O reerguimento da empresa em crise, tanto aqui como em outros países, constitui enorme desafio, exigindo muitos sacrifícios diante dos significativos obstáculos a serem ultrapassados.
Diante da tão variada gama de causas que podem levar a empresa à situação de crise, relacionadas a problemas de ordem interna ou externa à sociedade, há que se ter um expressivo leque de alternativas para a sua reorganização e, nesse contexto, o rol exemplificativo do art. 50 da lei 11.101/05 aponta alternativas que podem ser utilizadas, sem prejuízo de outras medidas que não encontram limites se não aqueles previstos no ordenamento, para que sejam preservados os direitos de terceiros.
Não raramente, a alienação de ativos para pagamento de dívidas ou mesmo para o desenvolvimento de atividades mais lucrativas, além de outras medidas como a oneração de ativos para a obtenção de financiamentos, a transferência de controle e outras formas de reorganização societária, acabam sendo medidas imprescindíveis na prática1. Nos EUA, a utilização do processo de reorganização é comum para a venda ativos ao abrigo da lei e a repartição do produto entre os credores de forma rápida e segura2.
Pelo sistema brasileiro, além do trespasse do estabelecimento, pode ocorrer a venda de bens isolados ou de unidade produtiva isolada (UPI), que pode representar uma parte do complexo de bens da sociedade ou mesmo a venda integral da devedora, que será considerada nessa hipótese como única unidade.
A venda integral da empresa foi incluída pela reforma de 2020 e se assemelha, por um lado, à liquidação da sociedade, porque representa a venda integral dos ativos do devedor para satisfazer os seus credores; mas, difere de um plano de liquidação, já que possibilita a continuidade da empresa, que é alienada em pleno funcionamento, evitando a depreciação do complexo de ativos, que normalmente ocorre com a paralização das atividades na falência.
Nessa opção, não basta que a medida seja aprovada pelos credores, necessário o controle judicial, porque, lembremos, o processo de recuperação judicial somente abrange parte dos credores da sociedade e os recursos provenientes da venda integral deverá satisfazer a todos de forma equilibrada, inclusive, os chamados credores extraconcursais.
E a condicionante prevista no art. 50, XVIII, da lei 11.101/05 é de que sejam respeitados os interesses dos credores não submetidos e também dos não aderentes, garantindo-lhes condições no mínimo equivalentes às que teriam em caso de falência da devedora.
Nesse sentido, fala a doutrina em “teste do melhor interesse dos credores”, para que haja comparação entre o cenário da alienação que ocorreria na falência com aquele que está sendo proposto no plano de recuperação judicial.3
Ademais, deve haver a necessária autorização do juízo e a cautela de avaliação do ativo sobre o qual incidirá o negócio, como deverá ocorrer na mesma forma prevista para a liquidação ordinária dos ativos no caso de falência, conforme as modalidades previstas no art. 142 da lei 11.101/05, que se refere ao leilão eletrônico, processo competitivo organizado ou outra modalidade desde que aprovada nos termos da lei. Ainda que se tenha conhecimento da existência de apenas um interessado, imprescindível abrir-se oportunidade a outros que possam se interessar, para que a concorrência estimule a melhor oferta possível.
No processo de recuperação, serão eficazes ainda a venda de parte do estabelecimento do devedor, a chamada unidade produtiva isolada (UPI)4 e filiais, se prevista a alienação pelo plano e aprovada pela maioria dos (art.60, parágrafo único, da LRE), como também os atos de disposição de bens isolados, desde que autorizados pelo juiz (art.66 da LRE).
E a primeira indagação consiste no que considerar como ativo permanente da empresa. Tal ativo pode incluir bens materiais e imateriais5, como marcas, patentes, direitos creditórios e até mesmo o banco de dados da empresa, desde que respeitadas as regras e garantias exigidas pela LGPD6, em contraposição aos bens que se encaixam como ativo circulante, posto que, para estes, não se exige o controle judicial e nem a anuência da vontade dos credores, porque que se referem a bens rotineiramente comercializados pelo devedor7.
Para algumas empresas, a sua principal mercadoria são bens de grande valor, como imóveis, veículos, máquinas e outros, desde que seu objeto compreenda a negociação de tais bens. Dessa forma, para tais empresas não seriam exigidas as mesmas cautelas que se exigiriam de outras para a alienação desses bens, pois, constituem seu ativo circulante.
Para a venda de bens individuais prevista ou não no plano, deve proceder-se à discriminação dos bens que serão vendidos, as condições dos negócios e a destinação dos produtos a serem auferidos8, que podem ser empregados para o pagamento dos credores concursais e extraconcursais9 e o fomento da atividade da recuperanda10.
Após a reforma de 2020, para a venda de UPIs, a lei dispõe que o “objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor de qualquer natureza, incluídas, mas não exclusivamente, as de natureza ambiental, regulatória, administrativa, penal, anticorrupção, tributária e trabalhista, observado o disposto no § 1º do art. 141 desta lei” (parágrafo único do art. 60 da LRE), aplicando-se, portanto, a quaisquer espécies de obrigações.
Da mesma forma, em relação à venda de bens isolados, garantindo a segurança dos adquirentes, o art. 66-A dispõe que, desde que autorizados pelo juiz ou previstos no plano e aprovados pela maioria dos credores, os negócios relativos à alienação não poderão ser anulados ou tornados ineficazes após a consumação do negócio jurídico com o recebimento dos recursos correspondentes pelo devedor.
Aliás, em se tratando da venda de bens isolados, a lei menciona que credores que correspondam a mais de 15% do valor total de créditos sujeitos à recuperação judicial, comprovada a prestação da caução equivalente ao valor total da alienação, poderão manifestar ao administrador judicial, fundamentadamente, o interesse na realização da assembleia-geral, para deliberar sobre a realização da venda, o que demonstra a restrição ao poder do devedor quanto à disposição de ativos e a gestão da empresa.
A prévia e necessária autorização judicial do juízo da recuperação judicial ou aprovação pelos credores, não se trata de simples limitação à atividade negocial da devedora, representa a preservação dos interesses dos credores da empresa. O descumprimento da vedação leva à ineficácia do ato, como tem reiteradamente decidido nossos tribunais, com a preocupação de que os atos de disposição esvaziarão o patrimônio do devedor11.
Nesse sentido, a iniciativa de alienação dos ativos não circulantes durante o processo depende da análise, primeiramente, da existência e da equivalência da contraprestação ofertada pelo negócio, para que não leve a eventual esvaziamento patrimonial, bem como para averiguar, inclusive, se determinados bens já não se acham constritos em processos individuais movidos por credores extraconcursais, dado o efeito tão somente ex nunc do deferimento da recuperação judicial12, ou se estão gravados por direitos reais de garantia, cuja supressão ou substituição depende do consentimento do credor13.
Com efeito, a ineficácia dos atos de disposição pode em tese alcançar os sucessivos negócios até aquele que foi celebrado com a sociedade devedora, como também os negócios e atos jurídicos subsequentes, que podem ter beneficiado os sócios, terceiros ou determinado credor em detrimento dos demais.
E a existência de sucessivos negócios realizados sobre bens do ativo não circulante da empresa em crise não livra seus adquirentes das consequências de eventual reconhecimento dos possíveis atos de fraude a credores, pondo-os sob o risco desde medidas de urgência14, que nem mesmo prescindem da prévia desconsideração da personalidade jurídica15, até que se reconheça judicialmente a ineficácia dos negócios realizados.
Nesse contexto, o intuito de refazimento do patrimônio do devedor e de diminuição dos prejuízos de seus credores, pode levar à responsabilização patrimonial de outras pessoas físicas e jurídicas e até mesmo a ineficácia dos negócios realizados. Veja-se que, após a reforma, foi acrescentada outra causa para a decretação da falência da devedora, quando constado do esvaziamento patrimonial que implique liquidação substancial da empresa, o que pode ser alegado por qualquer credor, inclusive, aqueles não sujeitos à recuperação judicial.
Além disso, é preciso verificar também se com a pretendida alienação não se reduzirá significativamente a atividade do devedor ou levará à liquidação antecipada da empresa, em contrariedade aos objetivos dispostos no art. 47 da LRF. Relevante, ainda, a coerência do negócio proposto com o propósito de reorganização e recuperação do devedor em crise e com a possibilidade remanescente de gerar faturamento para o cumprimento das obrigações assumidas no plano.
A alienação de bens é medida que pode representar extrema relevância para a reorganização da empresa em crise, para fins de recapitalização, investimento, favorecendo a manutenção da atividade produtiva, e o cumprimento do plano proposto, principais objetivos da recuperação judicial; mas, deverá ser observado o que estabelece expressamente a legislação que rege a matéria, posto que dependerá de prévia autorização judicial ou aprovação dos credores e obedecerá às regras previstas nos arts. 60, 60-A, 66, 66-A e 142, da LRF, pois, afinal, o patrimônio da empresa representa a principal garantia de pagamento dos credores.
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1 Cf. MUNHOZ, Eduardo Secchi. “Financiamento e investimento na recuperação judicial”, in CEREZETTI, Sheila Christina Neder e MAFFIOLETTI, Emanuelle Urbano (Coordenadoras). Dez anos da lei 11.101/05. 1ª edição. São Paulo: Almedina. 2015, pp.271-271.
2 Cf. BAIRD, Douglas G., RASMUNSSEN, Robert K. “The end of Bankruptcy”, in Stanford LAW Review 55 (2002-2003), p. 37.
3 Cf. TOMAZETTE, Marlon; GOMES, Tadeu Alves Sena. A Alienação de ativos na Recuperação Judicial a luz da Teoria Econômica Institucional, in Coluna Migalhas, 5.955, publicada em 25.01.23. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/380502/a-alienacao-de-ativos-na-recuperacao-judicial. Último acesso em 10.10.24).
4 Conforme a doutrina: “A crítica que já se fazia ao uso dessa designação (Unidade Produtiva Isolada - UPI) ganhou força com a nova disposição da lei, que considera UPI ativos isolados que não têm capacidade produtiva autônoma. Até participações societárias podem ser alienadas (UPI) leilão” (Cf. GARBI, Carlos Alberto. A venda de ativos na falência e na recuperação judicial: principais questões, in Coluna Migalhas, disponível aqui. Último acesso 10.10.24.
5 Dentre esses bens que compõem o ativo permanente estariam os investimentos, participações societárias, imóveis, equipamentos industriais e outros bens do imobilizado, intangíveis, como marcas, patentes, know how, e ativos realizáveis a longo prazo (Cf. SCALZILLI, João Pedro, SPINELLI, Luis Felipe; TELLECHEA, Rodrigo. Recuperação de empresas e falência, cit., 1ª ed., 2016, p.297
6 Ver a respeito: Brito, Cristiano Gomes de. O banco de dados como ativo alienável na falência e na recuperação judicial. Revista de Direito Privado. vol. 120. ano 25. p. 139-156. São Paulo: Ed. RT, abr./jun. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 10.10.24.
7 Consoante a doutrina: “Os ativos circulantes são aqueles destinados à comercialização pelo empresário devedor no desenvolvimento de sua atividade empresarial. A alienação destes prescinde de qualquer autorização, sob pena de se comprometer a própria atividade empresarial que se procura preservar. Por outro lado, como o patrimônio geral do devedor é a garantia de satisfação das obrigações dos credores, a alienação ou oneração de ativos não circulantes pelo devedor poderia aumentar o risco de inadimplemento de suas obrigações por ocasião de eventual liquidação dos bens num procedimento falimentar”. Cf. SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência / Marcelo Barbosa Sacramone. - 2. ed. - São Paulo: Saraiva Educação, 2021. Comentário ao art. 66
8 Nesse sentido: AI 2023279-78.2023.8.26.0000; Rel. Des. Cesar Ciampolini; 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; j. em 13/07/23.
9 Nesse sentido: TJSP - AgIn 2138405-16.2022.8.26.0000 - 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial - j. 23/1/2023 - julgado por J. B. Franco de Godoi - DJe 23/1/23.
10 Nesse sentido: STJ - REsp 1788216 - 3ª turma - j. 22/3/22 - julgado por Paulo de Tarso Vieira Sanseverino - DJe 29/3/22 - Área do Direito: Comercial/Empresarial.
11 Nesse sentido: TJ-SP - Agravo de Instrumento 2216891-15.2022.8.26.0000; Relator: Maurício Pessoa; Data do Julgamento: 12/12/22; 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Registro: 12/12/22; TJ-SP - AI: 21849496220228260000 SP 2184949-62.2022.8.26.0000, relator: Maurício Pessoa, data de julgamento: 02/12/22, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 02/12/22; TJ-SP - Agravo de Instrumento: 20749519120248260000 São Paulo, relator: J.B. Paula Lima, data de julgamento: 30/06/24, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 30/06/24).
12 Nesse sentido: Agravo de Instrumento nº 2196106-61.2024.8.26.0000, da Comarca de São Paulo, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo, Rel. Des. NATAN ZELINSCHI DE ARRUDA 3 de setembro de 2024.
13 Nesse sentido: STJ - REsp 1.794.209 - 2.ª Seção - j. 12/5/2021 - julgado por Ricardo Villas Bôas Cueva - DJe 29/6/21 - Área do Direito: Comercial/Empresarial.
14 Conforme a doutrina: “Apesar de desnecessária a menção na LREF, pois já expressamente autorizada pelo Código de Processo Civil, o juiz poderá, para garantir o resultado útil da demanda, determinar as medidas cautelares, de ofício ou a requerimento das partes interessadas. As providencias cautelares exigem a prova da verossimilhança do direito alegado e o periculum in mora de que os bens particulares dos réus possam ser comprometidos até que ocorra o provimento final Para resguardar o resultado útil da ação condenatória, poderá o juízo determinar a indisponibilidade de bens particulares dos réus, em quantidade compatível com o dano provocado” (cf. SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência / Marcelo Barbosa Sacramone. - 2. ed. - São Paulo: Saraiva Educação, 2021. Comentário ao art. 82).
15 Nesse sentido: TJSP; Agravo de Instrumento 2213018-07.2022.8.26.0000; Relator (a): Jorge Tosta; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível - 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 04/04/2023; Data de Registro: 05/04/23.