A disparada dos pedidos de recuperação judicial no Brasil tem ampliado as discussões sobre fusões e aquisições de empresas em distress. Essas situações têm se tornado comuns, o que vem levando a Lei de Recuperação e Falências reformada em 2020 a novos testes. No entanto, ainda há cenários que trazem insegurança jurídica aos investidores, que precisarão ser enfrentados com ponderação pelo Judiciário. Exemplo disso é a aquisição do próprio CNPJ da empresa endividada.
Na prática, o que se vê é um movimento de concentração de mercado em diversos setores, em que as empresas mais consolidadas vêm fazendo um movimento de expansão calculado, seja ampliando geograficamente seus mercados, seja adicionando novas divisões em sua cadeia produtiva, com a aquisição de empresas menores, endividadas diante da alta de juros e aumento do custo da matéria-prima. Na maioria das vezes, esses investidores têm exigido que a troca de bastão das empresas devedoras se dê no ambiente controlado da recuperação judicial, onde a compra da empresa pode ocorrer sem a contaminação do investidor nos passivos da adquirida.
Normalmente, na recuperação judicial a aquisição da empresa endividada se dá em partes, mediante a transferência de ativos significativos a uma nova estrutura (uma SPE – sociedade de propósito específico), que é vendida no formato de uma UPI – unidade produtiva isolada. Por exemplo, quando é vendida uma divisão de negócios da empresa em recuperação judicial. Sobram ativos e atividade na empresa em recuperação judicial, que devem ser suficientes para fazer frente à sua dívida remanescente.
Acontece que a recente crise econômica no país trouxe novos desafios: muitas vezes não há como vender apenas parte da empresa endividada, e o que resolve a crise é a sua venda integral. Para esses casos, a Lei de Recuperação e Falências alterada em 2021 incluiu a possibilidade da venda do próprio CNPJ da devedora, em inspiração clara na legislação norte-americana. Isso é feito nos Estados Unidos com bastante regularidade, como se viu no caso da GM, e agora promete acontecer no caso da Gol (se o interesse da Azul ou de outros players de mercado pela empresa se confirmar).
Mas a redação da lei brasileira foi infeliz: "constitui meio de recuperação judicial a venda integral da devedora, desde que garantidas aos credores não submetidos ou não aderentes condições, no mínimo, equivalentes àquelas que teriam na falência, hipótese em que será, para todos os fins, considerada unidade produtiva isolada".
Essa redação leva a dúvidas básicas: se eu vendo o próprio CNPJ, como garantir que o investidor não suceda nas dívidas da empresa? Como garantir aos credores não submetidos à recuperação judicial (especialmente o Fisco) condições no mínimo equivalentes às que teriam na falência?
Diante da omissão da lei, que não dá a segurança necessária sobre a não sucessão das dívidas e a forma de como implementá-la, a venda integral da empresa devedora jamais foi testada até hoje, após 3 anos da sua inclusão na lei. Mas já passou da hora de colocar essa solução na prática, e há formas de fazê-lo.
A forma mais conservadora de levá-la adiante sem muito rebuliço perante o Judiciário é seguir a prática que já vinha sendo adotada antes mesmo da reforma da lei: segregar todos os ativos do CNPJ da devedora (inclusive intangíveis como marca, clientela etc), vertê-los para uma ou mais sociedades de propósito específico e vendê-los como unidades produtivas isoladas. Ao mesmo tempo, ainda que não sobre uma atividade propriamente dita na devedora original, será importante manter em seu balanço ativos suficientes para pagar seus credores remanescentes, ainda que parcialmente (o mais natural será manter nessa estrutura os próprios recursos da venda). Ou seja, não se vende o CNPJ propriamente dito, mas tudo o que existe dentro dele, mantendo uma casca apenas com recursos reservados para pagamento proporcional dos credores remanescentes. Esses credores, especialmente os extraconcursais, devem ser pagos seguindo a ordem de prioridades da falência. Fazendo isso, em tese não haveria fundamentos para que a venda da própria devedora sem sucessão fosse contestada em juízo. Uma vez pagos os credores não sujeitos à recuperação judicial, de forma proporcional ao que receberiam na falência, o juiz poderia encerrar a recuperação judicial, ordenando à junta comercial a baixa do CNPJ da empresa, sem que ela tivesse necessariamente que passar por um processo de falência para que isso ocorresse.
No entanto, ainda que assim seja feito, existem desafios. O principal deles é o próprio Fisco: hoje o STJ exige que a devedora esteja com sua situação fiscal em dia para que a recuperação judicial seja concedida. Isso quer dizer que em regra o juiz somente homologará o plano de recuperação se a devedora tiver certidão negativa de débitos, o que ocorrerá se aderir a parcelamentos ou a transação fiscal. Em caso de descumprimento desses acordos fiscais, o próprio fisco poderia pedir a quebra da empresa, por disposição expressa da lei.
Ocorre que, como vimos, a venda integral da devedora pode ocorrer desde que o fisco (que é um credor não submetido à recuperação judicial) receba valores equivalentes ao que receberia numa situação de falência. E aí está a enorme inconsistência da lei, porque na falência o Fisco receberá menos do que receberia ao celebrar parcelamentos ou transação com a empresa devedora. Isso porque está em terceiro lugar na ordem de prioridade de credores concursais; na frente dele estão credores extraconcursais (dentre eles, credores com garantias fiduciárias e créditos constituídos após o ajuizamento da recuperação judicial) e os credores trabalhistas e detentores de garantia real.
Ou seja, exigir que os devedores tenham certidão negativa de débitos fiscais para que o juiz homologue um plano de recuperação que preveja a venda integral da devedora se torna uma esquizofrenia do sistema, embalada pelo entendimento mais recente a respeito do tema pelo STJ que ratifica essa posição.
A solução para resolver esse problema está na adoção, pelo Poder Judiciário, do entendimento manifestado no passado pela própria Ministra Nancy Andrighi, do STJ, e que se aplica aqui como uma luva: não faz sentido exigir numa solução que envolva a venda integral da devedora em recuperação judicial que os devedores adiram a parcelamentos ou transações fiscais, que implicam um recebimento maior ao que o Fisco teria na falência. Nesses casos, ao invés de apresentar a CND, bastaria à devedora comprovar que a conta de liquidação dos pagamentos numa situação de falência está cumprida, devendo ser reservado ao Fisco o valor que lhe caberia nesse caso. Parece simples, mas não é. Diante da existência de riscos em razão da inconsistência das normas sobre o assunto, muitos se intimidam e partem para outras soluções. Não espanta, portanto, que a venda integral da devedora continue sem aplicação prática.
Diante dessa inconsistência legal, é preciso que o judiciário corrija o rumo e aplique as normas seguindo a interpretação lógica que mais se amolda ao sistema de insolvência. De nada adianta exigir uma posição superprivilegiada ao fisco na recuperação judicial, se na falência ele recebe atrás de outros credores importantes. Exigir CND para a devedora nesse contexto seria o mesmo que tornar sem aplicação a norma que prevê a venda integral da empresa como meio de recuperação. E diante do movimento de consolidação de empresas que vivemos, seria uma pena deixar essa oportunidade passar.