O advento da lei 11.101/05 (Lei de Recuperações e de Falências – LRF) trouxe consigo não apenas um novo princípio, mas uma nova mentalidade no mundo jurídico-falimentar: a preservação da empresa. Ele encontrou campo fértil de acolhimento, sobretudo entre operadores que se habituaram a sobrepor princípios a regras específicas, angariando especial simpatia entre aqueles que entendem que o norte absoluto do Direito é a realização da justiça social, a qual deveria prevalecer sobre questões econômicas de caráter individualista.
Arriscaríamos dizer a esse respeito que quase dez entre dez obras doutrinárias receberam com grande felicidade o art. 47 da LRF, que traz os princípios e objetivos gerais da recuperação judicial, consistentes em viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, manter a fonte produtora, o emprego dos trabalhadores, promovendo, assim, a preservação da empresa e sua função social.1
A recepção do art. 47 pela jurisprudência não foi diferente: imbuídas de excelentes intenções e nobres propósitos, decisões esposaram teses e interpretações inovadoras para preservar a empresa (facilitando a recuperação e dificultando a falência), dentre as quais citamos algumas tendências: (1) prorrogação de prazo de recuperação judicial, ainda que contrariamente ao texto inicial da lei; (2) dispensa de certidões tributárias; (3) criação, praeter legem, sem critérios objetivos e previsíveis, de hipóteses de superação de voto de credores em oposição à recuperação em assembleia; (4) utilização, ainda que em alguns casos, de teorias de (in)adimplemento substancial para impedir ou suspender a convolação de recuperação em falência.
Importante notar que, tanto a lição doutrinária quanto as decisões jurisprudenciais aludidas têm um alicerce comum, no sentido de que a preservação da atividade empresarial não é um fim em si mesmo. Preserva-se a empresa não por seus fundamentos econômicos, mas para manter vivos seus efeitos sociais. A essência do pensamento jurídico nessa matéria segue quase um brocardo aplicável ao direito administrativo: preservar empresa visa a sobrepor os efeitos inerentes ao interesse público (representados precipuamente pela continuidade do emprego e da tributação) sobre o interesse privado (pretensões dos credores e questões puramente econômicas).
A revelação do raciocínio anteriormente citado não parece, em primeira análise, trazer nada de novo ou injustificável. Mas é justamente aí que repousa o grande risco: ao facilitar sobremaneira a interpretação normativa favorável à concessão/manutenção da recuperação (em detrimento da falência) lastreando-se prioritariamente em aspectos sociais outros que não a análise rigorosa de viabilidade econômica do empreendimento, cria-se um conjunto importante de incentivos (ou desincentivos) e de consequências, dentre as quais as discutidas no tópico seguinte.
Incentivos e consequências importam
Economistas ressaltam reiteradamente que incentivos importam, no sentido de que comportamentos humanos são encorajados ou desencorajados em virtude de estímulos (considerados aqui os de natureza econômica).
Por sua vez, o ordenamento jurídico, sobretudo na visão da Análise Econômica do Direito, constitui-se, mais do que em meras normas derivadas da ciência moral ou filosófica, em um conjunto de incentivos. Como bem ressalta Bullard, que citamos no original:2
El derecho, más allá de disquisiciones filosóficas, es un sistema de regulación de conducta humana. Toda regla jurídica tiene un supuesto de hecho y una consecuencia jurídica: «el que causa un daño a otro con culpa debe indemnizarlo». Causar un daño con culpa es el supuesto de hecho. Pagar la indemnización es la consecuencia jurídica. Pero si usted mira con cuidado las cosas, pagar la indemnización es un precio, el costo de hacer algo. Por ello si se obliga a pagar a los culpables, habrá menos actos culposos. En otras palabras, la lógica del sistema de precios puede ser aplicada, como veremos, a virtualmente toda norma jurídica. Finalmente, las normas tratan de crear incentivos de conducta del tipo que los economistas estudian.
Cabe agora indagar: quais consequências decorrem do raciocínio jurídico interpretativo do art. 47 da LRF, conforme citado no tópico anterior?
Quando se considera que a atividade empresarial deve ser preservada mais em virtude de seus efeitos sociais (notadamente emprego e tributação), e menos em consideração de sua essência, acaba-se por relegar a segundo plano o requisito essencial da eficiência econômica como condição indispensável ao soerguimento empresarial.
Nessa linha, decisões judiciais que, em interpretação benevolente do art. 47 da LRF, evitam ao extremo a decretação da falência e facilitam demasiadamente recuperações a devedores que não têm condições de operar de modo economicamente eficiente, acabam por gerar um resultado econômico pernicioso: mantêm em sobrevida atividades de alto custo e de baixo valor agregado, jogando o ônus econômico daí decorrente sobre toda a sociedade.
Note-se que a proteção trabalhista derivada de tais situações é bastante ilusória: usualmente, protege-se um grupo restrito de empregados, supondo sua vulnerabilidade econômica, obtendo como contrapartida a manutenção de empregos caros e ineficientes, cuja conta, repita-se, é paga por toda a sociedade. Esses escassos recursos sociais, diga-se, poderiam ser mais bem utilizados na criação de empregos de eficiência superior, beneficiando toda a coletividade. Por outras palavras, poderíamos assim resumir: o que se preserva de empregos ineficientes com tais recuperações, corresponde à perda de outros empregos eficientes no mesmo setor ou em setores distintos da economia.
Tal situação é deveras semelhante ao que ocorre quando se adotam políticas públicas que preconizam reservas de mercado, cerceamento de comércio exterior ou exigências de conteúdo nacional mínimo em mercadorias. Nesses casos, de modo similar, os empregos preservados em território nacional são mantidos à custa de recursos econômicos que poderiam ser utilizados na criação de outros empregos de maior grau de eficiência.
Note-se também que se trata de uma ilusão de preservação trabalhista feita por meio de uma troca intertemporal de recursos desvantajosa para a sociedade: subsidiam-se hoje empregos ineficientes, usando recursos que criariam atividades de maior valor econômico e social em futuro próximo. Podem-se até entender as causas dessa linha de pensamento, conhecido economicamente como desconto hiperbólico: as demandas presentes acabam por ter prioridade em relação às futuras, é dizer, preferimos, muitas vezes, preservar empregos hoje (ainda que ineficientes) a usar recursos de forma mais eficiente no futuro, criando então empregos de melhor qualidade e produtividade. Sobre esse assunto, ensina Gianetti com grande maestria:3
Como entender essa aparente anomalia? O que explicaria essa tendência a subestimar na prática o futuro, ainda que reconhecendo a desejabilidade prática de não fazê-lo? [...] A fórmula que melhor descreve e elucida esse tipo de comportamento é o desconto hiperbólico. A ação resulta de uma combinação instável entre preferências inconsistentes. De um lado, a preferência pela gratificação imediata no presente (desfrute) e, de outro, a preferência pela espera paciente e a conduta calculada de longo prazo (previdência) [...].
A lonjura no tempo favorece a prudência e o cálculo frio; a proximidade subverte. Na sóbria serenidade da distância, a perspectiva neutra prevalece: a formiga pré-frontal dá o tom e rege o ensaio da orquestra cerebral. Mas, quando o momento e a oportunidade de agir se avizinham, a relação de forças se altera. A cantoria da cigarra límbica embala a mente com o antegozo de iminentes delícias e as boas intenções perdem temporariamente sua força motivadora [...]. A resultante disso é que a propensão a descontar o futuro – “viver agora, pagar depois” – aumenta de forma acentuada conforme a oportunidade concreta de agir se aproxima [...].
Daí que nossa capacidade de espera, como uma pomba caprichosa, tende a ser dócil e domesticável no conforto das escolhas pensadas à distância, mas arisca e traiçoeira no calor da hora. Enquanto a tentação (ou ameaça) anda longe, não há dificuldade em lidar com ela. É simples como escolher musse ou quindim de sobremesa: cada um prefere o que é melhor para si. Basta acertar o despertador, ao deitar-se, para acordar bem cedo na manhã seguinte; ou pensar na dieta com o estômago cheio; ou abraçar a temperança sob o efeito da última ressaca; ou parar de fumar e começar a ginástica no mês que vem; ou comprar camisinhas a caminho do motel; ou jurar fidelidade eterna no primeiro mês de casado; ou dispensar os anestésicos meses antes do parto; ou se imaginar capaz de feitos heroicos na falta de oportunidades; ou rejeitar o pecado e sentir-se um santo logo após a comunhão; ou ser contra os excessos da UTI no trato de doentes terminais quando se tem ótima saúde; ou desprezar a morte enquanto se é jovem ou não há perigo. Os exemplos pululam — cada um sabe de si. A tentação revela melhor o autocontrole; o perigo revela melhor a bravura e firmeza de caráter.
Semelhante ilusão protetiva ocorre no campo tributário: quando se preservam empresas ineficientes, o resultado econômico por elas gerado remanesce necessariamente aquém do que se poderia obter caso os mesmos fatores de produção (capital, mão-de-obra etc.) fossem utilizados em outras atividades eficientes. Logo, a tributação (incidente sobre faturamento ou sobre o lucro) também permanece aquém do potencial que poderia atingir se os recursos fossem transferidos por efeito da decretação da falência. Mais uma vez, a sociedade paga a conta na forma de baixa arrecadação.
Resumindo, temos que, embora imbuído de nobres propósitos, o efeito econômico da preservação de empresas ineficientes é justamente o contrário do que se imagina no meio jurídico: (1) preservam-se poucos empregos ineficientes à custa de recursos econômicos escassos de toda a sociedade, em detrimento da criação de outros empregos eficientes, no mesmo ou em outros setores da economia; (2) preserva-se (quando muito) baixa arrecadação, em prejuízo de potencial de arrecadação maior advindo do uso eficiente dos mesmos recursos em outras atividades.
Poder-se-ia questionar se o Poder Judiciário deve buscar eficiência ou se outros valores, como “justiça social”, equidade e congêneres deveriam prevalecer ao decidir sobre a preservação ou não de uma atividade empresarial. O pensamento subjacente a esse questionamento é que existiria uma contradição entre valores sociais (justiça social, equidade etc.) e individuais (fundamentos econômicos), devendo o juiz dar prioridade aos primeiros sobre os segundos.
Pelo que já se viu até aqui, porém, a resposta é razoavelmente simples: não há contradição entre valores de eficiência e outros como “justiça social” e equidade. Diga-se, inicialmente, que, diante de uma realidade de recursos econômicos escassos, não há como fazer “justiça social” ou preservar equidade se houver desperdício de recursos, ou seja, a sociedade não é tratada de modo justo quando, mediante decisão judicial, permite-se a continuidade de atividades ineficientes e dispendiosas, à custa de alocação ineficiente de fatores de produção. Nesse sentido, mais uma vez, cabe citar Bullard:4
En todos los cursos de derecho los profesores se centran en qué es la justicia y qué es equitativo. Buena parte de la discusión es qué es justo y qué no lo es. Pero la verdad, al menos en mi experiencia, es que la mayoría de abogados no puede definir qué es realmente la justicia y qué es equitativo.
Más allá de repetir la definición griega («la justicia es dar a cada quien lo suyo») lo cierto es que no es sencillo encontrar una fórmula que nos arroje respuestas sobre qué es justo y qué no. Dar a cada quien lo suyo puede tener interpretaciones muy diferentes, dependiendo de qué es «suyo» y de qué es «dar». Tan diversas que todos los abogados dicen que defienden la justicia de los dos lados de la misma controversia.
En cambio, los economistas han sido bastante más precisos (y técnicos) en definir qué es la eficiencia y cómo esta nos guía hacia soluciones correctas. El AED ha intentado aprovechar ello para construir un derecho más eficiente, pero, como era de esperarse (y lo veremos más adelante) ello ha despertado críticas y reacciones de todo tipo.
Muchas personas no entienden bien ni los postulados ni la utilidad del AED. Como el AED se basa en un análisis costo-beneficio, se tiende mucho a pensar que es un análisis deshumanizante: qué tendría que ver con la justicia, con la conducta humana y con los valores convertir en números el derecho.
Pero eso no es lo que persigue el AED. No se busca sustituir la justicia por la eficiencia. Uno puede (y debe) bajo el AED, buscar las soluciones justas a los problemas jurídicos. Pero si uno quiere ser responsable, parte de la solución justa es saber cuánto cuesta alcanzarla.
Como bien dice Calabresi, en una sociedad donde los recursos son escasos, desperdiciar es injusto (Calabresi, 1992). La eficiencia tiene que ver con evitar el desperdicio y así mejorar el bienestar de las personas. Lo que se busca es, por tanto, un derecho que, sin olvidar otros aspectos o valores a los cuales se deba, sea un derecho eficiente, es decir un derecho que evite el desperdicio creando incentivos de conducta adecuados para lograr sus fines. Lo que se persigue es evitar que los sistemas jurídicos generen desperdicios.
A eficiência econômica, portanto, embora seja frequentemente vista no meio jurídico como fruto de pensamento individualista, é um valor social tão relevante quanto os demais supracitados (justiça social, equidade, dignidade etc.) e somente por meio dela que se obtém a justa alocação de recursos escassos da sociedade como um todo (e sobretudo das parcelas menos favorecidas da população).
Essa contradição (aparente), aliás, não é privativa das recuperações e das falências, fazendo-se presente nas decisões de alocação de recursos públicos orçamentários (estatais): equivale, mutatis mutandis, à mesma situação em que governos, ao pretenderem proteger camadas mais pobres da população, incorrem em desequilíbrios orçamentários geradores de déficits permanentes e inflação, os quais prejudicam principalmente as classes populares a que os programas governamentais visavam a beneficiar.
Em breve conclusão
Do que aqui se disse, podemos concluir claramente que é impossível ao Poder Judiciário realizar "justiça social" ou outros valores de equidade ou de dignidade da pessoa humana, preservando atividades empresariais em detrimento da verificação do requisito da viabilidade/eficiência econômica, sob pena de criar ilusória proteção social, com sacrifício de recursos econômicos escassos, sobretudo no longo prazo.
É preciso, portanto, ter a coragem de enfrentar o tema e analisar, caso a caso, a eficiência econômica ao decidir. Em não estando presente essa condição, é preciso deixar o empreendimento falir, pois somente dessa forma os recursos econômicos terão alocação mais eficiente em outras atividades, em benefício de toda a sociedade.
Sobre quais fundamentos econômico-financeiros utilizar para tomar esse tipo de decisão, deixaremos a discussão do tema para um próximo artigo.
__________
1 É verdade que o artigo citado também traz como princípio a manutenção do interesse dos credores. Mas esse ponto, podemos dizer, é o menos invocado pela doutrina e pela jurisprudência para justificar a preservação da empresa, uma vez que costuma soar como algo de caráter mais individualista.
2 Bullard, Alfredo. Análisis económico del derecho (Colección Lo Esencial del Derecho nº 35) (Spanish Edition) (p. 11). Fondo Editorial de la PUCP. Edição do Kindle.
3 Gianetti, Eduardo. 2005. O valor do amanhã. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 177-178.
4 Op. cit. p. 23.