A premissa de que todos os seres humanos merecem idêntica atenção e proteção do Estado é verdadeira e se constitui no paradigma constitucional que erigiu a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Assim, sem qualquer exceção, toda pessoa merece tratamento isonômico em razão da sua própria cidadania e quando se deparar com situações aparentemente intransponíveis, a lei vem reafirmar a proclamação constitucional.
O Presidente da República sancionou a lei 14.289/22, que torna obrigatória a preservação do sigilo sobre a condição da pessoa que vive com infecção pelos vírus da imunodeficiência humana (HIV), das hepatites crônicas (HBV e HCV), da pessoa com hanseníase e com tuberculose, nos casos que estabelece e altera a lei 6.259, de 30 de outubro de 1975.
O deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP), relator do PL 7658/14, de autoria do senador Randolfe Rodrigues (PSOL-AP), foi inciso ao afirmar quando da análise do texto: "No Brasil, há cerca de 1 milhão de pessoas que vivem com HIV. Nós temos cerca de 73 mil novos casos por ano de tuberculose e 28 mil novos casos por ano de hanseníase. São pessoas que esperam ansiosas que o fato de ser diagnosticado não signifique a exposição dessa situação, que não comprometa sua situação de trabalho, que não prejudique o trabalho dos profissionais de saúde".1
A novatio legis trata da obrigatoriedade da preservação do sigilo das pessoas atingidas pelas doenças relacionadas, impedindo, de forma taxativa, tanto por parte dos agentes públicos como privados, a identificação dos doentes no âmbito dos serviços de saúde, dos estabelecimentos de ensino, nos locais de trabalho, na administração pública, na segurança pública, nos processos judiciais e na mídia escrita e audiovisual.
Trata-se de uma norma abrangente, que tutela diretamente a intimidade das pessoas que se encontram infectadas pelas doenças mencionadas, com o objetivo de impedir qualquer manifestação discriminatória. A privacidade parece ser a mais ampla proteção, o limite da esfera protetiva, já que se mostra como uma margem que o indivíduo dispõe para filtrar o que deseja tornar público a todos. Isto é, a pessoa detém um conjunto de informações, imagens, vídeos, atitudes suas que somente a ela cabe decidir se as demais pessoas podem delas tomar conhecimento. Uma vez veiculadas, sem a permissão do titular, tem-se a violação da privacidade.
A intimidade, na concepção jurídica, trata-se de um campo discreto frequentado unicamente pelo interessado. É o espaço em que vai encontrar consigo mesmo, sem qualquer acesso à curiosidade privada. Neste espaço pode ser o rei, o bedel e o juiz, conforme o cancioneiro popular, e desfilar tudo que é mais precioso para si, desde a sua crença religiosa até os segredos mais recônditos, sem qualquer risco de invasões arbitrárias e, principalmente, de se chegar ao conhecimento público porque não há qualquer registro materializado. Não há exposição para o mundo exterior.
E vai além. Mesmo na era da mais célere informática, da tecnologia mais apurada, não se permite qualquer invasão no espaço reservado exclusivamente ao titular para retirar as informações que são de seu uso exclusivo.
É de se observar que, com relação à matéria e, especificamente à condição daquele infectado pelos vírus da imunodeficiência humana (HIV), outras providências legislativas protetivas já foram editadas. A lei 9.313/96 confere aos portadores do HIV (vírus da imunodeficiência humana) e doentes de AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) o direito de receber gratuitamente, do Sistema Único de Saúde, toda a medicação necessária durante o período de tratamento. A lei 12.984/14 define o crime e tipifica a conduta de discriminar portadores do vírus da imunodeficiência humana (HIV) e doentes de Aids. A lei 11.199/02, do Estado de São Paulo, da mesma forma, veda qualquer forma de discriminação aos portadores do vírus HIV ou às pessoas com Aids.
Já com relação à pessoa com hanseníase, o Brasil será o primeiro país do mundo a ofertar teste rápido para diagnóstico da doença a ser ofertado pelo SUS, em comemoração ao evento Janeiro Roxo, considerado o mês de combate à doença que, em 2021, registrou expressivo número de casos novos.2
O sigilo, no entanto, não é absoluto e poderá ser quebrado nos casos previstos em lei por justa causa ou por autorização expressa da pessoa acometida da doença e, se for criança ou adolescente, seu representante legal irá dar a anuência mediante assinatura do termo de consentimento informado, com observância às exigências contidas no art. 11 da lei 13.709, de 14 de agosto de 2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais - LGPD).
Nos casos de doença de notificação compulsória, a nova lei altera a redação originária contida no artigo 10 da lei 6.259/75 e determina que a notificação nos casos de agravos à saúde será revestida de caráter sigiloso, o que deverá ser rigorosamente observado pelos profissionais que fizerem a notificação, pelas autoridades sanitárias que a receberem e por todos os trabalhadores e servidores que tenham contato com a notificação.
Em caso, porém, de descumprimento, o agente público ou particular estará sujeito às sanções previstas no art. 52 da lei 13.709, de 14 de agosto de 2018, além das sanções administrativas cabíveis e a obrigação de indenizar a vítima por danos materiais e morais. Se a divulgação do sigilo for dolosa, com a nítida intenção que causar dano e ofensa à vítima, serão aplicadas em dobro as penas pecuniárias ou de suspensão de atividades previstas no art. 52 da lei 13.709, de 14 de agosto de 2018, assim como as indenizações pelos danos morais causados.
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1 "Câmara aprova sigilo sobre condição de pessoa com HIV e hepatites". Disponível aqui.
2 "Com mais de 15 mil novos casos de hanseníase em 2021, Brasil terá primeiro teste rápido no SUS."