Uma ação judicial intentada recentemente chamou a atenção da comunidade jurídica pelo teor da pretensão deduzida. Um casal manteve um relacionamento em união estável por cerca de dois anos, período em que produziram embriões em uma clínica especializada em reprodução humana, já que ambos pretendiam a procriação. Nesta oportunidade celebram um pacto por eles assinado no sentido de que, finda a união, os embriões seriam descartados.1
O casal veio a se separar e a mulher, algum tempo após, pediu ao ex-companheiro autorização para usar os embriões, pleito que, no entanto, foi-lhe negado. Diante da recusa invocou a tutela jurisdicional justificando que o termo de consentimento assinado pelo casal durante a união estável foi em atendimento à resolução 2294/21, do Conselho Federal de Medicina e não em virtude de alguma lei que regulamentasse a matéria.
Até mesmo para o mais dinâmico operador do direito a causa gera certa perplexidade, pois apresenta-se mais próxima da ficção científica do que da realidade jurídica. Abre-se, diante da inédita postulação, espaço para reflexão a respeito das novas tecnologias que produzem desafios não só para a justiça, mas para a própria humanidade. O Direito, como é sabido, cuida da aplicação e interpretação da lei e essa, por sua vez, deve ter o dinamismo ancorado nas mutações científicas e sociais para solucionar as questões com base nos pilares de sustentação do pensamento moral da sociedade.
O tema é não só de alta indagação jurídica, mas também de interesse bioético. Busca-se, na realidade, conhecer o status do embrião na legislação brasileira. E o avanço da engenharia genética reprodutiva foi tão acentuado que, num repente, a fecundação intraútero, que até então era o critério norteador do início da spes vitae, desloca-se para a manipulação humana extracorpórea com a consequente formação de embriões. É uma nova realidade que se apresenta em razão da evolução da embriologia e da engenharia genética. O casal estéril poderá atingir a procriação com a utilização de componentes genéticos de ambos, de um só ou de nenhum deles.
O embrião produzido artificialmente em placa de Petri, acomodado no interior de tubo de nitrogênio, guarda profunda diferença daquele fecundado naturalmente. A falta do locus apropriado ou do habitat natural para o alojamento demonstra, por si só, a impossibilidade de se atingir a spes hominis, pois no gélido interior que habita, não há qualquer chance de progressão reprodutiva.
Não há dúvidas de que o tema abre um enorme espaço para considerações éticas e jurídicas. O certo é que o Código Civil, promulgado em 2002, ainda sedimentado em um noviciado legislativo a respeito do tema, limitou-se a traçar algumas normas a respeito da presunção que cerca os filhos nascidos durante a constância do casamento e, nesse rol, acrescentou também: os havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; os havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; e os havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.
Silencia-se, no entanto, com relação à destinação dos embriões criopreservados.
Supletivamente, por outra banda, o Conselho Federal de Medicina editou a resolução 2.294/2021, estabelecendo as normas técnicas e éticas do procedimento. No item V, nº 3 - quando trata da criopreservação de gametas ou embriões – é taxativo ao afirmar: “No momento da criopreservação, os pacientes devem manifestar sua vontade, por escrito, quanto ao destino a ser dado aos embriões criopreservados em caso de divórcio, dissolução de união estável ou falecimento de um deles ou de ambos, e se desejam doá-los.”
A Resolução citada é um documento dirigido à comunidade médica para avaliar eticamente a conduta do profissional, com validade interna corporis, inferior, portanto, à lei, que tem o alcance erga omnes. Assim, em tese, o documento assinado pelo casal, representa, de forma inequívoca a vontade manifestada por eles, no sentido de prevalecer o descarte embrionário, em caso de dissolução da união estável.
Tal interpretação abarca também qualquer iniciativa da mulher que cedeu seu material genético de pleitear a cessão dos embriões à clínica responsável pela criopreservação, pois, com base no documento ali arquivado, terá sua pretensão indeferida. O embrião pertence aos genitores e ambos devem se manifestar a respeito do destino a ser dado em caso de não utilização.
Resta aguardar a decisão da Justiça.
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1 Disponível aqui.