O objetivo deste artigo é verificar, à vista do disposto na parte final do inciso II do art. 6º da lei 11.101/2005 (“LFR”), se o sócio que tem responsabilidade solidária por dívida do falido ou do devedor em recuperação judicial, em razão da concessão de garantia real ou fidejussória, é alcançado pelos efeitos do stay period.
No texto original, o art. 6º, caput, da LFR, tratou dos efeitos automáticos decorrentes da decretação da falência ou do deferimento do processamento da recuperação judicial, entre os quais a suspensão “de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário.”
A lei 14.112/2020, ao incorporar ao direito positivo a orientação pretoriana, enumerou nos incisos I a III os efeitos da decretação da falência ou deferimento da recuperação judicial.
O inciso II tratou da suspensão das execuções. Com a alteração legislativa foi suprimida a menção à suspensão das “ações”, anteriormente prevista no caput, sendo mantida a previsão da suspensão das “execuções”. Positivou-se, assim, o entendimento da jurisprudência do e. Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) que, à luz do §1º do art. 6º da LFR, consolidou-se no sentido de que as ações que demandarem quantia ilíquida devem prosseguir no juízo de origem até a apuração do quantum debeatur.
No que interessa para este artigo: o inciso II do art. 6º da LFR, na redação dada pela lei 14.112/2020, estabelece que a decretação da falência e o deferimento da recuperação judicial implicam a “suspensão das execuções inclusive daquelas dos credores particulares do sócio solidário, relativas a créditos ou obrigações sujeitos à recuperação judicial ou à falência”.
Por “sócio solidário”, a norma refere-se especificamente aos sócios de responsabilidade ilimitada da sociedade falida ou que teve deferido o pedido de recuperação judicial, que são aqueles que respondem pelas dívidas da sociedade de forma pessoal e integral1 (não limitada à sua participação social), em razão do vínculo societário existente.
Nesses casos, a responsabilidade ilimitada dos sócios pelas dívidas sociais pode resultar da lei – tal como ocorre nas hipóteses de sociedades em comum, sociedade em nome coletivo e sociedade em comandita, simples ou por ações (arts. 990, 1.039, 1.045, 1.091, todos do Código Civil)2 – ou de expressa previsão no estatuto ou contrato social.
A opção do legislador por estabelecer a suspensão das execuções em face dos “sócios solidários” se deve ao fato de que os efeitos da decretação de falência se estenderem ao sócio de responsabilidade ilimitada, nos termos do art. 81 da LFR, hipótese na qual os credores particulares dos sócios terão que se submeter à ordem de pagamento do regime falimentar.
O objetivo da extensão da suspensão das execuções promovidas em face do sócio de responsabilidade ilimitada é conferir tratamento isonômico entre os credores da sociedade recuperanda e os credores do sócio de responsabilidade ilimitada, o que tem fundamento no princípio do par condicio creditorum.
Por sua vez, a suspensão das execuções em face do devedor em recuperação judicial, pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias – que de acordo como o §4º do art. 6º da LFR, com a redação dada pela lei 14.112/2002, seria prorrogável uma única vez, por igual período – tem por objetivo viabilizar a negociação do plano de recuperação judicial entre o devedor e seus credores, cujo resultado, caso aprovado, definirá as novas condições de pagamento dos créditos sujeitos3.
A extensão dos efeitos conferida pelo II do art. 6º da LRF não pode ser confundida com aquela disciplinada pelo art. 49, §1º, da mesma lei. Isso porque a disposição contida no art. 49, §1º, da LFR diz respeito aos coobrigados em geral, sócios (de responsabilidade limitada) ou não sócios, que oferecem garantias, reais ou fidejussórias – hipoteca, penhor, aval, fiança, entre outras – da dívida do devedor principal no âmbito de relação contratual.
É a hipótese, por exemplo, da prestação de garantias cruzadas entre sociedades do mesmo grupo econômico, prática comum no mercado, cujos ativos de uma garantem o pagamento dos credores da outra no âmbito de relações contratuais envolvendo a emissão de títulos de dívida e/ou de crédito (notas promissórias, cédulas de crédito, debêntures, etc.), como forma de viabilizar operações de financiamento, investimento e capitalização.
Na hipótese tratada pelo art. 49, §1º, da LFR, a responsabilidade do terceiro solidário ou do coobrigado não advém de uma relação societária estabelecida – como ocorre na hipótese do art. 6º, II, da LFR, em relação aos sócios de responsabilidade ilimitada –, mas de uma relação de natureza contratual, de caráter obrigacional, por deliberado consentimento daquele que figura como garantidor da dívida.
Os coobrigados a que se refere o art. 49, §1º da LFR não se submetem aos efeitos de eventual decretação de falência da sociedade. Solvida a dívida pelo terceiro garantidor, este sub-roga-se na posição do credor primitivo, podendo exercer o direito de regresso em face da devedora em recuperação ou da falida (art. 346, III, c/c art. 350, ambos do Código Civil).
Em razão da concessão de garantia, ditos coobrigados também não são atingidos pelos efeitos da novação sui generis, decorrentes da concessão da recuperação judicial, como esclarece o art. 59 do mesmo diploma legal – cujo próprio caput ressalta que isto se dará “sem prejuízo das garantias” –, na hipótese de aprovação do plano de recuperação judicial da devedora principal, de sorte que o credor pode executar os devedores solidários nos termos da obrigação originalmente assumida4.
Diante dessa ordem de ideias, parece que a interpretação do art. 49, §1º, da LFR que melhor se compatibiliza com a sistemática da lei 11.101/2005 é a que autoriza o prosseguimento das execuções pelos credores em face dos coobrigados – excluídos os sócios de responsabilidade ilimitada – mesmo com o deferimento do processamento da recuperação judicial da devedora principal.
Na jurisprudência, verifica-se que os tribunais estaduais já tiveram a oportunidade de enfrentar a matéria para ratificar a interpretação literal do art. 49, §1º, da LFR, destacando-se aqui, para fins de ilustração, os precedentes dos eg. Tribunais de Justiça dos Estados do Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul5.
Nesse sentido, o Conselho da Justiça Federal – CJF, na 1ª Jornada de Direito Comercial, realizada em 2012, editou o enunciado n. 43 sobre o tema:
“A suspensão das ações e execuções previstas no art. 6º da lei 11.101/2005 não se estende aos coobrigados do devedor.”
Em 2014, o eg. STJ pacificou a questão ao analisar o REsp. 1.333.349/SP6, julgado sob os ritos dos recursos repetitivos representativos da controvérsia, oportunidade em que decidiu que aos terceiros solidários ou coobrigados em geral não se aplicam “a suspensão prevista nos arts. 6º, caput, e 52, inciso III, ou a novação a que se refere o art. 59, caput”:
“RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CPC E RESOLUÇÃO STJ N. 8/2008. DIREITO EMPRESARIAL E CIVIL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PROCESSAMENTO E CONCESSÃO. GARANTIAS PRESTADAS POR TERCEIROS. MANUTENÇÃO. SUSPENSÃO OU EXTINÇÃO DE AÇÕES AJUIZADAS CONTRA DEVEDORES SOLIDÁRIOS E COOBRIGADOS EM GERAL. IMPOSSIBILIDADE. INTERPRETAÇÃO DOS ARTS. 6º, CAPUT, 49, § 1º, 52, INCISO III, E 59, CAPUT, DA LEI N. 11.101/2005.1. Para efeitos do art. 543-C do CPC: "A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das execuções nem induz suspensão ou extinção de ações ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória, pois não se lhes aplicam a suspensão prevista nos arts. 6º, caput, e 52, inciso III, ou a novação a que se refere o art. 59, caput, por força do que dispõe o art. 49, § 1º, todos da Lei n. 11.101/2005". 2. Recurso especial não provido.”
Ainda analisando o tema, em 2016 a Corte Superior editou o verbete sumular n.º 581, com a seguinte redação:
“A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória.”
Nos termos do art. 927, III e IV, do CPC, o entendimento sumulado e fixado em sede de recurso repetitivo é de observância obrigatória por todos os órgãos jurisdicionais, e que permanece hígido mesmo com as alterações promovidas pela lei 14.112/2020
Desse modo, a exegese pacífica da norma é de que os efeitos do stay period e de eventual novação dos créditos aproveitam exclusivamente aos sócios de responsabilidade ilimitada, sujeitos aos efeitos de eventual quebra da devedora, nos termos do art. 81 da LFR, não beneficiando os demais coobrigados em geral, em face dos quais os credores do devedor principal em recuperação judicial conservam seus direitos nos moldes da obrigação primitiva, salvo na excepcional hipótese de expressamente anuírem com a extinção das garantias – reais ou fidejussórias – prestadas.
__________
1 “Desse conjunto resulta existirem no Direito brasileiro sete tipos ordinários de responsabilidade de sócios perante os credores:
(...)
f) responsabilidade ilimitada e solidária entre os sócios, de forma subsidiária ao patrimônio social, atribuída: a todos os sócios de na sociedade em nome coletivo (...)” (NEGRÃO, Ricardo. “Manual de direito comercial e de empresa. v. 1 – 9ª ed.- São Paulo, Saraiva, p. 294/295”)
2 “Os tipos societários (raros) que contemplam sócios ilimitadamente responsáveis são a sociedade em nome coletivo e a sociedade em comandita, tanto a simples como a comandita por ações (ambas, somente em relação aos sócios comanditados). Tem-se, portanto, de plano, que o dispositivo não é endereçado aos sócios de sociedade anônima nem aos sócios de sociedade limitada. Por elementar regra de hermenêutica, nem o caput nem os parágrafos são aplicáveis às sociedades limitadas e às anônimas” (CAMIÑA, Alberto. – “Comentários à Lei de Recuperação de Empresas” - coord. Paulo Fernandes Campos Salles Toledo” – São Paulo: Thomson Reuters, 2021, p. 579).
3 Não obstante a intenção do legislador de limitar a prorrogação do stay period, considero que a interpretação do §4º do art. 6º da LRF não pode ser dissociada do objetivo da recuperação judicial, que é a de viabilizar a superação da crise pela empresa viável.
4 Nesse sentido, confira-se a ementa do Resp. 1.326.888/RS, de relatoria do e. Ministro Luis Felipe Salomão, j. 08/04/2014: “DIREITO CIVIL E EMPRESARIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. HOMOLOGAÇÃO DO PLANO. NOVAÇÃO SUI GENERIS. EFEITOS SOBRE TERCEIROS COOBRIGADOS. EXTINÇÃO DA EXECUÇÃO. DESCABIMENTO. MANUTENÇÃO DAS GARANTIAS. ARTS. 49, § 1º E 59, CAPUT, DA LEI N. 11.101/2005. 1. A novação prevista na lei civil é bem diversa daquela disciplinada na Lei n. 11.101/2005. Se a novação civil faz, como regra, extinguir as garantias da dívida, inclusive as reais prestadas por terceiros estranhos ao pacto (art. 364 do Código Civil), a novação decorrente do plano de recuperação traz como regra, ao reverso, a manutenção das garantias (art. 59, caput, da Lei n. 11.101/2005), sobretudo as reais, as quais só serão suprimidas ou substituídas "mediante aprovação expressa do credor titular da respectiva garantia", por ocasião da alienação do bem gravado (art. 50, § 1º). Assim, o plano de recuperação judicial opera uma novação sui generis e sempre sujeita a uma condição resolutiva, que é o eventual descumprimento do que ficou acertado no plano (art. 61, § 2º, da Lei n. 11.101/2005). 2. Portanto, muito embora o plano de recuperação judicial opere novação das dívidas a ele submetidas, as garantias reais ou fidejussórias, de regra, são preservadas, circunstância que possibilita ao credor exercer seus direitos contra terceiros garantidores e impõe a manutenção das ações e execuções aforadas em face de fiadores, avalistas ou coobrigados em geral. 3. Deveras, não haveria lógica no sistema se a conservação dos direitos e privilégios dos credores contra coobrigados, fiadores e obrigados de regresso (art. 49, § 1º, da Lei n. 11.101/2005) dissesse respeito apenas ao interregno temporal que medeia o deferimento da recuperação e a aprovação do plano, cessando tais direitos após a concessão definitiva com a homologação judicial. 4. Recurso especial não provido.”
5 “EXECUÇÃO. TÍTULO EXTRAJUDICIAL. AVALISTAS. EMPRESA EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO.INADMISSIBILIDADE.
(...)
O art. 6º da Lei 11.101/05 não se aplica ao caso concreto. O citado artigo refere-se a suspensão de todas as ações e execuções em face do devedor, e o devedor que está em recuperação judicial é a Arantes Alimentos Ltda., e não os avalistas, pessoas físicas. Mantida a decisão agravada, haveria, também, violação ao art. 52, inciso III, da Lei 11.101/05, e pela mesma razão adunada anteriormente, pois o inciso III se refere ao devedor em recuperação.
E mais, o § 1º do art. 49 da Lei 11.101/05, preserva o direito dos credores do devedor em relação aos coobrigados, como o são os avalistas, qualidade afeta aos Agravados.
O pagamento a ser feito pelos Agravados virá, ao contrário do que se alega, auxiliar o processo de recuperação, pois retirará um ônus da recuperanda, favorecendo o objetivo preconizado no art. 47 da Lei 11.101/05 Recurso provido, nos termos do voto do Desembargador Relator.”
(TJRJ, AGRAVO DE INSTRUMENTO N.º 0008897-66.2010.8.19.0000, RICARDO RODRIGUES CARDOZO, 15ª CÂMARA CÍVEL, J. EM 8/6/2010).
“Agravo interno. Decisão monocrática em agravo de instrumento. Pode o Relator, com base nas disposições do art. 557, do Código de Processo Civil, negar seguimento ou dar provimento a recurso. Afastamento da preliminar. Recuperação judicial. Os créditos oriundos de adiantamento de contrato de câmbio são extraconcursais e, portanto, excluídos da recuperação judicial. Afastada a determinação de suspensão ou cancelamento de protesto na hipótese de credores extraconcursais. A recuperação judicial não afeta os direitos creditórios detidos em face de coobrigados, avalistas, e obrigados de regresso em geral, podendo o respectivo titular exercê-los em sua plenitude, sem qualquer limitação acarretada pelo estado. O plano de recuperação judicial não pode prever a extinção das execuções contra os avalistas e coobrigados, porque eles são terceiros e o plano de recuperação deve produzir efeitos somente com relação à empresa recuperanda. A suspensão atinge tão somente a pessoa jurídica devedora, restando afastados de tal benefício os eventuais coobrigados. Suspensão dos procedimentos extrajudiciais de consolidação de propriedade que deve ser limitada ao prazo legalmente previsto. Não trazendo a parte agravante qualquer argumento novo capaz de modificar o entendimento adotado na decisão monocrática hostilizada, apenas reeditando a tese anterior, improcede o recurso interposto. Agravo interno não provido.”
(TJRS, Agravo Interno no Agravo de Instrumento n.º 0475337-32.2014.8.21.7000, Relator Desembargador Ney Wiedmann Neto, 6ª Câmara Cível, j. em 11/12/2014).
6 Relator Ministro Luis Felipe Salomão, 2ª Seção, j. em 26/11/2014.