Insolvência em foco

Fiança honrada após a recuperação judicial é crédito concursal. A reviravolta no STJ para corrigir um grande equívoco

Os autores abordam a recuperação judicial e desafios devido à exclusão de dívidas garantidas por fianças.

1/10/2024

Sabemos que a recuperação judicial (“RJ”) tem como objetivo reorganizar a estrutura de capital das empresas em crise financeira que são viáveis. O alcance desse objetivo seria facilitado se todas as dívidas existentes até a data do pedido de recuperação fossem submetidas ao procedimento concursal, mas o nosso sistema de insolvência está calcado por um regime de exceções legais. 

A lei 11.101/05 (“LFRE”) exclui da reestruturação promovida pela recuperação judicial (e extrajudicial também) os créditos com garantia fiduciária, os decorrentes de adiantamento a contrato de câmbio para exportação, os tributários, dentre tantos outros. Isso nos parece criar, já na largada, um certo embaraço à efetividade da lei para recuperar a empresa em crise financeira. Mas a situação é posta, ao menos enquanto temos a LFRE atual em pleno vigor. 

A nosso ver, a cautela, então, deve estar focada em impedir a criação de novas exceções não previstas em lei capazes de dificultar ainda mais o processo de reestruturação. Esse é o caso da fiança, quando ela é honrada pelo fiador após o ajuizamento da RJ, mas para pagar dívida preexistente. Apesar de ser um crédito concursal por natureza, em razão da sub-rogação que o pagamento imediatamente produz, a jurisprudência do STJ, e consequentemente dos tribunais estaduais, tendia a considerar que o crédito do fiador seria pós concursal, quando honrado após o ajuizamento do pedido, e nessa qualidade não sujeito aos efeitos da RJ.

A relevância da matéria reside no fato de que no Brasil praticamente todos os bancos exigem a garantia pessoal dos sócios e acionistas das empresas tomadoras dos empréstimos. E muitas dessas garantias são formalizadas por meio de fiança. Veja-se os casos de project finance perante instituições de desenvolvimento como BNDES1  e FINEP2, que costumam praticar taxas a princípio mais acessíveis no mercado, contra a prestação de fiança bancária3. Significa dizer que raramente a empresa que se socorre da RJ não possui endividamento atrelado a esse tipo de financiamento garantido por cartas fianças também emitidas por instituições financeiras. O cenário é ainda mais grave porque em geral as instituições financeiras acionam a fiança após o ajuizamento da RJ, e justamente após declararem o vencimento antecipado dos contratos de financiamento em razão do ajuizamento da RJ (utilizando-se da chamada cláusula ipso facto de insolvência, cuja validade em nosso ordenamento é polêmica e divide opiniões, o que dá assunto para outro artigo). Ou seja, como regra geral, havendo créditos de fiança numa RJ (e quase sempre há), estes serão decorrentes de fianças honradas após o pedido.

Ocorre que a partir de 2020 esses créditos vinham sendo considerados pós concursais em alguns julgados esparsos do STJ, e nessa qualidade não sujeitos à RJ. Esse entendimento que foi se consolidando no STJ4 teve como esteio situação bem específica ocorrida na RJ do Grupo OAS, cujo contexto envolvia discussões particulares da rede de contratos do Grupo OAS, em que muitas das cartas fianças asseguravam o pagamento de garantias de primeira demanda (em muitos casos, stand by letter of credit5) prestadas pelas instituições financeiras (obrigação principal); garantias essas típicas de projetos de construção e de engenharia (que possuem, em regra, diversas fases para constituição do crédito). 

A tese desenvolvida no âmbito da referida RJ estava relacionada ao momento de surgimento das garantias de primeira demanda (obrigação garantida), mas acabou sendo reproduzida indiscriminadamente em outros casos que envolviam fianças simples, prestadas para assegurar créditos preexistentes à RJ, causando um verdadeiro rebuliço na aplicação de conceitos jurídicos relativos à sub-rogação, direito de regresso, novação e cessão (vide artigo de autoria destes autores “Sub-rogação e direito de regresso: os "novos inimigos" da reestruturação de empresas”6).

O resultado foi o entendimento do STJ no REsp 1.860.368-SP7. A partir daí, ganhou força a ideia de que a fiança estaria desatrelada da natureza (concursal ou extraconcursal) da dívida principal. O entendimento vinha sendo indiscriminadamente reproduzido pelas instâncias estaduais relegando ao escanteio as particularidades da natureza jurídica da fiança em decorrência de sua acessoriedade e da sub-rogação como efeito próprio do pagamento da obrigação afiançada pelo fiador.

Os ventos começaram a mudar quando, em 6/22, o TJGO8 reestabeleceu a natureza acessória da fiança em caso que defendemos, alterando entendimento já consolidado em sentido oposto na mesma RJ. Reconhecendo o nascimento do crédito (ou fato gerador) como sendo o momento da sua constituição (celebração do contrato), declarou concursal dívida decorrente de fiança honrada após o pedido da RJ, em razão da sub-rogação do fiador nos direitos de crédito do credor original. O caso transitou em julgado em segundo grau e o STJ não teve a oportunidade de avaliar a discussão. 

Mas, para alegria de todos, outro recurso especial oriundo da mesma recuperação judicial subiu ao STJ e foi o precursor da mudança de posicionamento da corte especial sobre a matéria9. Em voto recente10, o ministro relator, exmo. Ricardo Villas Bôas Cueva, reconheceu que, sendo a fiança contratada antes do pedido de RJ, esse é o momento gerador da fonte de obrigação do devedor originário com o fiador, de modo que “o pagamento feito pelo fiador e a subsequente exigência do valor por ele adimplido estão relacionadas com a execução do contrato de fiança e não com sua existência”.

Além disso, o ministro declarou que o pagamento da fiança tem como efeito legal próprio a sub-rogação que, por sua vez, não enseja a criação de uma nova relação jurídica, mas apenas a substituição do polo ativo, mantendo as demais características da obrigação. Nesse sentido, “se o credor originário tinha um crédito submetido aos efeitos da recuperação judicial, é isso o que ele tem a transferir ao subrogado. Não se trata de uma característica ligada à pessoa do sujeito sucedido, ou ao momento do pagamento, mas ao próprio direito de crédito, que é repassado com seus defeitos e qualidades”.

O inverossímil da tese que perdurou no STJ durante esses últimos anos foi exposto a olhos nu pelo ministro Cueva, quando afirmou o contrassenso da situação ao se admitir que diferentes fiadores de uma mesma dívida que honrassem seus compromissos em momentos diversos pudessem possuir classificações distintas no universo da RJ. Seria também um convite aos credores para sempre escolherem chamar a fiança após o ajuizamento da recuperação, já que nessa situação, além de serem pagos pelo fiador, propiciariam a não sujeição à RJ do crédito afiançado. Isso certamente incentivaria a concessão de fianças no mercado, barateando a garantia, mas geraria em contrapartida mais uma exclusão importante (e indevida) de créditos em detrimento da recuperação. 

A notícia merece ser festejada, já que corrige uma distorção legal dos institutos jurídicos que norteiam o tema da fiança. Afinal, a acessoriedade da fiança (arts. 818 e 823 do CC) impede que ela, como um negócio jurídico subordinado, altere a causa jurídica do negócio principal: se o crédito afiançado é concursal nos termos do art. 49, caput, da LFRE, assim deve ser o crédito do fiador quando honrar a garantia). Somado a isso, a sub-rogação, como efeito legal próprio da honra da fiança (arts. 831 e 349 do CC) assegura que o fiador assuma exatamente a mesma posição que credor originário, inclusive no cenário concursal (se o originário está submetido aos efeitos do concurso o mesmo deve ocorrer com o fiador).

Ao reestabelecer os conceitos básicos acima, o REsp 2.123.959-GO reflete o importante papel do STJ na uniformização da interpretação da lei em temas de absoluta repercussão sistêmica, como é o caso das cartas fianças. De agora em diante, espera-se que decisões como essa sejam confirmadas nos demais casos que versam sobre o mesmo tema, a fim de garantir que os créditos detidos pelos fiadores sejam considerados concursais, mesmo que a fiança tenha sido executada no curso da recuperação judicial, pois o seu fato gerador não é esse. A obrigação afiançada já existe antes do ajuizamento da recuperação judicial e é meramente sub-rogada, sem nenhum privilégio adicional, ao fiador.   

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1 Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social.

2 Financiadora de Estudos e Projetos.

3 Manual de Garantias. Disponível aqui e Guia do Financiamento. Disponível aqui.

4 REsp 1.856.902-SP e 1.856.898-SP.

5 Tipo de carta de crédito comumente utilizada em operações financeiras internacionais.

6 Disponível aqui.

7 “RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. IMPUGNAÇÃO DE CRÉDITO. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. FIANÇA. GARANTIA PRESTADA EM FAVOR DA RECUPERANDA. DISCUSSÃO ACERCA DE SUA SUJEIÇÃO AO PLANO DE SOERGUIMENTO. ART. 49 DA LEI 11.101/05. INEXISTÊNCIA DO CRÉDITO À ÉPOCA DA FORMULAÇÃO DO PEDIDO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. EXTRACONCURSALIDADE. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL. AUSÊNCIA DE SIMILITUDE FÁTICA.
1. Recuperação judicial requerida em 31/3/2015. Recurso especial interposto em 30/8/2018. Autos encaminhados à Relatora em 9/12/2019. 2. O propósito recursal é definir se créditos lastreados em contratos de fiança bancária, firmados para garantia de obrigação contraída pela recorrente, submetem-se ou não aos efeitos de sua recuperação judicial. 3. Devidamente analisadas e discutidas as questões deduzidas pelas partes, não há que se cogitar de negativa de prestação jurisdicional, ainda que o resultado do julgamento contrarie os interesses da recorrente. 4. De acordo com a norma do art. 49, caput, da Lei 11.101/05, não se submetem aos efeitos do processo de soerguimento do devedor aqueles credores cujas obrigações foram constituídas após a data em que o devedor ingressou com o pedido de recuperação judicial. 5. Esta Terceira Turma já teve a oportunidade de esclarecer que "a noção de crédito envolve basicamente a troca de uma prestação atual por uma prestação futura. A partir de um vínculo jurídico existente entre as partes, um dos sujeitos, baseado na confiança depositada no outro (sob o aspecto subjetivo, decorrente dos predicados morais deste e/ou sob o enfoque objetivo, decorrente de sua capacidade econômico-financeira de adimplir com sua obrigação), cumpre com a sua prestação (a atual), com o que passa a assumir a condição de credor, conferindo a outra parte (o devedor) um prazo para a efetivação da contraprestação" (REsp 1.634.046/RS, DJe 18/5/2017).  6. O crédito passível de ser perseguido pelo fiador em face do afiançado - hipótese em exame -, somente se constitui a partir do adimplemento da obrigação principal pelo garante. Antes disso, não existe dever jurídico de caráter patrimonial em favor deste. 7. O dissídio jurisprudencial deve ser comprovado mediante o cotejo analítico entre acórdãos que versem sobre situações fáticas idênticas, circunstância não verificada na hipótese. RECURSO ESPECIAL NÃO PROVIDO."

8 AI nº 5352599-28.2020.8.09.0000.

9 REsp nº 2.123.959-GO

10 13.8.2024

11 SOLANO, Fabiana. Quando as exceções ameaçam virar regra. Disponível aqui.

12 SACRAMONE, Marcelo Barbosa e PIVA, Fernanda Neves. “O pagamento dos débitos da recuperanda: a sub-rogação e o direito de regresso na recuperação judicial”. Texto publicado na obra Direito Societário III (Flávio L. Yarshell e Guilherme Setoguti Pereira coord.), Quartier Latin, São Paulo, 2018.

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Alberto Camiña Moreira é mestre e doutor pela PUC/SP. Advogado.

Alexandre Demetrius Pereira é mestre e doutor em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo. Pós-graduado (especialização) em Higiene Ocupacional pela Escola Politécnica da USP e em Gestão de Negócios pela Fundação Getúlio Vargas. Graduado em Ciências Contábeis pela FEA-USP. Foi professor de Direito Empresarial na Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, professor de pós-graduação no curso de Engenharia de Segurança do Trabalho do Programa de Educação Continuada (PECE) da Escola Politécnica da USP e professor de pós-graduação de matemática financeira, contabilidade e análise de demonstrações no Insper - Instituto de Ensino e Pesquisa.

Daniel Carnio Costa é juiz titular da 1ª vara de Falências e Recuperações Judiciais de SP. Graduado em Direito pela USP, mestre pela FADISP e doutor pela PUC/SP. Mestre em Direito Comparado pela Samford University/EUA. Pós-doutorando pela Universidade de Paris 1 - Panthéon/Sorbonne. Professor de Direito Empresarial da PUC/SP. Professor convidado da California Western School of Law. Membro do Grupo de Trabalho do Ministério da Fazenda para reforma da Lei de Recuperação de Empresas e Falências. Membro titular de cadeira da Academia Paulista de Magistrados e da Academia Paulista de Direito. Membro da INSOL International e do International Insolvency Institute. Autor de livros e artigos publicados no Brasil e no exterior.

Fabiana Solano é formada pela PUC/SP e tem LLM pela faculdade de Direito de Stanford - EUA. É sócia do Felsberg Advogados desde 2011. Foi foreign associate na área de insolvência do White & Case em Miami, onde atuou em processos de insolvência norte-americanos (Chapter 15) envolvendo empresas brasileiras. Atua na representação de devedores, credores e investidores em reestruturações privadas de dívidas e em processos de recuperação judicial, extrajudicial e falências. Em mais de 20 anos de atuação, participou dos casos mais relevantes de insolvência do país desde a entrada em vigor da lei 11.101/05, alguns deles vencedores ou finalistas do prêmio Deal of the Year da publicação Latin Lawyer.

João de Oliveira Rodrigues Filho é juiz de Direito da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da capital de São Paulo. Especialista em Direito Empresarial pela EPM. Professor do curso de pós-graduação em Falências e Recuperação Judicial da FADISP. Palestrante e conferencista.

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Paulo Penalva Santos advogado no Rio de Janeiro e São Paulo. Procurador aposentado do Estado do Rio de Janeiro.