Introdução
Recentemente, em 31 de outubro de 2023, entrou em vigor a Lei nº 14.711/2023, resultante da sanção parcial do PL 4.188/21, que ficou conhecida no seio do mercado e na comunidade jurídica como o “Marco Legal das Garantias”. Tal dispositivo legal, dentre outros assuntos, traz alterações importantes nas regras aplicáveis às principais garantias praticadas por instituições financeiras e, também, por credores não financeiros – inclusive, e principalmente, a alienação fiduciária em garantia e a hipoteca sobre bens imóveis.
O objetivo do Marco Legal das Garantias, segundo o Governo e o Congresso, foi o de conferir maior segurança jurídica, efetividade e facilidade de execução a todas as formas de garantia, além de estimular a utilização de institutos até então subutilizados (caso, por exemplo, da hipoteca). Tudo isso contribuiria para reduzir os juros praticados em operações de crédito e tornar o próprio crédito mais barato e acessível, estimulando o consumo e o investimento em geral – o que é crucial num momento em que a economia nacional segue flertando com um cenário de recessão.
Este breve artigo pretende, de um modo geral, avaliar os impactos do Marco Legal das Garantias nos procedimentos destinados ao tratamento da insolvência e da crise empresarial, principalmente a recuperação judicial e a falência, conforme previstas pela lei 11.101/2005 (a “Lei de Recuperação e Falência”). Mas não apenas isso: avaliaremos, também, alguns aspectos do próprio direito da crise empresarial que podem impactar a eficácia das normas e, principalmente, dos objetivos do Marco Legal das Garantias, especialmente no que diz respeito ao estímulo ao uso das garantias reais, tradicionalmente preteridas em favor das garantias fiduciárias desde a introdução destas últimas no direito brasileiro.
O Marco Legal das Garantias: principais medidas
No que diz respeito à alteração da disciplina das garantias, podemos dividir as medidas tomadas pelo Marco Legal das Garantias em duas frentes distintas: uma dedicada ao tratamento das garantias fiduciárias, e outra dedicada ao tratamento das garantias reais. Há, ainda, medidas gerais aplicáveis a todas as modalidades de garantia, que serão também mencionadas.
Alienação fiduciária em garantia
Quanto à alienação fiduciária de bens imóveis, o Marco Legal das Garantias tem por objetivo modernizá-la e torná-la mais versátil. Nesse sentido, o Marco Legal das Garantias passa a autorizar expressamente a constituição de alienação fiduciária sobre a propriedade superveniente, que consiste em que um mesmo imóvel já alienado fiduciariamente possa ser objeto de nova alienação fiduciária mediante registro imobiliário, ainda que mantendo-se as preferências às alienações anteriores sobre as posteriores. O registro deve ocorrer desde a data da celebração do instrumento de alienação fiduciária, tornando-se eficaz a partir do cancelamento da propriedade fiduciária anterior.
Importante ressaltar que alguns cartórios já aceitavam um tipo de garantia similar por meio do registro de instrumentos de alienação fiduciária com condição suspensiva consistente na extinção da alienação fiduciária anterior, de modo que a alienação fiduciária mais recente se tornaria imediatamente eficaz tão logo houvesse a indicação de extinção da alienação fiduciária anterior. De todo modo, esse procedimento nunca foi padronizado, e a admissão legal expressa da alienação fiduciária sobre a propriedade superveniente certamente traz mais segurança jurídica aos credores e mais opções ao mercado como um todo.
Ainda em relação à alienação fiduciária de bens imóveis, o Marco Legal das Garantias passa a exigir um maior detalhamento nos próprios instrumentos de garantia, que devem conter previsões de valor máximo ou estimado da dívida, permissão de uso do imóvel pelo devedor fiduciante (conforme o caso), e detalhes relativos aos procedimentos de excussão, inclusive extrajudicial, da própria garantia fiduciária. Há, ainda, a possibilidade de o credor declarar antecipadamente vencidas todas as demais obrigações garantidas pelo mesmo imóvel que garante a obrigação inadimplida, contanto que isso esteja previsto nos respectivos instrumentos de alienação fiduciária.
O Marco Legal das Garantias também acrescenta o art. 27-A à lei 9.514/97, dispondo que, nas operações de crédito garantidas por alienação fiduciária de dois ou mais imóveis, na hipótese de não ser convencionada a vinculação de cada imóvel a uma parcela específica da dívida, o credor poderá promover a excussão das diferentes garantias fiduciárias em ato simultâneo, por meio da consolidação de propriedade e leilão de todos os imóveis em conjunto, ou em atos sucessivos, por meio de consolidação e leilão de cada imóvel em sequência.
Sob o ponto de vista das regras da Lei de Recuperação e Falência, em princípio nada muda. A alienação e a cessão fiduciária em garantia seguem sendo tratadas como garantias extraconcursais, nos termos do artigo 49, §3º, da Lei de Recuperação e Falência, o que significa que os credores detentores de tais garantias não se sujeitam ao plano de recuperação judicial ou à falência da empresa devedora, e podem excutir livremente suas garantias, inclusive pela via extrajudicial (quando disponível).
É fato que tanto a lei quanto a jurisprudência criaram instrumentos para mitigar de certa forma a liberdade de excussão de garantias por tais credores fiduciários, especialmente quando os bens sobre os quais a garantia recai possam ser considerados essenciais ao desempenho das atividades das empresas devedoras em recuperação judicial. O próprio artigo 49, §3º, da Lei de Recuperação e Falência impede, durante o período de suspensão das ações e execuções contra a recuperanda (stay period), a excussão das garantias fiduciárias que recaiam sobre bens de capital considerados essenciais, mas há precedentes jurisprudenciais que, ou alargam o conceito tradicionalmente vigente de “bens de capital” para abranger os ativos sob discussão específica, ou dispensam a qualificação dos bens como sendo “de capital” como requisito para a incidência da proteção legal, que, nesses casos, acaba recaindo sobre quaisquer bens considerados essenciais pelo juízo da recuperação judicial.
De todo modo, por mais que haja instrumentos legais e jurisprudenciais que visam evitar que a excussão de garantias fiduciárias acabe impedindo o soerguimento efetivo de empresas em recuperação judicial, é fato que, conceitualmente, os credores fiduciários seguem “imunes” aos efeitos da recuperação judicial e da falência, conservando seu direito de manter e excutir suas garantias independentemente (ao menos em tese) do destino da empresa devedora e de sua relação com os demais credores.
A omissão do Marco Legal das Garantias em relação à disciplina da Lei de Recuperação e Falência criou, no entanto, grave insegurança no que diz respeito à nova possibilidade de instituição de alienação fiduciária sobre a propriedade superveniente. Nesses casos, vale reforçar, pode haver o estabelecimento de duas ou mais alienações fiduciárias distintas de forma concomitante e sobre um mesmo imóvel, ainda que as mais antigas tenham preferência sobre as mais novas em caso de excussão.
A pergunta que se faz é: como fica, em tais hipóteses, a não sujeição dos créditos garantidos aos procedimentos de recuperação judicial e falência – especialmente levando-se em conta que, conforme entendimento já cristalizado na jurisprudência, a extraconcursalidade dos créditos garantidos fiduciariamente vai até o limite do valor do próprio bem dado em garantia? Apenas o credor fiduciário mais antigo deve ser considerado extraconcursal? Ou também os credores fiduciários mais novos? Deve-se manter todos os credores com garantia fiduciária como concursais, aguardando-se a excussão efetiva da garantia para abater os montantes eventualmente recebidos com sua excussão? Ou deve-se manter todos os credores fiduciários como extraconcursais, aguardando-se a excussão da garantia para que sejam habilitados como concursais apenas por eventual saldo, mesmo sabendo-se de antemão que o valor do bem não é suficiente para cobrir todos os créditos garantidos?
Nem o Marco Legal das Garantias e nem a Lei de Recuperação e Falência são hoje capazes de responder a tais perguntas, cabendo à jurisprudência, uma vez mais, a tarefa de pacificar tal entendimento de acordo com a finalidade da lei.
Hipoteca
Se o objetivo do Marco Legal das Garantias quanto à alienação fiduciária foi torná-la mais segura e versátil (por meio, por exemplo, da possibilidade de alienação fiduciária da propriedade superveniente), quanto à hipoteca imobiliária o objetivo foi o de estimular o seu uso e resolver os problemas inerentes à sua excussão – e que, até então, motivavam sua substituição pela alienação fiduciária, cuja excussão sempre foi muito facilitada em relação à hipoteca.
Nesse sentido, uma das alterações mais importantes trazidas pelo Marco Legal diz respeito à previsão de um procedimento de excussão extrajudicial da hipoteca, similar ao já aplicável à alienação fiduciária de bens imóveis. Vale observar que, assim como ocorre na alienação fiduciária, também se exige na hipoteca, inclusive como requisito de validade, a previsão expressa desse procedimento de excussão extrajudicial no próprio instrumento de garantia – o que reforça a necessidade de que esses instrumentos sejam redigidos com maior atenção e detalhamento. Do mesmo modo, também foi prevista para a hipoteca a possibilidade de o credor vencer antecipadamente todas as demais obrigações garantidas pelo mesmo imóvel que garante a obrigação inadimplida.
Novamente sob o ponto de vista das regras da Lei de Recuperação e Falência, não houve alterações no que diz respeito ao tratamento dos créditos garantidos por garantias reais em geral (hipoteca ou penhor). Ao contrário do que ocorre com as garantias fiduciárias, que permanecem válidas, eficazes e exequíveis (ainda que com algumas limitações já referidas), as garantias reais não tornam o crédito garantido imune aos efeitos da recuperação judicial ou da falência. O credor com garantia real, assim como qualquer outro credor sujeito à recuperação judicial ou falência do devedor, não pode tentar receber o seu crédito de forma independente dos demais credores, ficando sujeito aos termos do plano (no caso da recuperação judicial) ou à ordem legal de preferências (no caso da falência).
Importante ressaltar que, em ambos os casos, o credor não necessariamente perde o seu direito real de garantia – apesar de não poder excutir a sua garantia real, que, no entanto, permanece válida e eficaz. A perda do direito de excutir a garantia real é, em ambos os casos, compensada pela atribuição de outros direitos e privilégios aos credores, que diferenciam os credores com garantia real dos demais credores que não possuem garantias (quirografários).
Na falência, o bem dado em garantia real será vendido juntamente com todos os demais bens do devedor. O valor arrecadado será utilizado para pagar os credores em geral na ordem de preferência legal, sendo que os credores com garantia real são pagos logo após os créditos concursais trabalhistas limitados a 150 salários-mínimos. Os demais credores sem garantia apenas podem receber qualquer coisa depois que os credores com garantia real tiverem recebido todo o seu crédito, e ainda assim após uma longa fila de espera, que inclui créditos tributários e créditos com determinados privilégios definidos em lei.
Já na recuperação judicial, por sua vez, não há ordem de pagamento legal, o que significa que o devedor não está necessariamente obrigado a garantir que os credores com garantia real recebam antes ou em melhores condições do que os demais credores sem garantia. A forma e o tempo em que cada classe será paga serão determinados pelo que constar no plano de recuperação judicial que venha a ser aprovado pelos credores.
Nesse sentido, o benefício concedido aos credores com garantia real consiste em seu posicionamento em uma classe de credores específica, que deverá aprovar o plano de recuperação de forma independente das demais classes. Isso resulta na concessão aos credores com garantia real, via de regra, de um maior poder de barganha na negociação das condições do plano e do pagamento de seus créditos, o que em geral resulta em condições de pagamento mais benéficas do que aquelas praticadas em relação aos demais credores sem garantia.
Nada disso, repita-se, foi alterado pelo Marco Legal das Garantias. E é exatamente esse um dos pontos que pareceu escapar ao legislador, que aparentemente supôs que a mera simplificação do procedimento de excussão da hipoteca (com a criação da possibilidade de excussão extrajudicial), por si só, seria suficiente para estimular o seu uso e “destronar” a alienação fiduciária como mecanismo primário de garantias imobiliárias.
Há, com efeito, vários fatores que contribuem para que credores (especialmente instituições financeiras) optem pela utilização da alienação fiduciária em detrimento da hipoteca. Um deles é, sim, a maior facilidade na excussão das respectivas garantias – o que pode ter sido suprido pela introdução da possibilidade de excussão extrajudicial da hipoteca. O outro, que nos parece absolutamente decisivo, é o tratamento de ambas as modalidades de garantia no âmbito da eventual insolvência do devedor – o que não foi alterado pelo Marco Legal das Garantias.
Sob esse viés, enquanto se mantiver a enorme disparidade de tratamento existente entre a alienação fiduciária de bem imóvel e a hipoteca imobiliária no âmbito da insolvência do devedor, a ponto de a alienação fiduciária se manter plenamente eficaz e exequível ao passo que a hipoteca imobiliária segue sendo afetada pela recuperação judicial ou falência do devedor, haverá poucos estímulos às instituições financeiras em geral para que passem a adotar a hipoteca em detrimento da alienação fiduciária.
Não se propõe, por óbvio, que a questão seja resolvida pela simples “equalização” do tratamento de ambas as garantias, nem para um lado (tornando, por exemplo, concursal a alienação fiduciária), e nem para outro (tornando, por exemplo, extraconcursal a hipoteca). Ambas as modalidades de garantia têm suas peculiaridades sob o ponto de vista dos direitos que transferem aos credores, e há justificativas técnicas para tal tratamento díspar. Trata-se, tão somente, de uma constatação de fato: enquanto esse quadro se mantiver, não parece haver vantagens em utilizar a hipoteca como mecanismo de garantia, mesmo que sua excussão tenha sido simplificada e, hoje, equivalha à da alienação fiduciária.
Medidas gerais
No que diz respeito às garantias em geral, o Marco Legal das Garantias também estabelece que qualquer garantia pode ser constituída, levada a registro, gerida e excutida (inclusive por via extrajudicial, quando possível) por um agente de garantia a ser designado pelos credores. Tal agente atuará em nome próprio e em benefício dos credores (tratando-se de dever fiduciário), inclusive em ações judiciais que envolvam discussões sobre existência, validade ou eficácia da garantia.
Em caso de execução da garantia levada a efeito pelo agente, o produto da excussão constituirá patrimônio separado do patrimônio geral do próprio agente pelo período de até 180 dias, e deverá ser distribuído aos credores num prazo de até 10 dias úteis após o recebimento dos valores pelo agente de garantia.
É fato que, dada a natureza das funções exercidas pelo agente de garantia, caberá aos credores um monitoramento rigoroso dos procedimentos adotados para excussão das garantias, recebimento e, principalmente, distribuição dos valores obtidos. Também deve ser devidamente prevista e acompanhada a atuação do agente de garantia em procedimentos de insolvência, já que, agindo em nome próprio, ele passará a ter legitimidade processual para atuar nesse tipo de procedimento – o que poderá eventualmente conflitar com os interesses individuais dos próprios credores, que podem ser divergentes entre si.
Em relação aos títulos registrados com cláusulas resolutivas, o Marco Legal trouxe para os Tabelionatos de Notas a competência de certificar o implemento ou a frustração de tais condições por meio da ata notarial, já utilizada para outros fins na dinâmica dos negócios imobiliários. Houve, também, a instituição de um procedimento de concurso para organizar a excussão extrajudicial de garantias quando houver multiplicidade de credores.
Por fim, o Marco Legal das Garantias foi objeto de vetos parciais pelo Presidente da República, relacionados, em linhas gerais, à previsão de autorização de busca e apreensão extrajudicial de bens móveis dados em alienação fiduciária. Tais vetos ainda pendem de análise pelo Congresso Nacional, que poderá derrubá-los.
Conclusão
Como se pôde observar, apesar de ter trazido mudanças relevantes na disciplina das principais garantias utilizadas pelo mercado (principalmente imobiliárias), o Marco Legal das Garantias não pareceu se preocupar a contento com algumas questões importantes inerentes ao âmbito da Lei de Recuperação e Falência. Menciona-se, em especial, a insegurança jurídica quanto ao tratamento da extraconcursalidade (ou concursalidade) de créditos garantidos por alienações fiduciárias supervenientes, bem como a manutenção da enorme discrepância existente entre o tratamento das garantias reais e fiduciárias em procedimentos de insolvência – o que, a nosso ver, contribui para que as garantias reais sigam sendo preteridas em face das garantias fiduciárias.
Espera-se que tais questões sejam levadas em conta futuramente, não apenas pelo legislador, mas também pela jurisprudência, que precisará se ocupar de resolver tais problemas de forma mais imediata, sempre em respeito à finalidade da Lei de Recuperação e Falência.