Um fato ocorrido em hospital do interior do Estado de São Paulo chamou a atenção da comunidade médica a respeito da decisão proferida pela Justiça em caso de autoaborto. Em breve relato, uma gestante, após realizar manobras abortivas, veio a sentir fortes dores, oportunidade em que foi encaminhada a um hospital e logo entrou em trabalho de parto prematuro, sendo atendida por uma médica. Realizado o procedimento necessário, a profissional declarou à autoridade policial ter encontrado resquícios de medicamento abortivo na vagina da paciente, fato que ensejou a decretação da prisão preventiva da então gestante, que se livrou da segregação provisória pelo pagamento da fiança arbitrada.1
A paciente, após receber ameaças e se ver obrigada a mudar de cidade, intentou ação indenizatória contra o hospital pela quebra do sigilo médico da profissional responsável pelo atendimento e o Tribunal de Justiça, em grau de recurso, condenou o nosocômio a pagar a verba indenizatória de dez mil reais.
O artigo 5º, §3º do Código de Processo Penal, faculta a qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de crime em que caiba ação pública, que é o caso do abortamento, poderá, verbalmente ou por escrito, comunicar o fato à autoridade policial, que irá instaurar inquérito, se procedente a notitia criminis. Assim, levando-se em consideração o fato narrado, o vizinho da gestante teria plena legitimidade para fazer a delação à autoridade policial que, obrigatoriamente, deveria dar início à persecução penal. A médica que a atendeu e realizou o procedimento, no entanto, não está compreendida neste permissivo processual.
Parece até uma incoerência, porém há razões legais para tanto.
A relação médico-paciente, além de criar um vínculo obrigacional, vem acobertada pela confiabilidade que deve orientar as partes envolvidas. No instante em que a paciente foi atendida e que a médica constatou a presença de medicamento abortivo, tal fato, por si só, elege a profissional como depositária e guardadora de seu segredo. Tais informações são imprescindíveis e devem ser utilizadas somente para providências em favor da paciente, permitindo a realização de exames clínicos, obstétricos e complementares indicados para o caso. Tamanha é a importância do sigilo médico que, mesmo que o fato seja de conhecimento público ou até mesmo que o paciente tenha falecido, o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal.
Tanto é que o Código Penal, em seu artigo 154, erigiu à categoria de crime a revelação, sem justa causa, de segredo de que o agente tenha ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão e cuja revelação possa produzir dano a outrem. É importante observar que a definição de segredo no Código Penal corresponde a todo fato cuja divulgação a terceiro possa produzir um dano para seu titular. A intenção da lei é fazer prevalecer a confiança pública depositada no profissional, justamente para que seu serviço possa ser executado com toda segurança, presteza, sem qualquer atropelo coativo. Preserva a vida privada e a intimidade do paciente, expressões blindadas pela Constituição Federal e Código Civil para resguardar o foro íntimo como o asilo inviolável do cidadão, nos moldes do peace of mind do direito americano. Assim, com a divulgação do segredo quebra-se o pacto convencionado entre as partes e a publicidade indevida passa a representar uma invasão à vida privada da paciente, acarretando não só a inconveniente investigação policial como, também, a intranquilidade do espírito pela intromissão alheia.
É certo que o sigilo relatado, compreendendo somente aquele revelado no exercício profissional, não vem revestido de caráter absoluto, pois, em algumas hipóteses, pode ser quebrado, tais como dever legal, justa causa ou autorização expressa do paciente. Mas, no caso presente, encontram-se ausentes tais requisitos.
A preservação da confiança da paciente que procurou um atendimento médico de urgência, mesmo que o fato gerador seja considerado ilícito, jamais poderia ser quebrada, por se tratar de circunstância de caráter íntimo e direcionada para uma prestação de serviço mais eficiente e não pode provocar, em contrapartida, a exposição pública e submeter a pessoa que foi atendida a uma investigação penal. O Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 2217/2018), que contém as normas que devem ser seguidas pelos profissionais, em seu artigo 73 é taxativo ao afirmar que é vedado ao médico “Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente.”
Concluindo, todo o imbróglio foi criado pelo fato de ter a médica feito a revelação do autoaborto à autoridade policial. Daí surgem várias outras situações jurídicas, tais como o erro do médico em acreditar que fosse obrigado a denunciar o fato, o direito da paciente em pleitear indenização cível, a constituição de prova ilícita para a apuração penal, sem falar ainda do processo de cunho ético profissional.
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1 Disponível aqui.