O vocábulo pandemia, poucas vezes empregado anteriormente, mas que carrega o universo em sua estruturação etimológica, é hoje parte integrante da rotineira comunicação mundial. De origem grega, com o significado de ação envolvendo todo o povo a respeito de um acontecimento relevante e que tenha condições de atingir toda a população de uma nação, foi inicialmente empregado por Platão. Posteriormente, a palavra assumiu outra dimensão e teve seu alcance ampliado pela medicina que a direcionou a uma doença que poderia ultrapassar os limites de um país e atingir outros, enquanto que para o povo de uma mesma nação permaneceu o vocábulo epidemia, que á a difusão interna de doença em determinado período.
Pandemia, desta forma, é a disseminação mundial de uma nova doença que se espalha por dois ou mais continentes com transmissão sustentada de pessoa para pessoa. O diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, quando instado a se manifestar a respeito da disseminação do coronavírus, assim se posicionou: "Pandemia não é uma palavra para ser usada de maneira leviana ou descuidada. É uma palavra que, se mal utilizada, pode causar medo irracional ou aceitação injustificada de que a luta acabou, levando a sofrimento e morte desnecessários"1.
Vários estudos liderados por instituições científicas de referência estão sendo realizados com a finalidade precípua de conhecer detalhadamente o vírus e o certo é que, até agora, a covid-19 apresenta inúmeros buracos negros e muitas indagações ainda continuam sem respostas. Tanto é que a única esperança que move a humanidade é a vacina, levando-se em consideração que medicamentos pesquisados para a redução da carga viral do paciente foram insatisfatórios.
Recentemente, em artigo publicado na revista científica The Lancet, o seu redator-chefe Richard Horton pinçou com capricho o vocábulo "sindemia", cunhado na literatura médica por Merrill Singer, formado pela junção de sinergia e pandemia e o incluiu em um texto com o significado de que quando duas ou mais doenças se interagem de tal forma podem causar danos maiores que a soma dessas doenças. Seria o mesmo princípio aplicado ao todo que, quando somado, torna-se maior do que a soma das partes que o compõem.
Sindemia, em definição mais abrangente, seria o agravamento da saúde de populações não só em razão do mesmo fato gerador dominante, mas principalmente pelo seu entrelaçamento com fatores sociais e biológicos desfavoráveis, que produzem maior vulnerabilidade e desigualdade socioeconômica. Nesta linha de raciocínio pode-se concluir que sindemia representa o coronavírus como o fato gerador, mas, isoladamente, não carrega ele o condão de provocar tantos danos à saúde humana. Age na combinação de várias outras doenças e comorbidades, que geralmente são desencadeadas pela desigualdade social e, em razão da ausência de políticas públicas efetivas, tornam-se concausas pré-existentes e caminham pela mesma linha preferencial do vírus, como, por exemplo, a pobreza, a falta de habitação, alimentação, emprego, meio ambiente deteriorado e outras.
Com a chegada do coronavírus as doenças pré-existentes foram agravadas e paralisados os tratamentos no combate à hipertensão, diabetes, obesidade, doenças cardiovasculares, respiratórias, raras, cânceres e transplantes, dentre outras. As estruturas hospitalares e equipes médicas estavam voltadas para o combate à pandemia da covid-19, deixando um caminho aberto para a passagem do vírus. Até mesmo o distanciamento social tornou-se um óbice para que as pessoas pudessem visitar seus médicos e, consequentemente, ficaram expostas às doenças.
A sindemia, sob esta ótica, nada mais é do que uma pandemia lato sensu, compreendendo outros fatores que colaboram com a propagação e disseminação do mal que aflige a humanidade. E qualquer análise que seja feita com relação ao recrudescimento do vírus vai indicar que a sua letalidade está diretamente relacionada a outras circunstâncias que giram em torno do fato gerador. Eliminadas tais circunstâncias, o vírus será extirpado definitivamente.
Trata-se, na realidade, de uma opinião isolada, mas que tem campo para ganhar corpo e bem reflete a situação atual de combate ao coronavírus. Muitos países, até os considerados de primeiro mundo, por terem se afastado dos protocolos de segurança recomendados, permitiram o avanço do vírus e retornam à situação anterior, até mesmo com o reinício do isolamento com a decretação do lockdown.
O autor do referido artigo, em tom crítico, desalojou a atual pandemia e a substituiu pela sindemia, fazendo a seguinte advertência: "Não importa quão eficaz seja um tratamento ou quão protetora seja uma vacina, a busca por uma solução puramente biomédica contra a covid-19, vai falhar. A menos que os governos elaborem políticas e programas para reverter profundas disparidades sociais, nossas sociedades nunca estarão verdadeiramente protegidas da covid-19"2.
É uma situação que exige ampla reflexão da sociedade, principalmente no tocante às políticas públicas de atendimento às necessidades primordiais do cidadão.
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2 'Covid-19 não é pandemia, mas sindemia': o que essa perspectiva científica muda no tratamento.