O dinamismo social progride em razão de vários fatores. Um deles é embalado pela ciência, em razão da introdução de novas tecnologias que provocam uma readequação necessária na comunidade humana. As transformações abrangem controvérsias morais e outras infiltradas há muitos anos e exigem, em consequência, novos arranjos jurídicos para cultivar o bem-estar comum, já que o Direito se apresenta como um tecido de mobilidade social. Tanto é que na sua evolução muitas vezes teve que passar ao largo de tradições, divorciar-se de preceitos religiosos, romper com as descriminações, tudo para abrir espaços para uma sociedade mais pluralista, produzindo um discurso público equilibrado e inspirador no melhor modelo para o bene vivere.
Pois bem. As novas tecnologias, no primeiro avanço, começaram a devassar o interior do homem com o intuito de produzir resultados benéficos para a saúde, nos parâmetros do malum non facere e conseguiram resultados ainda não satisfatórios por completo, como, por exemplo, conhecer as causas das doenças como Alzheimer, Parkinson e tantas outras. A esse respeito, os americanos lançaram o projeto conhecido como Brain Research, que ainda se encontra em desenvolvimento.
Já na segunda etapa as pesquisas mais avançadas miram o monitoramento da atividade encefálica, visando aumentá-la, diminui-la ou até modificá-la com o mapeamento do córtex cerebral. Aquilo que parecia uma distante ficção científica revelada pelo filme Matrix torna-se realidade. O protagonista é dotado de um conhecimento imediato a respeito de diversas habilidades, graças à instalação de um software no seu cérebro com inúmeros programas focando realidades diferentes e, principalmente, fazendo-o incorporar o novo comportamento.
Pretende a nova tecnologia fazer uma conexão entre o cérebro e o computador e, por tal caminho, possibilitar a transmissão do pensamento, memórias, sentimentos, emoções e decisões, com a consequente manipulação por terceira pessoa ou até mesmo pelo Estado, podendo mesmo chegar à comercialização dos dados consultados. Bem advertiu o grande criminalista Costa Jr. nos idos de 1960, em sua consagrada obra: "O crédito que toda humanidade abre à ciência ainda é ilimitado e prenhe de esperanças, mas já não se admite que o ingresso de nossa civilização na era da cibernética total possa operar-se à margem da reflexão crítica".1
Ora, a mente, além de ser a última fronteira do ser humano, é um verdadeiro laboratório e produz inúmeras informações valiosas que podem ser rastreadas e manipuladas indevidamente, com consequente prejuízo à integridade mental do seu titular. Tais dados pertencem ao patrimônio mental da pessoa e, pela regra convencional, somente ela terá o permitido acesso. E pode até acontecer que a própria pessoa não consiga acesso às informações armazenadas, mas a tecnologia especializada terá sucesso e romperá com o obstáculo impeditivo.
O premiado neurocientista brasileiro Nicolelis, com a competência que lhe é peculiar, assim se manifestou: "Definir a verdadeira unidade funcional do cérebro é um empenho solene. Afinal, essa busca visa identificar exatamente que tipo de matéria orgânica decide, em nosso nome, onde o corpo de cada um começa e termina, o que realmente significa sentir-se um ser humano, quais são as origens de nossas crenças arraigadas e como nossos filhos, e os filhos dos nossos filhos, um dia lembrarão de nosso legado de vida".2
O Senado Federal do Chile aprovou por unanimidade a proposta de inclusão dos neurodireitos ou os direitos do cérebro em sua Constituição Federal - com fulcro nos princípios da dignidade da pessoa humana e da autodeterminação - e deve ser o primeiro país do mundo a exercer tutela a respeito da matéria3. A intenção é preservar a integridade física e mental do indivíduo para que ninguém, nem mesmo o Estado, possa - por meio da tecnologia - aumentar, diminuir ou perturbar a integridade individual, sem o consentimento do seu titular.
A neurotecnologia se avizinha de forma acentuada e traz consigo todo arsenal tecnológico de ponta. A ciência merece expandir e criar uma nova realidade para a humanidade que, por sua vez, merece receber a tutela protetiva necessária, com restrita obediência aos limites éticos, bioéticos e jurídicos.
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1 Costa Jr., Paulo José da. O direito de estar só: tutela penal da intimidade. São Paulo: revista dos Tribunais, 1970, p.14.
2 Nicolelis, Miguel. Muito além do nosso eu: a nova neurociência que une cérebros e máquinas - e como ela pode mudar nossas vidas; tradução do autor: Revisão Giselda Laporta Nicolelis. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 42.
3 Disponível aqui.