto famélico, abrangida pelo estado de necessidade, que justifica a excludente. A segunda, relacionada com o furto insignificante, incide diretamente sobre o valor da res furtiva com relação ao patrimônio do ofendido. O parâmetro aqui pode até causar distorções pois tem como base o valor do patrimônio alheio.

Trata-se de uma proposta que visa estabelecer uniformização legislativa a respeito de fatos praticados até com certa frequência e que, apesar de carregarem baixa repercussão social, refletem uma realidade atrelada a uma crise social e econômica. É certo que o Direito vive do fato social e cuida das condutas humanas previamente ajustadas nas regras legislativas Bem dizia Maximiliano que o Direito "nasce na sociedade e para a sociedade; não pode deixar de ser um fator do desenvolvimento da mesma. Para ele não é indiferente a ruína ou a prosperidade, a saúde ou a moléstia, o bem-estar ou a desgraça".2

O projeto merece ser criteriosamente discutido pela sociedade, contando até mesmo com a manifestação popular, que é a vertente mais legitimada para corretamente direcionar uma decisão. A realidade brasileira merece ser estudada com mais acuidade. Os teóricos do Direito no século 18 profetizavam que não é o tamanho do castigo imposto que atua como freio da criminalidade e sim a virtual certeza de que a punição não virá.

A proposta legislativa tem como sustentáculo o pensamento de que o abrandamento da lei é a medida mais eficaz para o tratamento da baixa lesividade. Quer dizer, quanto menor for a intervenção penal – provocando até mesmo certa descriminalização do furto em algumas modalidades – maior e mais benéfica será a resposta social.

Vários abrandamentos legislativos foram feitos como, por exemplo, na Lei dos Crimes Hediondos, que tinha por objetivo uma punição exemplar para aquele que praticasse um delito grave e acabou levando a população a uma frustração coletiva pelo esfacelamento das cláusulas mais rígidas.

A atenuação pretendida já carrega um entendimento da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal que elencou os requisitos de ordem objetiva para aplicação do princípio da insignificância, nos chamados crimes de bagatela, com a mínima repercussão penal e social: a) conduta minimamente ofensiva do agente; b) ausência de risco social da ação; c) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; d) inexpressividade da lesão jurídica.

O projeto de lei apresentado, apesar da preocupação social demonstrada, no entanto, estende o benefício até mesmo para o infrator reincidente. Tal abertura não coaduna com a realidade da política criminal brasileira, que apresenta alto índice de insegurança diante de uma escalada estarrecedora de crimes de conteúdos diversos. O contumaz se sentiria prestigiado pela própria lei a praticar várias condutas irrelevantes, mesmo que separadamente sejam consideradas de valores ínfimos. Concede-se a ele uma espécie de carta de alforria e abre-se um espaço sem qualquer juízo de reprovabilidade e sim de incentivo para prosseguir na empreitada delituosa. O resultado é previsível: fragilizar o sistema penal com o enfraquecimento das poucas medidas protetivas da sociedade.

O atalho pretendido pode desembocar no abismo. Melhor seria a criação de políticas públicas salutares voltadas para a construção de um cenário animador com a inclusão da população nos parâmetros da cidadania, com o consequente acesso ao trabalho, educação, saúde e tudo o mais que integra a dignidade da pessoa humana.

O Código Penal, que carrega um olhar vetusto e corroído pelo tempo, merece sim uma remodelagem, tanto para captar qualquer lampejo da sensibilidade necessária como, também, para distinguir aquele que, aproveitando do flanco aberto na legislação, faz do crime um verdadeiro meio de vida.

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1 Disponível aqui.

2 Maximiliano, Carlos. Hemenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.  137.

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Coordenação

Eudes Quintino de Oliveira Júnior promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde e advogado.