Insolvência em foco

A governança e a crise da empresa no sistema de saúde suplementar

O sistema de saúde no Brasil inclui o público (SUS) e o privado (Saúde Suplementar), regulado pela ANS. Desafios incluem custos crescentes e cobertura adequada, com foco em governança e regulação prudencial para garantir sustentabilidade e evitar crises sistêmicas.

23/7/2024

Introdução

O sistema de saúde no Brasil é dividido entre o sistema público (Sistema Único de Saúde) e o sistema privado, composto pelos agentes que integram o denominado Sistema de Saúde Suplementar. Neste último estão compreendidos os serviços, seguros e planos de saúde – o terceiro maior objeto de consumo da população brasileira, protagonizando uma busca que aumenta exponencialmente desde o enfrentamento da COVID-19, quando o setor atingiu o maior número de beneficiários dos últimos cinco anos.1

O Sistema de Saúde Suplementar é objeto de regulação econômica por parte da ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar, que cria normas e fiscaliza este segmento de mercado em razão do interesse público que lhe é inerente. Sua atuação visa corrigir a assimetria de informações entre os usuários e as operadoras de planos de saúde, buscando minimizar eventuais falhas e/ou prejuízos na prestação deste tipo de serviço.

Alguns entraves estruturais no setor vêm sendo alvo de intensos debates e proposições normativas e regulatórias. É o caso, por exemplo, do aumento dos custos para os usuários versus a amplitude da cobertura oferecida para tratamentos de saúde, situação em que a harmonização entre os interesses privados das operadoras de saúde e o interesse público na adequada prestação de serviços relacionados à saúde é tarefa complexa.

Nesse cenário, a busca pelo equilíbrio de interesses daqueles que atuam no segmento e pela melhoria da governança interna das operadoras é essencial para a perenidade e o bom funcionamento do sistema de saúde suplementar no Brasil, o que contribui para a sua sustentabilidade. Além da já mencionada regulação normativa à qual as entidades do sistema de saúde suplementar estão submetidas, há também medidas de salvaguarda visando a proteção contra o risco de  colapso sistêmico, que pode ocorrer em situações de crise da empresa. Essas medidas compõem a regulação prudencial do setor.

A governança das entidades e os regimes de direção fiscal e de liquidação extrajudicial das operadoras privadas têm como objetivo manter a saúde financeira e o equilíbrio do segmento a médio e longo prazo. São institutos que buscam recuperar as operadoras em crise por meio de intervenções específicas e evitar que o problema de uma operadora impacte negativamente as demais integrantes do Sistema de Saúde Suplementar no Brasil, gerando o denominado risco sistêmico no mercado, decorrente do receio dos todos os usuários.

Governança das entidades de saúde suplementar

A lei 9.656/98, que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde, tem como um de seus objetivos principais regular o setor, equacionando conflitos de interesse entre os consumidores e as prestadoras de serviços de saúde privados, como aqueles relacionados a reajustes abusivos de mensalidades, falta de cobertura de procedimentos médicos essenciais e exclusão de faixas etárias avançadas nos produtos oferecidos no mercado.

Neste sentido, o referido diploma dispõe de inúmeras regras essenciais para o funcionamento eficiente do setor, no que se inclui normas sobre a governança das entidades de saúde suplementar. Com efeito, a relevância do tema é tamanha que 53% dos artigos que compõem a lei 9.656/98 tratam do regime de governança das operadoras de saúde.2

Além disso, o mesmo diploma legal estipula a regulação prudencial para o mercado de saúde suplementar em seus arts. 35-A, inciso IV e parágrafo único, e 35-L. Em síntese, trata-se de um conjunto de regras – inclusive de governança – que visam reduzir a possibilidade de insolvência das entidades atuantes neste segmento, bem como mitigar os efeitos negativos decorrente da crise da empresa, a fim de não causar um colapso no setor de saúde suplementar.

Visando robustecer as normas relativas à governança corporativa e, consequentemente, à higidez e equilíbrio sistêmico do setor por meio da prevenção da insolvência, a Agência Nacional de Saúde recentemente afastou a antiga regra da “margem de insolvência3 e passou a adotar a nova regra de CBR - capital baseado em riscos”, estabelecendo que o capital regulatório mínimo4 exigido das operadoras passa a ser calculado de forma mais individualizada, de acordo com dados concretos relacionados à operação da entidade. Nesta abordagem, que acompanha as recomendações internacionais mais avançadas de regulação prudencial, mesclam-se técnicas quantitativas e qualitativas: As primeiras, relacionadas aos cálculos de exposição aos riscos financeiros de entidades que compõe o sistema; as segundas, são compostas pelas já mencionadas regras de governança, abarcando normas de controles internos e gestão de riscos nas operadoras, cuja aplicação foi recentemente reforçada em diversas Resoluções Normativas da ANS.

Sobre estas últimas (regras de governança), seu mencionado robustecimento foi precedido de ampla discussão na CPS - Comissão Permanente de Solvência da ANS5, bem como objeto de ampla participação social através de realização de audiências e consultas públicas.6 O resultado destas discussões foi consolidado na Resolução Normativa 518/22, que atualmente disciplina a adoção de práticas de governança corporativa visando à manutenção da solvência das operadoras de saúde, com o regramento atinente aos controles internos e à gestão de riscos.

De acordo com as normas atuais, a fim de viabilizar a fiscalização da ANS sobre sua situação econômico-financeira, as operadoras devem apresentar Relatório de PPA -Procedimentos Previamente Acordados, demonstrando ao órgão regulador a adequada adoção de práticas mínimas relacionadas à gestão de riscos e controles internos, como análise de monitoramento econômico-financeiro semestral com indicadores mínimos, gestão de risco de crédito e de mercado, dentre outras.7

Visando à maior independência e evitando conflitos de interesses, o relatório de PPA deve ser elaborado por auditor independente, registrado no Conselho Regional de Contabilidade e na Comissão de Valores Mobiliários (não sendo permitido que tenha atuado nas funções de auditoria interna ou que tenha prestado serviços de auditoria independente ou consultoria à operadora nos dois anos anteriores à emissão do relatório).

Como incentivo à adoção paulatina das regras e práticas de governança para fins de solvência, a operadora que comprove o atendimento integral dos requisitos mínimos de governança exigidos pela ANS poderá solicitar a redução dos fatores de capital regulatório a ser observado para atuação no setor de saúde suplementar, ou seja poderá operar com um limite menor de patrimônio líquido ajustado, como consequência de sua menor exposição a riscos.

O incremento do sistema de controles internos, objeto das recentes resoluções normativas da ANS, insere no âmbito da regulação do órgão a fiscalização e o controle dos atos dos administradores dirigentes das entidades, evitando ou mitigando o risco de graves crises de insolvência que necessitem ser corrigidas através dos regimes de direção fiscal e liquidação extrajudicial – medidas estas que devem ser adotadas em situações extremas.  

Confira aqui a íntegra da coluna.

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1 Um ‘empurrão’ na melhoria da governança das operadoras de planos de saúde. Disponível aqui. Acesso em: 03.04.2024.

2 “Cerca de 53% dos artigos da Lei nº 9.656/98 são voltados às práticas de governança, seguidos de 25% e 21% das instruções e as resoluções normativas, respectivamente, o que significa que a regulação econômico-financeira desse setor impulsionou a adoção de práticas de governança no setor de saúde suplementar”. Jácome, Maria Augusta Raulino; PAIVA, Simone Bastos; MARTINS, Orleans Silva. Regulação Econômico-financeira como propulsora de práticas de governança corporativa na Saúde Suplementar. In: Revista Pensamento e Realidade. Vol. 35. Nº 1. Ano 2020. pp. 99-11.

3 De acordo com o art. 2º, inciso II da Resolução Normativa nº 526/2022 da ANS, a margem de solvência é uma regra de capital que define um montante variável a ser observado em função do volume de contraprestações e eventos indenizáveis aferidos pela operadora. Em apertada síntese, seu objetivo era aferir se o capital das entidades de saúde suplementar era suficiente para contrabalancear os riscos aptos a afetar negativamente seus resultados e operações.

4 De acordo com o art. 2º, inciso IV da Resolução Normativa nº 526/2022 da ANS, o capital regulatório corresponde ao limite mínimo de Patrimônio Líquido Ajustado que a operadora deve observar, a qualquer tempo, em função das regras de capital regulamentadas na Resolução Normativa em comento.

5 A Comissão Permanente de Solvência da ANS tem como funções precípuas: (i) identificação e quantificação dos riscos enfrentados pelas operadoras de planos de saúde; (ii) cálculo do capital baseado nos riscos identificados; (iii) discutir temas relacionados a governança e a (iv) transparência. Disponível aqui. Acesso em 10/7/2024.

6 Audiência Pública nº 8/18 e da Consulta Pública nº 67/18.

7 Anexo I da Resolução Normativa nº 518/2022 da ANS.

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Colunistas

Alberto Camiña Moreira é mestre e doutor pela PUC/SP. Advogado.

Alexandre Demetrius Pereira é mestre e doutor em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo. Pós-graduado (especialização) em Higiene Ocupacional pela Escola Politécnica da USP e em Gestão de Negócios pela Fundação Getúlio Vargas. Graduado em Ciências Contábeis pela FEA-USP. Foi professor de Direito Empresarial na Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, professor de pós-graduação no curso de Engenharia de Segurança do Trabalho do Programa de Educação Continuada (PECE) da Escola Politécnica da USP e professor de pós-graduação de matemática financeira, contabilidade e análise de demonstrações no Insper - Instituto de Ensino e Pesquisa.

Daniel Carnio Costa é juiz titular da 1ª vara de Falências e Recuperações Judiciais de SP. Graduado em Direito pela USP, mestre pela FADISP e doutor pela PUC/SP. Mestre em Direito Comparado pela Samford University/EUA. Pós-doutorando pela Universidade de Paris 1 - Panthéon/Sorbonne. Professor de Direito Empresarial da PUC/SP. Professor convidado da California Western School of Law. Membro do Grupo de Trabalho do Ministério da Fazenda para reforma da Lei de Recuperação de Empresas e Falências. Membro titular de cadeira da Academia Paulista de Magistrados e da Academia Paulista de Direito. Membro da INSOL International e do International Insolvency Institute. Autor de livros e artigos publicados no Brasil e no exterior.

Fabiana Solano é formada pela PUC/SP e tem LLM pela faculdade de Direito de Stanford - EUA. É sócia do Felsberg Advogados desde 2011. Foi foreign associate na área de insolvência do White & Case em Miami, onde atuou em processos de insolvência norte-americanos (Chapter 15) envolvendo empresas brasileiras. Atua na representação de devedores, credores e investidores em reestruturações privadas de dívidas e em processos de recuperação judicial, extrajudicial e falências. Em mais de 20 anos de atuação, participou dos casos mais relevantes de insolvência do país desde a entrada em vigor da lei 11.101/05, alguns deles vencedores ou finalistas do prêmio Deal of the Year da publicação Latin Lawyer.

João de Oliveira Rodrigues Filho é juiz de Direito da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da capital de São Paulo. Especialista em Direito Empresarial pela EPM. Professor do curso de pós-graduação em Falências e Recuperação Judicial da FADISP. Palestrante e conferencista.

Marcelo Sacramone é doutor e mestre em Direito Comercial pela USP. Professor de Direito Empresarial da PUC/SP. Juiz de Direito em exercício na 2ª vara de Falência e Recuperação Judicial de SP.

Márcio Souza Guimarães é professor doutor Visitante da Université Paris-Panthéon-Assas. Doutorado pela Université Toulouse 1 Capitole. Max Schmidheiny professor da Universidade de Saint Gallen. Foi membro do MP/RJ por 19 anos. Sócio de Márcio Guimarães/TWK Advogados, Árbitro e parecerista.

Otávio Joaquim Rodrigues Filho é mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Membro do IBR. Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo

Paulo Penalva Santos advogado no Rio de Janeiro e São Paulo. Procurador aposentado do Estado do Rio de Janeiro.