A norma penal, a exemplo da dinâmica social, com o passar do tempo, vai experimentando novos ajustes visando fazer a perfeita adequação com a necessidade da coletividade, sua destinatária principal. Às vezes é recomendável burilar parcialmente um artigo de lei em virtude do desgaste do seu tempo de vigência - contemporizando-o com a realidade social –; outras, de forma irremediável, extinguir em definitivo o caráter criminoso do fato com a vigência de uma nova lei que o torna atípico (abolitio criminis) e a consequente aplicação da causa extintiva de punibilidade.
O crime de estupro praticado pelo médico anestesiologista, noticiado pela imprensa nacional, além da conduta ignóbil que causou repúdio e comoção, por figurar como vítima uma mulher sob efeito de anestesia e em trabalho de parto, provocou dúvidas conceituais, principalmente para os jejunos em Direito, a respeito da tipificação do ilícito praticado. Daí que a proposta não é a analisar a conduta do profissional e sim a adequação típica aderente a ela.
O crime de estupro em sua origem, acompanhando sua etimologia (stuprum), carrega duas vertentes em sua definição. A primeira relacionada com a desonra, a vergonha de uma pessoa e a segunda atrelada à agressão sexual para atingir o coito forçado. Esse último conceito prevaleceu e ficou sedimentado para as pessoas comuns que no estupro obrigatoriamente deveria ocorrer a conjunção carnal entre homem e mulher, mediante violência. Porém, nem sempre a vontade popular coincide com a do legislador. Tanto é que tal conceito não é compartilhado por ele que, deliberadamente, inseriu no tipo penal também a prática de outro ato libidinoso, diverso da conjunção carnal.
O Código Penal, que é de 1940, sofreu profundas alterações introduzidas pela Lei 12.015, de 07 de agosto de 2009, principalmente nos crimes contra os costumes, agora denominados crimes contra a dignidade sexual. Novas figuras típicas foram inseridas na formatação penal, dentre elas a junção dos delitos de estupro e atentado violento ao pudor. Pela nova lei incriminadora o núcleo do tipo vem revelado pelo verbo constranger, como era anteriormente, porém, “alguém” e não mais a mulher. Ficou definido da seguinte forma: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. O “alguém” passa a ser o homem ou a mulher.
Desta forma o crime de estupro ganhou uma dimensão mais dilatada pois incorporou ao seu tipo o crime de atentado violento ao pudor. É de se observar, no entanto, que se um homem tocar as nádegas ou os seios de uma mulher, sem o dolo recomendado pela conduta, não estará praticando o crime de estupro, sendo até temeroso fazer a subsunção da norma ao fato nesta situação peculiar. Por isso o legislador, com a intenção de minimizar a conduta, criou um tipo penal intermediário, previsto no artigo 215-A do Código Penal, que é o da importunação sexual: praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro.
Ao lado do estupro convencional, cuja pena é de seis a dez anos de reclusão, o legislador criou outro, denominado estupro de vulnerável. Consiste na prática de conjunção carnal ou outro ato libidinoso com menor de 14 anos ou contra pessoa que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. A vulnerabilidade, em uma conceituação mais apropriada ao Direito, vem a ser aquele estado que, em
razão da idade e de algumas circunstâncias permanentes ou temporárias, a pessoa se vê impossibilitada de exercer os seus direitos em igualdades de condições com as demais. Necessita, portanto, de um cuidado especial do legislador para que possa se equiparar às demais pessoas e, a partir daí, sem qualquer tipo de assistencialismo ou ações paternalistas, possa desenvolver suas capacidades e competências.
No caso específico, tem total aplicação ao caso ora examinado, a expressão “qualquer outra causa” referida pelo legislador, pois a parturiente estava sob efeito de anestésico, fato que, por si só, demonstra sempre a incapacidade ou a fragilidade de alguém, motivada por uma circunstância momentânea. Nesse caso a pena é de oito a 15 anos