Leitura Legal

Tatuagens e piercings em animais?

Além do crime de maus tratos previsto na lei dos crimes ambientais, o Conselho Federal de medicina veterinária proíbe a realização de cirurgias consideradas desnecessárias ou que possam impedir a capacidade de expressão do comportamento natural da espécie.

24/7/2022

Os animais, com especial relevo para aqueles que participam diariamente do convívio com os seres humanos – quer seja para companhia ou até mesmo para a guarda domiciliar – gozam dos olhares generosos dos nossos legisladores. A causa animal assume um formato defensivo e a tutela vai se ampliando cada vez mais. O convívio entre o homem e o animal revela-se uma harmonização perfeita, um estreitamento que coloca o afeto em primeiro plano, de forma que esta interação vai refletindo com maior intensidade e, em consequência, elevando cães e gatos à categoria de seres sencientes, dotados de emoção e sentimento.

Tanto é que o especismo, recentemente, foi elevado à categoria de crime pelo acréscimo feito ao art. 32 da lei dos crimes ambientais, punindo severamente a prática de abuso, maus-tratos, ferimentos ou mutilação a esses animais, com a aplicação de pena de reclusão de dois a cinco anos, multa e proibição da guarda do animal.

Nos Estados Unidos a tatuagem em cães passou a ser considerada uma projeção da vontade do seu proprietário ou até mesmo uma alternativa diferenciadora de acessório. No Brasil os inúmeros pets atestam que a tendência do brasileiro é cuidar bem de seus animais, não só no item alimentação, como também na higiene e estética, mas não há ainda proibição com relação à tatuagem e aplicação de piercings.

A comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal aprovou o projeto de lei 4.206/20, de autoria do deputado Fred Costa (Patriotas/MG), que proíbe a aplicação de piercings e tatuagens em cães e gatos com a finalidade estética, com acréscimo de um parágrafo à lei 9.605/98, estabelecendo a pena de três meses a um ano de detenção e multa a quem realiza ou permite realizar tais práticas estéticas. O texto agora segue para a votação do plenário.

É de se observar, no entanto, que tal prática não alcança os procedimentos realizados com a finalidade de identificação ou até mesmo de rastreabilidade do animal - cujo manejo é simples e não acarreta estresse ou sofrimento desnecessário a ele – e sim demonstra responsabilidade dos tutores para os casos de desaparecimento, com larga chance de sua localização.

Além do crime de maus tratos previsto na lei dos crimes ambientais, o conselho Federal de medicina veterinária, pela resolução 877/08, proíbe a realização de cirurgias consideradas desnecessárias ou que possam impedir a capacidade de expressão do comportamento natural da espécie.

E reside neste contexto a nova proposta legislativa. O status atribuído aos animais como seres sencientes, sujeitos de direitos despersonalizados, dotados de natureza emocional e passíveis de sofrimento, conforme foi reconhecido recentemente pela lei 14.064/20, faz ver que os animais abandonaram definitivamente a incômoda classificação a eles atribuída pela lei 9.605/98 e pelo CC/02, que os consideravam bens móveis.

Basta ver que, em recente decisão proferida pela 7ª câmara Cível do TJ/PR, foi reconhecido, por unanimidade, o direito dos animais de figurarem como autores de ações judiciais visando pleitear o que a lei faculta, desde que corretamente representados1

É totalmente inadequado qualquer procedimento de origem estética e que venha acarretar sequelas ao animal, principalmente quando afeta o comportamento natural da espécie. Modificar a originalidade constitutiva do animal para que o homem possa satisfazer seus caprichos, formatando-o externamente de acordo com sua intenção, é uma verdadeira ação desumana. Não se trata do exercício de um direito sobre uma propriedade exclusiva porque a própria lei elaborada pelo humano traz as obrigações de cuidado e zelo pelos animais.

O homem, como agente moral, não pode se reservar ao direito de dispor do animal ao seu bel prazer e sim respeitar o valor intrínseco da criatura convivendo com ela de acordo com sua natureza, nos limites do bem estar recomendado.

Sábios os conselhos proferidos por D’Agostino propondo um relacionamento de benevolência que se extrai das teorias dos direitos dos animais e as relações com os humanos: “Ao pregar a extensão da benevolência a todos os seres que têm sensibilidade, acalmam as consciências; como podemos ser malvados, se estamos perorando em favor da causa dos direitos dos animais? Como podemos temer pelo futuro do homem, se nos responsabilizamos também pelo futuro das outras espécies? O que pode existir de inquietante numa ética que renuncia a postular deveres absolutos, quando se trata de uma ética que perora a defesa das criaturas mais fracas? Bons sentimentos, certamente.”2

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1 Disponível aqui.

2 D’Agostino, Francesco. Bioética segundo o enfoque da filosófica do Direito. Tradução de Luísa Rabolini São Leopoldo, RS, Basil, 2006, p. 266.

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Coordenação

Eudes Quintino de Oliveira Júnior promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde e advogado.