Uma mulher trans foi agredida pelo pai que rejeitou sua opção de gênero. O Ministério Público, tomando conhecimento do fato e visando conferir a ela maior proteção, pleiteou a aplicação de medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha, que foram negadas pelo juiz de primeiro grau, assim como pelo TJ/SP, que entenderam que referida lei limita sua aplicação unicamente à mulher biológica.
A 6ª turma do STJ acolheu o recurso e decidiu que a Lei Maria da Penha pode ser aplicada também para a proteção de mulheres transexuais. O ministro relator Rogerio Schietti Cruz foi incisivo ao afirmar: "Este julgamento versa sobre a vulnerabilidade de uma categoria de seres humanos, que não pode ser resumida à objetividade de uma ciência exata. As existências e as relações humanas são complexas, e o direito não se deve alicerçar em discursos rasos, simplistas e reducionistas, especialmente nestes tempos de naturalização de falas de ódio contra minorias".1
A Constituição do Brasil é abrangente e insere em seu texto todas as pessoas como sujeitos de direitos e obrigações, abrigadas pelo princípio da isonomia, além de conferir a elas a expressão da cidadania retratada na dignidade da pessoa humana, erigida como dogma constitucional na estruturação do Estado Democrático de Direito.
O sistema binário estabelecido na legislação – homem e mulher – no sentido de que cada pessoa deve assumir o sexo contido em seu registro, caiu por terra e os próprios tribunais reconhecem a identidade de gênero como uma construção social e consciente em que a pessoa se identifica subjetivamente a um gênero, fazendo aflorar, desta forma, a identidade trans.
A Lei Maria da Penha, além de se apresentar como uma legislação fundamental para coibir a violência no âmbito das relações familiares – considerada uma das formas de violação dos direitos humanos - expandiu-se sobremaneira e alcançou outras tutelas não previstas originariamente em seu núcleo, aparentemente duro. Tanto é que, frequentemente, a norma protetiva vem recebendo ampla interpretação dos nossos tribunais extraindo dela a mens legis mais adequada.2 Desta forma, por alcançar também qualquer ação ou omissão baseada no gênero, basta ver que a tipificação do feminicídio, estendeu seus tentáculos e permitiu abertura suficiente para encampar o direito à diversidade.
É certo que também foram relevantes para a conquista deste direito as decisões proferidas pelo STF na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 132 e na ADIn 4.277, em que houve reconhecimento dos direitos homoafetivos, e a posterior Resolução 175, do Conselho Nacional de Justiça, que instituiu o casamento homoafetivo e a conversão da união homoafetiva em casamento.
O relator já mencionado fez a correta interpretação que é dada pelos tribunais, no sentido de que "gênero é questão cultural, social, e significa interações entre homens e mulheres". Daí que se pode afirmar que é uma questão de autopercepção, totalmente desvinculada dos fatores externos. Sexo, por sua vez, é relacionado com as características biológicas definidoras das genitálias feminina e masculina. Assim, nesta conceituação, o sexo, por si só, não compreende e nem define a identidade de gênero.
É interessante salientar ao tema que o STF, no âmbito da ADIn 4.275/DF, já reconheceu o direito da pessoa transgênero de, independentemente de cirurgia de redesignação sexual, a opção de retificar no cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais, o prenome e o gênero com a finalidade de fazer adequação à identidade autopercebida, conforme dispõe a Resolução 73/18 da Corregedoria Nacional de Justiça.
Desta forma, a decisão comentada em conferir os direitos previstos na Lei Maria da Pena às mulheres trans trilhou as diretrizes recomendadas pelas mais recentes jurisprudências a respeito do tema, no sentido de que a identidade de gênero é diferente daquela que foi designada pelo nascimento e resulta na autoidentificação do interessado e se traduz igualmente na realização de um direito fundamental de complementação da identidade da pessoa.
É certo que a decisão alcança somente o caso julgado, mas nada impede que se torne um paradigma abrindo precedentes para as demais ações ainda em tramitação judicial.
1 Disponível aqui.
2 O Plenário do STF, recentemente, declarou constitucional o artigo 12, incisos II e III da Lei Maria da Penha e, por unanimidade, decidiu que a autoridade policial, compreendendo delegados de polícia e policiais, em caráter emergencial, podem determinar o afastamento do suposto agressor do domicílio ou do lugar de convivência com a vítima quando ocorrer situação de violência doméstica e familiar (ADIn 6.138).