Insolvência em foco

A definição dinâmica do principal estabelecimento da devedora para os fins de tratamento da insolvência empresarial

A definição do principal estabelecimento da empresa devedora determina a competência do juízo em processos de recuperação e falências, baseando-se em critérios como sede formal, decisões estratégicas ou volume de negócios, conforme o caso, visando alcançar os objetivos legais do procedimento.

2/7/2024

Na coluna de hoje, vamos tratar de um tema atual e relevante: A definição do que é o principal estabelecimento da empresa devedora para fins de definição da competência do juízo para o processamento e julgamento dos processos de recuperação de empresas e falências.

Conforme dispõe a legislação de regência (art. 3º da lei 11.101/05), será competente para homologar o plano de recuperação extrajudicial, deferir a recuperação judicial ou decretar a falência o juízo do local do principal estabelecimento do devedor ou da filial de empresa que tenha sede fora do Brasil.

Entretanto, não há uma definição legal do que seja o principal estabelecimento do devedor. E mais. Tratando-se de recuperação judicial de grupos econômicos, com diversas empresas situadas e atuantes em diferentes locais, a aferição do que seja o principal estabelecimento do grupo impõe a consideração sobre critérios variados.

Pode-se afirmar que o principal estabelecimento de uma empresa poderia ser aferido a partir de três critérios: A sede da empresa, conforme consta nos seus atos constitutivos (critério formal); o local de onde parte as decisões estratégicas da empresa ou onde estão seus diretores (critério funcional); ou o local onde está o seu maior volume de negócios ou contratos (critério econômico).

A escolha sobre qual o melhor critério para definição do principal estabelecimento da empresa dependerá das circunstâncias do caso concreto e das finalidades do procedimento de insolvência em questão, sempre com vistas a potencializar o atingimento dos objetivos maiores protegidos pelo sistema legal de enfrentamento da crise da empresa.

Diga-se o mesmo quando se tem em consideração um grupo de empresas e não apenas uma empresa isolada. A definição de qual seria o principal estabelecimento do grupo impõe considerações sobre a forma de atuação de cada empresa do grupo, além das circunstâncias do caso concreto e das finalidades do procedimento em questão.

Tratando-se de processo falimentar, que tem como objetivo realizar a rápida realocação dos ativos da devedora para outras cadeias produtivas e promover o rápido e eficaz pagamento dos credores, parece preponderar o critério para definição de principal estabelecimento aquele que reúna a maior quantidade de ativos da devedora. Assim, o juízo terá melhores condições de arrecadar e vender os bens, de forma direta, sem a necessidade de deprecação de atos processuais e com maior proximidade para fiscalização e criação de soluções tendo em consideração as circunstâncias próprias do local. Dessa forma, o procedimento falimentar terá melhores condições para atingir eficazmente seus objetivos.

Tratando-se de recuperação judicial, que tem por objetivo criar um ambiente equilibrado de negociação entre credores e devedores a fim de que possa prevalecer a melhor decisão coletiva, poderão preponderar outros critérios para a definição de principal estabelecimento, pois importa mais que o juízo esteja perto do centro decisório da devedora e do local onde está o maior volume de negócios, otimizando, assim, a catalização e a fiscalização das atividades de negociação entre credores e devedora.

É dizer, importa mais para o sucesso da reorganização das atividades da devedora a consideração sobre onde a recuperação judicial tem melhores condições de atingir o objetivo de preservar os benefícios econômicos e sociais, do que o endereço da sua sede.

Além disso, o magistrado deve estar inserido na comunidade onde está o principal estabelecimento da empresa devedora, pois isso propicia ao julgador mais proximidade com a realidade dos fatos que envolvem o processo.1

A aferição do principal estabelecimento da devedora pressupõe, portanto, uma análise ampla da atuação da devedora ou do grupo de devedores. A identificação do local onde se situa o polo econômico mais importante ou onde está localizado o maior volume de negócios da devedora são fatores importantes – mas não exclusivos, nem isolados – para a definição do juízo competente para processar e julgar o seu processo de reestruturação.

A avaliação desses fatores não é estática, mas dinâmica, devendo ser aferida à luz do caso concreto e sempre com vistas ao atingimento do objetivo de preservar os benefícios econômicos e sociais da empresa.

No Brasil, a lei de recuperação judicial e falência deve ser interpretada e aplicada conforme propõe a teoria da superação do dualismo pendular. Vale aqui relembrar essa teoria para sua aplicação concreta na melhor interpretação da nossa lei e para definição dinâmica do principal estabelecimento da empresa devedora.

A observação do que acontece nas reformas legislativas ao longo dos tempos releva a existência de um movimento pendular constante que oscila na proteção dos polos da relação de direito material inseridos no procedimento de insolvência. Trata-se do que Fábio Konder Comparato chamou de dualismo pendular na proteção do interesse dos credores ou dos devedores relativamente à legislação de insolvência.

Nesse sentido, observa-se que a lei ora protege mais o credor, ora mais o devedor; o consumidor ou fornecedor, o inquilino ou locador; e assim por diante. Esse fenômeno também é observado em relação ao intérprete. Assim, não só a lei toma partido na proteção de um dos polos da relação de direito material, mas também o intérprete busca aplicar a lei sempre em favor de um dos polos da relação de direito discutida no processo de solução de um caso concreto.

Entretanto, impõe-se a superação desse dualismo pendular, deslocando-se o foco da interpretação para a busca da finalidade útil do sistema jurídico dentro do qual se inserem os direitos materiais. A finalidade do instituto e o bom funcionamento do sistema jurídico devem prevalecer sobre a proteção do interesse de um dos polos da relação de direito material.

Diante de uma situação real, é possível que o intérprete encontre diversas soluções, todas elas tecnicamente sustentáveis e de acordo com o sistema legal na qual se insere. Pode-se interpretar a lei em favor do credor ou em favor do devedor. Entretanto, qual deve ser a interpretação correta? Será aquela que prestigia a finalidade do sistema, em eficiência plena.

Por isso é necessária a superação do dualismo pendular. A preservação da eficiência do sistema deve ser o limite ao exercício da interpretação da lei.

Tal entendimento vem sendo adotado pelo STJ, conforme trecho de decisão proferida pelo ministro Humberto Martins, nos autos da Suspensão de Liminar e de Sentença 3.0182, que se reproduz a seguir:

“No Brasil, prevalece a visão de que a crise da empresa não impacta apenas os seus credores, mas também os empregados, os consumidores, o Estado e a sociedade em geral. A crise da empresa é um fenômeno complexo e que afeta diversos interesses distintos, muito além dos interesses dos credores.

É evidente que os credores são diretamente afetados pela crise da empresa, uma vez que deixaram de receber seus créditos. Mas o encerramento da atividade da empresa também afetará negativamente os seus empregados, pelo desaparecimento do posto de trabalho; os consumidores deixarão de usufruir de produtos e serviços; o Estado deixará de recolher tributos. Enfim, no Brasil, há uma forte tradição de reconhecimento da importância da função social da empresa.

Assim sendo, o art. 47 da lei 11.101/05 diz que a recuperação judicial tem por objetivo superar a crise econômica e financeira da devedora, a fim de tutelar os interesses dos credores, mas não somente dos credores. Todos os demais interesses atingidos pela crise da empresa devem ser considerados pelo juiz no momento de decidir sobre a preservação da empresa.

Assim dispõe o art. 47:

A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

O sistema brasileiro adotou a chamada teoria da superação do dualismo pendular, na medida em que os objetivos das ferramentas de tratamento da crise da empresa não são direcionados para a tutela dos interesses exclusivos do credor (pró-credor), nem dos interesses exclusivos do devedor (pró-devedor), mas para a tutela dos benefícios econômicos e sociais que decorrem da preservação da atividade econômica (empregos, tributos, produtos, serviços, circulação e produção de riquezas). Deslocou-se o pêndulo de proteção legal dos polos integrantes da relação crédito-débito para a proteção das finalidades sociais e públicas do sistema dentro do qual se insere a relação de direito material (credor e devedor). Por isso, afirma-se que o Brasil superou o dualismo pendular”. (destaque inserido)

Nesse sentido, a interpretação correta, quando se trata de recuperação de empresas, será sempre aquela que prestigiar a recuperação da atividade empresarial em função dos benefícios econômicos e sociais relevantes que dela resultam.

Os objetivos previstos no art. 47 da lei 11.101/05 devem ter preponderância na interpretação e aplicação dos dispositivos legais relacionados à recuperação de empresas. Deve-se buscar sempre a preservação do emprego, do recolhimento de tributos, do aquecimento da atividade econômica, da renda, do salário, da circulação de bens e riquezas, mesmo que isso se dê em prejuízo do interesse imediato da própria devedora ou dos credores.

A aferição do principal estabelecimento do devedor deve ser feita no momento do protocolo ou distribuição do pedido recuperacional, oportunidade na qual o juízo competente será estabilizado para os fins da lei de recuperação judicial, conforme o entendimento do STJ.

CONFLITO DE COMPETÊNCIA. PROCESSUAL CIVIL. 1. PEDIDO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL AJUIZADO NO FORO DO LOCAL DO PRINCIPAL ESTABELECIMENTO DO DEVEDOR. ART. 3º DA LEI 11.101/05. COMPETÊNCIA FUNCIONAL. PRECEDENTES. 2. ALTERAÇÃO DO ESTADO DE FATO SUPERVENIENTE. MAIOR VOLUME NEGOCIAL TRANSFERIDO PARA OUTRO ESTABELECIMENTO DO DEVEDOR NO CURSO DA DEMANDA RECUPERACIONAL. IRRELEVÂNCIA. NOVOS NEGÓCIOS QUE NÃO SE SUBMETEM AO PROCESSO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. COMPETÊNCIA ABSOLUTA INALTERADA. 3. CONFLITO CONHECIDO PARA DECLARAR COMPETENTE O JUÍZO DE DIREITO DA VARA DE PORTO NACIONAL/TO. 

1. O juízo competente para processar e julgar pedido de recuperação judicial é aquele situado no local do principal estabelecimento (art. 3º da lei n. 11.101/05), compreendido este como o local em que se encontra "o centro vital das principais atividades do devedor". Precedentes. 

2. Embora utilizado o critério em razão do local, a regra legal estabelece critério de competência funcional, encerrando hipótese legal de competência absoluta, inderrogável e improrrogável, devendo ser aferido no momento da propositura da demanda - registro ou distribuição da petição inicial.

3. A utilização do critério funcional tem por finalidade o incremento da eficiência da prestação jurisdicional, orientando-se pela natureza da lide, assegurando coerência ao sistema processual e material.

4. No curso do processo de recuperação judicial, as modificações em relação ao principal estabelecimento, por dependerem exclusivamente de decisões de gestão de negócios, sujeitas ao crivo do devedor, não acarretam a alteração do juízo competente, uma vez que os negócios ocorridos no curso da demanda nem mesmo se sujeitam à recuperação judicial. 

5. Conflito conhecido para declarar competente o juízo de direito da vara de Porto Nacional/TO.

(CC n. 163.818/ES, relator ministro Marco Aurélio Bellizze, Segunda Seção, julgado em 23/9/20, DJe de 29/9/20, destaque inserido)

É importante observar que uma empresa integrante de um grupo econômico não se confunde com o próprio grupo econômico. Assim, embora possa coincidir, o “principal estabelecimento” da empresa isolada não necessariamente será o “principal estabelecimento” do grupo societário do qual ela integra.

Tanto é assim que, de acordo com o art. 69-G, §2º, da lei 11.101/05, o juízo competente para deferir a recuperação judicial sob consolidação processual, ou seja, de devedores que integrem grupo sob controle societário comum, será aquele onde esteja localizado o principal estabelecimento das empresas (plural) em recuperação. Nesses casos, a análise do principal estabelecimento deve levar em consideração o grupo de empresas, e não uma empresa isolada.

Isso porque, quando a solicitação de recuperação judicial é feita em um contexto de consolidação processual, o foco principal se desloca para a reorganização abrangente do conjunto de empresas do grupo, ao invés de apenas lidar com a crise de uma única sociedade isoladamente.

Consoante entendimento mais recente do STJ, a existência de grupo econômico entre as empresas envolvidas impõe que as falências devem ser reunidas perante o juízo onde fica localizado o principal estabelecimento do devedor conforme estabelecido no art. 3º da lei 11.101/05, sendo irrelevante a existência de pedido de falência ajuizado em data anterior contra uma das empresas que compõe o referido grupo.

Conclui-se, portanto, que o centro de principais interesses ou o principal estabelecimento do grupo de empresas para fins de fixação de competência territorial/funcional nas ações de recuperação e falência, inclusive para fins de incidência da regra de prevenção, deve levar em consideração todos os fatores acima já mencionados, de forma dinâmica, à luz das circunstâncias do caso concreto e sempre com vistas a promover a realização dos objetivos maiores tutelados pelo sistema de insolvência (preservação dos benefícios econômicos e sociais que decorrem da atividade empresarial). Em se tratando de devedores que integrem grupo sob controle societário comum, a análise de tais critérios deve levar em consideração o grupo de empresas devedoras sob consolidação processual, e não uma empresa isolada.

__________

1 COSTA, Daniel Carnio; MELO, Alexandre Correa Nasser de. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência: Lei 11.101, de 09 de fevereiro de 2005. 5ª ed. rev. atual. Curitiba: Juruá, 2024, pág. 121.

2 SLS n. 3.018, Ministro Humberto Martins, DJe de 12/11/2021

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Alberto Camiña Moreira é mestre e doutor pela PUC/SP. Advogado.

Alexandre Demetrius Pereira é mestre e doutor em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo. Pós-graduado (especialização) em Higiene Ocupacional pela Escola Politécnica da USP e em Gestão de Negócios pela Fundação Getúlio Vargas. Graduado em Ciências Contábeis pela FEA-USP. Foi professor de Direito Empresarial na Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, professor de pós-graduação no curso de Engenharia de Segurança do Trabalho do Programa de Educação Continuada (PECE) da Escola Politécnica da USP e professor de pós-graduação de matemática financeira, contabilidade e análise de demonstrações no Insper - Instituto de Ensino e Pesquisa.

Daniel Carnio Costa é juiz titular da 1ª vara de Falências e Recuperações Judiciais de SP. Graduado em Direito pela USP, mestre pela FADISP e doutor pela PUC/SP. Mestre em Direito Comparado pela Samford University/EUA. Pós-doutorando pela Universidade de Paris 1 - Panthéon/Sorbonne. Professor de Direito Empresarial da PUC/SP. Professor convidado da California Western School of Law. Membro do Grupo de Trabalho do Ministério da Fazenda para reforma da Lei de Recuperação de Empresas e Falências. Membro titular de cadeira da Academia Paulista de Magistrados e da Academia Paulista de Direito. Membro da INSOL International e do International Insolvency Institute. Autor de livros e artigos publicados no Brasil e no exterior.

Fabiana Solano é formada pela PUC/SP e tem LLM pela faculdade de Direito de Stanford - EUA. É sócia do Felsberg Advogados desde 2011. Foi foreign associate na área de insolvência do White & Case em Miami, onde atuou em processos de insolvência norte-americanos (Chapter 15) envolvendo empresas brasileiras. Atua na representação de devedores, credores e investidores em reestruturações privadas de dívidas e em processos de recuperação judicial, extrajudicial e falências. Em mais de 20 anos de atuação, participou dos casos mais relevantes de insolvência do país desde a entrada em vigor da lei 11.101/05, alguns deles vencedores ou finalistas do prêmio Deal of the Year da publicação Latin Lawyer.

João de Oliveira Rodrigues Filho é juiz de Direito da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da capital de São Paulo. Especialista em Direito Empresarial pela EPM. Professor do curso de pós-graduação em Falências e Recuperação Judicial da FADISP. Palestrante e conferencista.

Marcelo Sacramone é doutor e mestre em Direito Comercial pela USP. Professor de Direito Empresarial da PUC/SP. Juiz de Direito em exercício na 2ª vara de Falência e Recuperação Judicial de SP.

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Otávio Joaquim Rodrigues Filho é mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Membro do IBR. Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo

Paulo Penalva Santos advogado no Rio de Janeiro e São Paulo. Procurador aposentado do Estado do Rio de Janeiro.