Insolvência em foco

Controle judicial do plano de recuperação proposto pelo devedor, antes da deliberação dos credores

O objetivo deste artigo é analisar a questão relativa ao controle judicial do plano de recuperação proposto pelo devedor, antes de deliberação dos credores.

3/9/2024

O objetivo deste artigo é analisar a questão relativa ao controle judicial do plano de recuperação proposto pelo devedor, antes de deliberação dos credores. 

O plano de recuperação judicial é um negócio jurídico e, como tal, deve observar os requisitos gerais de existência, validade e eficácia do negócio jurídico. 

A análise do negócio jurídico deve obedecer a seguinte ordem: primeiro analisa-se a existência; concluindo-se pela existência, examina-se a validade e; por fim, sendo existente e válido, analisa-se a eficácia do negócio. Não há sentido em se analisar a eficácia de um negócio inválido, nem a validade de um negócio inexistente.           

São elementos de existência do negócio jurídico a declaração de vontade, o objeto e a forma. 

Transpondo-se esses elementos para um plano de recuperação judicial, é preciso (i) manifestação de vontade do devedor e da coletividade dos credores; (ii) que esse acordo de vontades tenha um objeto (um conteúdo), como, por exemplo, medidas para redução da dívida e o soerguimento da empresa e (iii) que o acordo entre credores e devedor se materialize de alguma forma, que geralmente é a forma escrita. 

Por sua vez, os requisitos de validade do negócio jurídico estão previstos no art. 104 do Código Civil e são (i) agente capaz; (ii) objeto lícito, possível, determinado ou determinável; e (iii) forma prescrita ou não defesa em lei. 

Transpondo-se esses requisitos de existência e validade para o plano de recuperação judicial, é possível concluir que a manifestação de vontades do devedor e dos seus credores é um elemento de existência do negócio, ao passo que eventual inconstitucionalidade ou ilegalidade das cláusulas do plano de recuperação seria elemento de validade do negócio jurídico. 

Como explicado acima, há uma ordem na análise dos planos do negócio jurídico. Como o exame da existência deve preceder a verificação da validade do negócio, é descabida a apreciação judicial sobre eventual ilegalidade de cláusula do plano de recuperação antes da sua aprovação.  

O descabimento não ocorre apenas pelas razões teóricas acima referidas, mas também por razões práticas: o art. 35, inciso I, alínea “a” da lei 11.101/2005 dispõe ser de competência da assembleia-geral de credores a “aprovação, rejeição ou modificação do plano de recuperação judicial apresentado pelo devedor”. 

Em suma: antes da aprovação do plano de recuperação, a cláusula potencialmente inválida simplesmente não existe no mundo jurídico. Logo, não é suscetível de controle de legalidade algo que sequer existe. 

É possível também traçar um paralelo com o direito público que também leva à mesma conclusão: o Supremo Tribunal Federal (“STF”) entende que “não se admite, no sistema brasileiro, o controle jurisdicional de constitucionalidade material de projetos de lei” (controle preventivo de normas em curso de formação). 

O que a jurisprudência do STF tem admitido, como exceção, é “a legitimidade do parlamentar - e somente do parlamentar - para impetrar mandado de segurança com a finalidade de coibir atos praticados no processo de aprovação de lei ou emenda constitucional incompatíveis com disposições constitucionais que disciplinam o processo legislativo”. Relevante a referência ao seguinte trecho do acórdão do STF: 

“A prematura intervenção do Judiciário em domínio jurídico e político de formação dos atos normativos em curso no Parlamento, além de universalizar um sistema de controle preventivo não admitido pela Constituição, subtrairia dos outros Poderes da República, sem justificação plausível, a prerrogativa constitucional que detêm de debater e aperfeiçoar os projetos, inclusive para sanar seus eventuais vícios de inconstitucionalidade. Quanto mais evidente e grotesca possa ser a inconstitucionalidade material de projetos de leis, menos ainda se deverá duvidar do exercício responsável do papel do Legislativo, de negar-lhe aprovação, e do Executivo, de vetá-lo, se for o caso. Partir da suposição contrária significaria menosprezar a seriedade e o senso de responsabilidade desses dois Poderes do Estado. E se, eventualmente, um projeto assim se transformar em lei, sempre haverá a possibilidade de provocar o controle repressivo pelo Judiciário, para negar-lhe validade, retirando-a do ordenamento jurídico. 4. Mandado de segurança indeferido.1 

As mesmas razões que levam o STF a inadmitir o controle prévio jurisdicional de constitucionalidade de projeto de lei são aquelas que nos levam a concluir pela impossibilidade de o Poder Judiciário analisar eventual ilegalidade de dispositivo do plano de recuperação antes da sua deliberação pela assembleia de credores. 

Enquanto o controle prévio de constitucionalidade de projetos de leis cabe ao poder legislativo (e ao poder executivo, mediante o veto), o controle prévio de legalidade e constitucionalidade do plano de recuperação cabe aos credores. 

A aprovação (por deliberação ou ausência de objeção), rejeição ou modificação do plano de recuperação pelos credores pode ocorrer por fundamentos econômicos ou jurídicos. Nesse sentido, é possível que os credores rejeitem uma cláusula do plano de recuperação por entendê-la ilegal. 

A avaliação econômica de conveniência e oportunidade dos credores acerca do plano é insuscetível de controle a posteriori pelo Poder Judiciário. Todavia, eventual controle de legalidade dos credores poderá ser, posteriormente à deliberação dos credores, objeto de reexame pelo Poder Judiciário. 

Além disso, é preciso pontuar que a Lei nº 11.101/2005 prevê um procedimento de proposição e aprovação do plano. O devedor apresenta a sua proposta e os credores analisam; eventualmente objetam o plano de recuperação proposto, oportunidade na qual é convocada assembleia geral de credores para que estes deliberem sobre a aprovação do plano de recuperação; em sendo aprovado pelos credores e, atendidos certos requisitos legais, o juiz o homologa, salvo se houver um vício de legalidade (art. 58). 

Note que o legislador estabeleceu a concessão da recuperação judicial pelo juiz “cumpridas as exigências desta Lei” (art. 58) em dispositivo imediatamente subsequente à previsão de “juntada aos autos do plano aprovado pela assembleia-geral de credores” (art. 57), deixando claro a opção legislativa pelo diferimento do controle judicial de legalidade do plano de recuperação para momento posterior a sua votação e aprovação. 

Nessa mesma linha, o Enunciado 44 da I Jornada de Direito Comercial do CJF esclarece que é a “homologação” do plano de recuperação que está sujeita a controle judicial de legalidade, e não a mera possibilidade de submissão à votação. 

A impossibilidade de controle judicial prévio do plano de recuperação pode ser encontrada em outros tópicos da Lei nº 11.101/2005. Com efeito, de igual modo não haveria sentido em se realizar controle judicial prévio de plano de recuperação extrajudicial, haja vista que a própria Lei nº 11.101/2005 faculta aos credores se pronunciarem acerca do plano apresentado em juízo (art. 164, caput) – portanto previamente aprovado – para que, somente após eventual impugnação dos credores, o juízo exerça seu controle de legalidade (art. 164, §5º). 

Portanto, a Lei nº 11.101/2005 disciplina o controle de legalidade do plano de recuperação após a sua aprovação, não prevendo qualquer hipótese de seu exercício prévio. 

Admitir o controle judicial prévio, por consectário, seria contra legem e, na prática, restringiria a negociação entre devedor e credores, sendo evidente também – e principalmente – o prejuízo à celeridade processual que acarretaria, considerando a inevitabilidade de sucessivos adiamentos da assembleias gerais de credores, enquanto não dirimidas todas as objeções e recursos dos credores contra o plano, a prolongar indefinidamente o processo de recuperação. 

Por fim, cabe uma ressalva: o STF admite controle prévio de constitucionalidade para coibir atos praticados no processo de aprovação de lei que afrontem o processo legislativo. Aqui também há um paralelo com o processo de recuperação judicial, na medida em que também é possível controle prévio de questões procedimentais, pois essas não são de competência dos credores (art. 35 da lei 11.101/2005). 

Desse modo, questões instrumentais podem ser objeto de controle prévio de legalidade pelo Poder Judiciário, na medida em que não dizem respeito ao plano, mas sim de aspectos processuais para a sua deliberação e aprovação. Contudo, disposições do plano apenas podem ser submetidos ao controle de legalidade após a sua aprovação pela assembleia de credores. 

Concluindo: o controle de legalidade de cláusula do plano de recuperação judicial é exercido após a sua aprovação pela assembleia geral de credores; antes de deliberação dos credores, é cabível o controle judicial prévio das questões instrumentais, que dizem respeito aos aspectos processuais para a deliberação e aprovação do plano.

__________

1 (MS 32033, Relator(a): GILMAR MENDES, Relator(a) p/ Acórdão: TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, julgado em 20-06-2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-033 DIVULG 17-02-2014 PUBLIC 18-02-2014 RTJ VOL-00227-01 PP-00330).

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Alberto Camiña Moreira é mestre e doutor pela PUC/SP. Advogado.

Alexandre Demetrius Pereira é mestre e doutor em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo. Pós-graduado (especialização) em Higiene Ocupacional pela Escola Politécnica da USP e em Gestão de Negócios pela Fundação Getúlio Vargas. Graduado em Ciências Contábeis pela FEA-USP. Foi professor de Direito Empresarial na Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, professor de pós-graduação no curso de Engenharia de Segurança do Trabalho do Programa de Educação Continuada (PECE) da Escola Politécnica da USP e professor de pós-graduação de matemática financeira, contabilidade e análise de demonstrações no Insper - Instituto de Ensino e Pesquisa.

Daniel Carnio Costa é juiz titular da 1ª vara de Falências e Recuperações Judiciais de SP. Graduado em Direito pela USP, mestre pela FADISP e doutor pela PUC/SP. Mestre em Direito Comparado pela Samford University/EUA. Pós-doutorando pela Universidade de Paris 1 - Panthéon/Sorbonne. Professor de Direito Empresarial da PUC/SP. Professor convidado da California Western School of Law. Membro do Grupo de Trabalho do Ministério da Fazenda para reforma da Lei de Recuperação de Empresas e Falências. Membro titular de cadeira da Academia Paulista de Magistrados e da Academia Paulista de Direito. Membro da INSOL International e do International Insolvency Institute. Autor de livros e artigos publicados no Brasil e no exterior.

Fabiana Solano é formada pela PUC/SP e tem LLM pela faculdade de Direito de Stanford - EUA. É sócia do Felsberg Advogados desde 2011. Foi foreign associate na área de insolvência do White & Case em Miami, onde atuou em processos de insolvência norte-americanos (Chapter 15) envolvendo empresas brasileiras. Atua na representação de devedores, credores e investidores em reestruturações privadas de dívidas e em processos de recuperação judicial, extrajudicial e falências. Em mais de 20 anos de atuação, participou dos casos mais relevantes de insolvência do país desde a entrada em vigor da lei 11.101/05, alguns deles vencedores ou finalistas do prêmio Deal of the Year da publicação Latin Lawyer.

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Paulo Penalva Santos advogado no Rio de Janeiro e São Paulo. Procurador aposentado do Estado do Rio de Janeiro.