A Constituição Federal de 1988, ao erigir a dignidade da pessoa humana como um dos alicerces do Estado Democrático de Direito, alavancou de forma expressiva e até mesmo obrigatória, a necessidade de se construir uma sociedade justa e solidária, com a consequente erradicação da pobreza, sem preconceito e desigualdade social.
Cabe exatamente nesta cunha a abordagem necessária para a tutela da população de rua, tão presente a olhos vistos, porém marginalizada e rotulada como se fosse pertencente a uma cidadania de segundo escalão. Sem teto. Na casa utópica, com a ironia bem dosada de Vinicius de Moraes, "não tinha teto, não tinha nada, ninguém podia entrar nela não, porque a casa não tinha chão."
É até difícil elaborar uma definição que compreenda a dimensão social dessa categoria que também merece a inserção e o acolhimento social. O decreto 7.053/2009 instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua e assim a definiu: "Para fins deste Decreto, considera-se população em situação de rua o grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória."
Fica evidenciada, desta forma, a vulnerabilidade como a principal característica dessa população que compreende um extenso grupo de risco, como, em uma amostragem rápida, pessoas idosas, pessoas com tuberculose, cardiopatas, HIV/AIDS, gestantes, puérperas, crianças de pouca idade, incluindo bebês, pessoas LGBTQIA+, indígenas e até mesmo imigrantes.
Além do que, pelo que se percebe diariamente, são pessoas de família unipessoal, sem contato com parentes, com estudo até o Ensino Fundamental, sem emprego, vivendo de trabalhos eventuais nas ruas, muitos deles fazem consumo excessivo de álcool e outras drogas, expostos à violência e exploração constantes e desprovidos de itens básicos de subsistência, como alimentação, água potável, produtos de higiene e limpeza.
Sem qualquer dúvida essa população não pode ser considerada invisível e pela sua constante presença, principalmente nas cidades de maior índice populacional, merece a necessária atenção dos gestores públicos. Tanto é que, logo após a deflagração mundial da pandemia, quando o Brasil decretou medidas para o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional (lei 13.979/2020), o Ministério da Cidadania expediu a Portaria 69/2020, que aprova a Nota Técnica 13/2020, trazendo as recomendações gerais para o Órgão Gestor da Política de Assistência Social, Unidades e Serviços Socioassistenciais direcionados à pessoa em situação de rua, no contexto da pandemia do novo Coronavírus, Covid-19.
O Conselho Nacional de Justiça, engajado também com a política nacional de acolhimento das pessoas que vivem em situação de rua, após criar um grupo de trabalho com representantes da Justiça e de entidades da sociedade civil com atuação específica na área do projeto mencionado, expediu recentemente uma resolução que institui a Política Nacional Judicial de Atenção às Pessoas em Situação de Rua
A norma aprovada determina ao Poder Judiciário a criação de um serviço especializado e prioritário para que a população em situação de rua tenha acesso direto ao Judiciário para garantir os direitos humanos desta parcela populacional com pouca frequência aos tribunais, sem qualquer tipo de burocratização. Exigir, por exemplo, um comprovante de residência para quem vive em situação de rua ou o traje forense adequado, é negar a prestação jurisdicional à pessoa que vive à margem da miserabilidade. Os serviços serão itinerantes e prestados de forma continuada, sempre em busca do maior número de pessoas atendidas, contando com a colaboração da assistência social, tanto para providenciar os documentos básicos para o exercício da cidadania, como, também, pelos órgãos competentes de ajuizamento, pleitear a concretização de um direito ou até mesmo um benefício previsto em políticas públicas específicas.
É o momento de abrir as portas da justiça para contemplar os que se encontram em situação de vulnerabilidade social, tanto é que nem mesmo são alinhados no Censo do IBGE, para que possam exercer e fazer imperar os direitos fundamentais descritos na Constituição Federal.