O Senado Federal aprovou projeto de lei de autoria do senador Styvenson Valentim (Podemos-RN) que, dentre outras medidas, prevê a punição de um a três anos de detenção para quem não obedecer à fila de prioridade estabelecida pelo poder público para receber a vacina contra a Covid-19.
É interessante e didático para qualquer cidadão observar o nascedouro de uma lei. Os romanos já diziam que a lei surge de um fato que aflora de forma espontânea no seio da sociedade e é submetido informalmente ao crivo de aceitabilidade ou não do grupo. Daí o brocardo: Ubi societas, ibi jus. A partir do nascimento de uma sociedade a função social do Direito deve se fazer presente com seu instrumento de trabalho, que é a lei.
Os padrões morais que vigem em determinado agrupamento humano determinam o índice de aprovação ou reprovação de uma conduta. Assim a lei será construída tanto para recomendar aquilo que reverte em benefícios da sociedade, como para rejeitar a conduta que merece censura por ter infringido o padrão normal. Em ambas as hipóteses ela será detentora do caráter cogente. Basta recordar a trajetória e a aceitação popular da lei antifumo, de obediência inquestionável.
O texto do projeto de lei assim está redigido: "Infringir, de qualquer modo, a ordem de prioridade da vacinação estabelecida pelo poder público, durante situação de emergência em saúde pública de importância nacional, a fim de antecipar sua vacinação ou a de outrem". Também prevê o aumento da pena de um terço até a metade se o agente, conhecedor que era da irregularidade, for a autoridade ou funcionário público que contribuiu com a conduta criminosa de outra pessoa.
Percebe-se claramente que o clamor popular bradou em alta voz a sua repulsa pela conduta daqueles que quebraram a regra preferencial de imunização estabelecida pelo governo, exigindo, em contrapartida, a edição de um tipo penal próprio e específico para restabelecer a ordem.
A lei 13.979/2020, apesar de ser excepcional e temporária, vez que sua vigência está delimitada ao tempo de decretação de situação de emergência, estabeleceu medidas coercitivas para proteção da coletividade, as quais poderão ser adotadas para o enfrentamento de saúde pública de importância internacional decorrente da pandemia decretada pelo coronavírus.
O Ministério da Saúde, por sua vez, elaborou o Plano de Operacionalização da Vacina Contra a Covid-19, nos moldes do bem sucedido Programa Nacional de Imunização (PNI), levando-se em consideração a preferência inicial pela garantia do funcionamento dos serviços e a saúde dos mais idosos e grupos de risco.
Muitos casos foram denunciados a respeito de pessoas que, sem qualquer motivo justificado, desrespeitaram a ordem de chamada e receberam a vacina antecipadamente. Houve a deslavada prática tanto pelo próprio agente, como também pela sua participação em antecipar a vacinação de outrem. Trata-se, sem dúvida, da quebra do princípio da igualdade previamente estabelecido em que o indivíduo, movido por egoísmo primitivo, distorceu a seu favor a ordem proclamada. Lloyd foi incisivo em afirmar com relação ao princípio da igualdade: "O que esse princípio formal realmente significa é que os iguais serão tratados como iguais, pelo que, quem for classificado como pertencente à mesma categoria, para um determinado fim, será tratado de modo idêntico".1 Consequentemente, quem não pertencer ao mesmo grupo, será considerado pessoa estranha, invasora.
Se vingar a proposta legislativa, a conduta que era considerada reprovada moralmente ganha contorno de crime. E aqui cabe uma explicação: aqueles que praticaram a conduta no passado não poderão ser punidos em razão do princípio da anterioridade da lei penal, que se aplica aos fatos somente após sua vigência.
Por outro lado – e tal possibilidade foi aventada muitas vezes – se a conduta de antecipar a vacinação for praticada por agente público possibilita, em tese, concluir pela prática de ato definido na Lei de Improbidade Administrativa (lei 8.429/92), com visível afronta aos princípios da moralidade e impessoalidade. É certo que referida lei exige muita cautela na investigação da vontade do agente para aferir a conduta dolosa. É necessário, portanto, que se faça uma pesquisa apropriada para encontrar pelo menos má-fé ou qualquer outro comportamento revelador de conduta incompatível e desonesta.
Chega-se à inevitável conclusão de que a lei se faz necessária. É o único instrumento disponível para a concretização das metas programadas pelo Estado para que o cidadão possa realizar sua proposta de vida em harmonia com o grupo social.
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1 Lloyd, Dennis. A ideia de lei. Tradução Álvaro Cabral – São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 142.