Insolvência em foco

As tutelas de urgência típicas e atípicas em processos de recuperação judicial de empresas

Uma explicação sistemática das possibilidades legais de utilização das medidas de urgência em processos de recuperação judicial: as típicas e as atípicas.

23/5/2023

O noticiário recente, em função de grandes processos de recuperação judicial de grupos econômicos distribuídos nos primeiros meses de 2023, trouxe à baila a discussão sobre a utilização de medidas de urgência pelas devedoras deferidas e implementadas mesmo antes do ajuizamento do processo de recuperação judicial propriamente dito.

Nesse sentido, faz-se necessária uma explicação sistemática das possibilidades legais de utilização das medidas de urgência em processos de recuperação judicial: as típicas e as atípicas.

Medidas de urgência atípicas são aquelas deferidas pelo magistrado com base no Poder Geral de Cautela previsto no art. 300 do Código de Processo Civil. Nesse sentido, o magistrado poderá determinar qualquer medida suficiente e necessária para garantir o resultado útil do processo, sempre que a parte demonstrar a plausibilidade do seu direito (fumus boni juris) e a existência de risco de dano irreparável ou de difícil reparação (periculum in mora).

Medidas de urgência típicas, por outro lado, são aquelas expressamente previstas e reguladas em lei. Nesse sentido, a lei define o conteúdo da medida, bem como o que seria exigido para a comprovação do fumus boni juris e/ou periculum in mora.

Em relação aos processos de recuperação empresarial, há duas medidas de urgência típicas, previstas e reguladas pela lei 11.101/05. São elas a medida prevista no art. 6º, parágrafo 12 e a medida prevista no art. 20-B, parágrafo primeiro.

O art. 6º, parágrafo 12, da Lei n. 11.101/05 previu e regulou a tutela antecipada de urgência em processos recuperacionais. Importante destacar que o cabimento dessa medida pressupõe necessariamente o prévio ajuizamento do pedido de recuperação. Trata-se de medida que visa antecipar, total ou parcialmente, os efeitos do deferimento do processamento de uma recuperação judicial.

No sistema de insolvência brasileiro, o deferimento do processamento de uma recuperação judicial é o marco inicial da incidência do conhecido stay period, ou seja, da suspensão das execuções ajuizadas contra o devedor e da proibição de qualquer forma de retenção, arresto, penhora, sequestro, busca e apreensão e constrição judicial ou extrajudicial sobre os bens do devedor, oriunda de demandas judiciais ou extrajudiciais cujos créditos ou obrigações sujeitem-se à recuperação judicial, conforme art. 6º da lei 11.101/05.

Entretanto, frequentemente há o transcurso de um tempo relevante entre a data da distribuição do pedido recuperacional e a data do deferimento do seu processamento, em razão da necessidade de detida análise judicial da presença dos requisitos legais ou mesmo em razão da determinação de uma constatação prévia, com fundamento no art. 51-A da Lei n. 11.101/05. Durante esses dias ou meses de espera do deferimento do processamento da recuperação judicial, a devedora fica sem a proteção do stay contra os seus credores. Daí podem resultar situações que coloquem em risco o resultado útil do processo de recuperação, com prejuízos irreparáveis à devedora e aos interesses maiores tutelados pelo sistema de insolvência, de natureza pública e social.

A lei não definiu para o caso dessa medida típica (antecipação total ou parcial do stay period) exigências específicas de comprovação do fumus boni juris e do periculum in mora, fazendo apenas remissão ao art. 300 do CPC, de modo que a devedora tem liberdade para demonstrar por qualquer meio a plausibilidade do seu direito e a presença do risco de dano irreparável ou de difícil reparação ao resultado útil do processo.

Nesse sentido, havendo a necessidade de proteção de ativos objeto de constrição judicial ou extrajudicial ou de atos de excussão por credores sujeitos à recuperação judicial, poderá a devedora requerer que o juiz antecipe para esse momento anterior ao deferimento do processamento da recuperação judicial, os efeitos do stay period, a fim de neutralizar o risco de dano irreparável decorrente do prosseguimento das referidas medidas executivas. Há casos, por exemplo, em que no momento do ajuizamento da recuperação judicial já existe um pré-aviso de corte do fornecimento de energia elétrica para a devedora, em razão de dívidas relativas ao não pagamento das faturas de consumo, a exigir que o juiz antecipe a impossibilidade de interrupção do serviço mesmo antes do deferimento do processamento da recuperação judicial.

Esses são, portanto, exemplos de tutela antecipada de urgência cabíveis de forma incidente no processo de recuperação judicial, com fundamento no art. 6º, parágrafo 12, da lei 11.101/05.

A segunda tutela de urgência típica em processos recuperacionais está regulada pelo art. 20-B, parágrafo primeiro, da lei 11.101/05. Trata-se de medida que traduz a essência do novo modelo de pré-insolvência criado pela reforma de 2020.

O legislador reformista criou uma ferramenta legal para que a devedora tente reestruturar suas atividades sem a necessidade do ajuizamento de medidas judiciais invasivas, custosas e que tragam dano reputacional relevante. Nesse sentido, a devedora poderá iniciar um procedimento de mediação ou conciliação extrajudicial, em caráter antecedente ao ajuizamento da recuperação judicial, com o objetivo de realizar acordos com seus credores e, ao fim e ao cabo, não ter a necessidade de lançar mão de remédios legais de reestruturação mais amargos, como a recuperação judicial ou extrajudicial.

Entretanto, confiar apenas na boa vontade de credores para empregar eficiência ao instituto da mediação ou conciliação antecedentes seria, no mínimo, ingênuo. Por essa razão, o legislador – inspirado no modelo francês e nos modelos asiáticos de pré-insolvência – criou uma medida de urgência que mimetiza o stay, determinando a suspensão das execuções e atos de constrição dos credores envolvidos na negociação durante o prazo de 60 dias. Essa medida tem por objetivo criar estímulos para que os credores se sentem à mesa para negociar, estabelecendo um ambiente mais propício à realização dos acordos.

O Fórum Nacional de Recuperação de Empresas e Falências – FONAREF do Conselho Nacional de Justiça editou diversos enunciados para orientar a boa aplicação dessa tutela de urgência.

Observa-se que é medida de urgência com conteúdo definido por lei, qual seja, a suspensão das execuções por 60 dias. Da mesma forma, a lei estabelece o que deve ser demonstrado pela devedora para comprovação do fumus boni juris: a) a devedora deve preencher os requisitos legais para requerer recuperação judicial (art. 48 da lei 11.101/05); b) a devedora já deve ter iniciado um procedimento de mediação ou conciliação numa câmara privada ou num Cejusc do tribunal competente. O periculum in mora, no caso, é in re ipsa, ou seja, a lei já presume que se não houver a suspensão das execuções o procedimento de mediação ou conciliação sofre risco de não ser eficiente, prejudicando os interesses tutelados pelo sistema de insolvência empresarial.

Mas, além dessas duas tutelas de urgências típicas, também há a possibilidade de utilização da tutela de urgência atípica em processos recuperacionais.

Trata-se da utilização do procedimento de tutela cautelar requerida em caráter antecedente ao ajuizamento da recuperação judicial, com fundamento nos artigos 305 e seguintes do CPC.

O Código de Processo Civil autoriza que a parte pleiteie tutela cautelar inominada em caráter antecedente ao ajuizamento do processo no qual discutirá sua pretensão de direito material. Nesse sentido, a devedora ajuíza essa medida cautelar buscando alguma proteção e, no prazo de 30 dias, deve ajuizar a ação principal (emendar a petição inicial da cautelar).

Já houve casos em que a devedora ajuizou pedido de tutela de urgência consistente na suspensão das execuções de seus credores, a fim de ajuizar no prazo de 30 dias o pedido de recuperação judicial.

Tratando-se de medida cautelar inominada, não há definição legal do conteúdo da tutela a ser deferida pelo magistrado, nem tampouco definição específica do que configuraria o fumus boni juris e o periculum in mora. Assim, pode a devedora requerer qualquer medida de proteção, desde que convença o magistrado de que existe fumaça do seu bom direito e de que a não concessão da cautela colocaria em risco o resultado útil do futuro processo de recuperação judicial.

O fundamento da utilização dos procedimentos de tutela cautelar requeridas em caráter antecedente é o art. 189 da lei 11.101/05, segundo o qual se aplicam aos procedimentos de insolvência empresarial as disposições do Código de Processo Civil, desde que não sejam incompatíveis com os princípios da lei de recuperação empresarial e falências.

Interessante notar que há grandes diferenças entre essa tutela inominada e a medida do art. 20-B da lei 11.101/05. Na tutela cautelar requerida em caráter antecedente, a devedora poderá requerer qualquer medida de proteção que terá duração de, no máximo, 30 dias quando, então, deverá ser ajuizada a ação de recuperação judicial; além disso, não há exigências legais prévias para a demonstração do fumus boni juris e do periculum in mora. Na medida do art. 20-B (pré-insolvência), por outro lado, a devedora poderá pleitear apenas a suspensão das execuções pelo prazo de 60 dias e desde que preencha os requisitos para requerer recuperação judicial (art. 48) e já tenha iniciado um procedimento de mediação ou conciliação extrajudiciais.

Essas são, portanto, as três possibilidades de utilização de medidas de urgência aplicáveis ao processo de recuperação empresarial, sendo imperioso o bom manejo dessas ferramentas para resguardar o resultado útil das reestruturações empresariais, com proteção dos empregos, da geração de riquezas, de tributos e da produção de produtos e serviços em prol da comunidade.

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Colunistas

Alberto Camiña Moreira é mestre e doutor pela PUC/SP. Advogado.

Alexandre Demetrius Pereira é mestre e doutor em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo. Pós-graduado (especialização) em Higiene Ocupacional pela Escola Politécnica da USP e em Gestão de Negócios pela Fundação Getúlio Vargas. Graduado em Ciências Contábeis pela FEA-USP. Foi professor de Direito Empresarial na Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, professor de pós-graduação no curso de Engenharia de Segurança do Trabalho do Programa de Educação Continuada (PECE) da Escola Politécnica da USP e professor de pós-graduação de matemática financeira, contabilidade e análise de demonstrações no Insper - Instituto de Ensino e Pesquisa.

Daniel Carnio Costa é juiz titular da 1ª vara de Falências e Recuperações Judiciais de SP. Graduado em Direito pela USP, mestre pela FADISP e doutor pela PUC/SP. Mestre em Direito Comparado pela Samford University/EUA. Pós-doutorando pela Universidade de Paris 1 - Panthéon/Sorbonne. Professor de Direito Empresarial da PUC/SP. Professor convidado da California Western School of Law. Membro do Grupo de Trabalho do Ministério da Fazenda para reforma da Lei de Recuperação de Empresas e Falências. Membro titular de cadeira da Academia Paulista de Magistrados e da Academia Paulista de Direito. Membro da INSOL International e do International Insolvency Institute. Autor de livros e artigos publicados no Brasil e no exterior.

Fabiana Solano é formada pela PUC/SP e tem LLM pela faculdade de Direito de Stanford - EUA. É sócia do Felsberg Advogados desde 2011. Foi foreign associate na área de insolvência do White & Case em Miami, onde atuou em processos de insolvência norte-americanos (Chapter 15) envolvendo empresas brasileiras. Atua na representação de devedores, credores e investidores em reestruturações privadas de dívidas e em processos de recuperação judicial, extrajudicial e falências. Em mais de 20 anos de atuação, participou dos casos mais relevantes de insolvência do país desde a entrada em vigor da lei 11.101/05, alguns deles vencedores ou finalistas do prêmio Deal of the Year da publicação Latin Lawyer.

João de Oliveira Rodrigues Filho é juiz de Direito da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da capital de São Paulo. Especialista em Direito Empresarial pela EPM. Professor do curso de pós-graduação em Falências e Recuperação Judicial da FADISP. Palestrante e conferencista.

Marcelo Sacramone é doutor e mestre em Direito Comercial pela USP. Professor de Direito Empresarial da PUC/SP. Juiz de Direito em exercício na 2ª vara de Falência e Recuperação Judicial de SP.

Márcio Souza Guimarães é professor doutor Visitante da Université Paris-Panthéon-Assas. Doutorado pela Université Toulouse 1 Capitole. Max Schmidheiny professor da Universidade de Saint Gallen. Foi membro do MP/RJ por 19 anos. Sócio de Márcio Guimarães/TWK Advogados, Árbitro e parecerista.

Otávio Joaquim Rodrigues Filho é mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Membro do IBR. Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo

Paulo Penalva Santos advogado no Rio de Janeiro e São Paulo. Procurador aposentado do Estado do Rio de Janeiro.