Introdução
Disputas são inerentes à realidade empresarial, que reúne uma miríade de diferentes interesses, naturalmente contrapostos – os dos empresários, dos acionistas, dos investidores, dentre muitos outros1. Estes conflitos de interesses tendem a aumentar significativamente no caso de uma crise econômico-financeira, elevando os custos de transação próprios de uma negociação para superação da crise. Nesta hipótese, a necessidade por uma solução célere e justa, como aquelas proporcionadas pela arbitragem, torna-se ainda mais premente, considerando a função social desempenhada pela empresa e o consequente interesse público em sua preservação. A crise da empresa demanda, assim, solução multidisciplinar2, tendo em vista o alcance de soluções que atendam os diversos interesses envolvidos nos procedimentos de insolvência3.
No presente ensaio, enfrentaremos aspectos relacionados à utilização da arbitragem em disputas que envolvam sociedades em recuperação judicial, extrajudicial e falidas, sob o ângulo da capacidade do empresário (individual ou sociedade empresária), notadamente a possibilidade da continuidade dos processos arbitrais já iniciados e a adesão da cláusula de arbitragem por um devedor insolvente.
Arbitrabilidade subjetiva e capacidade das partes
Como é cediço, o consentimento é a própria essência da arbitragem. Trata-se de instituto que representa uma exceção voluntária à regra constitucional da inafastabilidade da jurisdição estatal (art. 5º, inciso XXXV da Constituição Federal), devendo ser fruto de um acordo de vontades firmado entre as partes que decidem a ele se submeter. Nesse sentido, o professor Carlos Alberto Carmona4 afirma que o consentimento das partes para a submissão a um procedimento arbitral é essencial, uma vez que o efeito severo de afastar a jurisdição do Estado não pode ser deduzido, imaginado, intuído ou estendido5.
Há, assim, a análise do que se cunhou doutrinariamente de arbitrabilidade6, desdobrada em arbitrabilidade objetiva e arbitrabilidade subjetiva. A primeira consiste no adequado enquadramento da questão de mérito a ser apreciada como sendo direito patrimonial disponível, ou seja, aquela demanda que verse sobre direitos que possam ser livremente dispostos pelas partes, denominados de direitos disponíveis. Já a segunda consiste no enquadramento das partes ao comando normativo imposto pelo artigo 1º da Lei 9.307/1996, segundo o qual somente pessoas dotadas de capacidade jurídica podem figurar nos polos do procedimento arbitral, sendo, portanto, condição sine qua non para que celebrem convenção de arbitragem.
A capacidade jurídica é atributo da pessoa natural ou jurídica, complementando a personalidade jurídica7. Assim, tendo em vista que a existência da pessoa jurídica não é afetada pelo deferimento do processamento da recuperação judicial ou pelo decreto de falência, a sua capacidade jurídica, em que pese poder sofrer modificações, não é igualmente suprimida8 nestes casos, devendo ser analisada de diferentes maneiras, a depender de o devedor se encontrar em recuperação judicial, extrajudicial ou falência e, especificamente, se a convenção de arbitragem foi negociada antes ou durante o processo de insolvência empresarial.
Antes do processo de insolvência
Conforme mencionamos, o consentimento válido e expresso é o que vincula as partes a uma convenção de arbitragem. Logo, o caminho para identificar os efeitos de um processo de insolvência sobre uma cláusula de arbitragem é examinar se, no momento em que o acordo foi firmado, as partes – e especialmente o devedor insolvente – possuíam plena capacidade legal.
Durante o processo de recuperação judicial ou extrajudicial, o devedor é regularmente mantido na condução de suas atividades e na posse de seus bens9, sendo a manutenção da empresa o próprio objetivo do instituto, como se depreende do art. 47 da lei 11.101/200510. Assim, conforme precisa lição doutrinária11, a capacidade legal do devedor não sofre alterações com a deflagração da recuperação judicial ou extrajudicial.
Nesse cenário, a validade de uma cláusula de arbitragem previamente negociada é indiscutível, sendo indiferente se o procedimento arbitral teve início antes ou depois da recuperação judicial ou extrajudicial. Em ambos os momentos, considera-se válido o consentimento dado pelo devedor plenamente capaz quando da adesão à convenção de arbitragem, restando cumprido o requisito subjetivo (qual seja, a capacidade civil para contratar) imposto pelo art. 1º da Lei de Arbitragem. Ademais, como a arbitragem tem a natureza de processo de conhecimento, a decisão de processamento da recuperação não acarretará a suspensão das arbitragens em curso12, afastando a incidência do art. 6º da lei 11.101/200513.
Endossando tal entendimento é que, na qualidade de membro da comissão de juristas que assessorou o Deputado Hugo Leal na reforma da lei 11.101/2005, tive a oportunidade de sugerir proposta legislativa14, que se transformou no §9º do artigo 6º da referida lei15. O novo dispositivo reflete entendimento doutrinário já anteriormente consagrado no enunciado nº 6, da I Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios, organizada pelo Conselho da Justiça Federal16.
Em se tratando de um processo de falência, aplica-se análogo raciocínio. Com a decretação da falência e objetivando-se o melhor aproveitamento dos bens, ativos e recursos produtivos, tangíveis e intangíveis da empresa, o devedor é afastado de suas atividades e administração dos seus bens, sendo representado, no procedimento falimentar, pelo administrador judicial, a quem caberá cumprir com o compromisso arbitral validamente firmado pelo falido, anteriormente à decretação da quebra. Foi este o entendimento adotado no voto-vista da Ministra Nancy Andrighi do Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do Recurso Especial nº 1.355.831-SP17.
Desta forma, ainda que um dos efeitos da decisão de falência seja o afastamento do devedor da administração de seus bens, como determina o art. 103 da lei 11.101/200518, deve-se analisar se, no momento da adesão à convenção da arbitragem, a parte detinha plena capacidade legal. A posterior modificação desse cenário com o decreto falimentar torna-se irrelevante, uma vez que a verificação deve ser restrita ao momento da contratação, quando foi, de fato, concretizada a vontade das partes de se submeter à jurisdição arbitral19, entendimento este que vem sendo reiteradamente adotado pela jurisprudência brasileira20.
Por fim, o início ou o prosseguimento de uma arbitragem com a participação de um devedor insolvente não encontra obstáculos na falta de recursos para o custeio do procedimento, não constituindo este fato justificativa hábil para afastar uma convenção de arbitragem válida. Nesse caso, tanto o devedor em recuperação judicial ou extrajudicial, quanto a massa falida (devidamente representada pelo administrador judicial e com a autorização do juízo falimentar), poderão buscar um contrato de financiamento de disputas por terceiro (third party funding), acordo por meio do qual um terceiro aceita arcar com as despesas da arbitragem em troca de um percentual dos valores recebidos no caso de êxito, entendimento este já endossado em sede de doutrina21 e jurisprudência22.
O cenário acima explicitado sofre algumas alterações quando o devedor, já submetido a um processo de insolvência empresarial, pretende aderir a uma convenção de arbitragem, conforme explicitaremos a seguir.
Durante o processo de insolvência
Durante a recuperação judicial ou extrajudicial o devedor é regularmente mantido na condução de suas atividades e na posse de seus bens, mantendo-se inalterada sua capacidade. Como a única restrição legal aplicável à recuperação judicial, em relação a novos contratos, é a alienação ou oneração de bens ou direitos do ativo não circulante do devedor (art. 66 da lei 11.101/2005), não há qualquer obstáculo legal à celebração de contratos contendo compromisso arbitral relativo a direitos patrimoniais disponíveis, matéria inserida no âmbito da autonomia privada das partes. Para além de ser possível, a celebração de uma convenção de arbitragem por sociedade em recuperação judicial ou extrajudicial trata-se de opção recomendável, em razão da redução dos custos de transação para o procedimento de reestruturação.
A questão torna-se mais delicada quando tratamos do devedor submetido a um processo falimentar. Nesse caso, uma das principais consequências da sentença de falência é o afastamento do devedor da administração de seus bens, como determina o art. 103 da lei 11.101/200523. A partir de então, o administrador judicial será responsável não apenas pela administração do patrimônio da massa falida, mas também por representá-la em juízo, como determinam os arts. 22, III, ‘n’ e 76, parágrafo único, do referido diploma24.
Entretanto, a capacidade civil do devedor não é automaticamente extinta quando decretada a falência, tendo em vista que a massa falida exercerá os seus direitos, no que se inclui o direito de ser parte em juízo e de celebrar contratos. Como o falido é afastado da administração da empresa, o administrador judicial passa a ser responsável pela sua representação, devendo assumir a defesa da devedora (massa falida) no processo arbitral25. Por se tratar de entidade dotada de direitos, a massa falida pode aderir a uma cláusula de arbitragem, se o seu representante legal (o administrador judicial) assim optar, reputando-a como a solução adequada para a defesa de seus interesses26. Portanto, ainda que exista uma modificação em sua representação, sua arbitrabilidade subjetiva mantém-se inalterada27.
Outrossim, o surgimento do juízo universal falimentar (art. 76 da lei 11.101/2005) e a suspensão das execuções que versam sobre interesses da massa falida (art. 6º da lei 11.101/2005) não impedem o início de um procedimento arbitral. O objetivo das referidas disposições legais é impedir a promoção de medidas executivas individuais por parte dos credores, o que violaria o princípio da igualdade entre credores (par conditio creditorum), um dos pilares do procedimento falimentar. A jurisdição arbitral, por outro lado, tem natureza essencialmente cognitiva, sendo destituída de força executiva – razão pela qual a execução forçada de sentenças arbitrais depende, necessariamente, da adoção de medidas judiciais. Desta forma, a sentença arbitral não terá efeito automático sobre o patrimônio da massa falida, e sua execução dependerá, obrigatoriamente, de decisão do juízo falimentar sobre a inclusão no quadro geral de credores, assegurando a observância do indigitado princípio da par conditio creditorum.
Conclusão
Os procedimentos de insolvência empresarial não acarretam a supressão da capacidade dos agentes econômicos em crise: na recuperação judicial ou extrajudicial a capacidade do devedor permanece inalterada, havendo restrição, no primeiro caso, apenas sobre a disponibilidade dos bens do seu ativo não circulante. Na falência, a arbitrabilidade subjetiva da pessoa jurídica falida não é suprimida, sofrendo apenas modificação, em virtude da adequada representação da massa falida pelo administrador judicial, demonstrando, deste modo, a compatibilidade entre a arbitragem e os procedimentos de insolvência, desde que respeitadas as particularidades intrínsecas a cada instituto.
A reforma introduzida pela lei 14.112/2020, com a inserção do §9º ao artigo 6º da lei 11.101/2005, positivou este entendimento, conferindo um melhor posicionamento do Brasil no cenário jurídico internacional, fortalecendo, assim, o próprio instituto da arbitragem em relação ao direito das empresas em dificuldade.
Referências Bibliográficas
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1 GUIMARÃES, Márcio Souza. O Aumento do Capital Social como meio de Recuperação Judicial e a Desnecessária Submissão à Assembleia Geral de Acionistas. In: Direito Societário, Mercado de Capitais, Arbitragem e outros temas - Homenagem a Nelson Eizirik. São Paulo: Quartier Latin, 2020, p. 105.
2 A crise da empresa, nas palavras de Paulo Fernando Campos Salles de Toledo, “exige abordagem multifária. Vista sob apenas um ângulo, os demais ficariam a descoberto. E a solução, sendo incompleta, seria, por isso mesmo, inadequada”. TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de. Arbitragem e Insolvência. In: Revista de Arbitragem e Mediação. Vol. 20. São Paulo: Revista dos Tribunais, Jan-Mar, 2009, p. 25.
3 “Acerca da instauração de jurisdição privada para a resolução de conflitos advindos dos desdobramentos multifacetados da recuperação de empresas, instituída por intermédio da Lei 11.101, de 09.02.2005, algumas reflexões precisam ser feitas. De início, não se pode perder de vista o objeto litigioso que decorre dessas questões que envolvem os administradores da devedora e uma plêiade de credores, especialmente durante o período de dois anos seguintes ao deferimento pelo juiz da recuperação judicial e a aprovação do plano de recuperação, com possibilidades múltiplas (quiçá inimagináveis) de surgimento de conflitos de interesses e a certeza de que o eventual descumprimento por parte da sociedade devedora dará azo à transmudação em falência da sociedade”. FIGUEIRA Jr, Joel Dias. Arbitragem. 3ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 153.
4 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um Comentário à Lei 9.307/96. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 83.
5 É esta a norma inserta no Art. 1º da Lei de Arbitragem, que faz expressa menção à possibilidade de pessoas capazes utilizarem a arbitragem como método de resolução de disputas relativas a direitos patrimoniais disponíveis: “Art. 1º. As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis”.
6 Sobre o conceito, debruçam-se André Monteiro, José Antonio Fichtner e Sergio Manheimer, com apoio em autores de renome: “João Bosco Lee explica, por um lado, que ‘a arbitrabilidade stricto sensu se limita à análise da condição de validade da convenção de arbitragem’, sendo certo que ‘este conceito é utilizado amplamente pelo direito comparado’. Por outro lado, o autor afirma que a arbitrabilidade lato sensu ‘consiste em determinar preliminarmente o campo de aplicação da cláusula compromissória, para, em seguida, examinar se o litígio é susceptível de ser resolvido pela arbitragem’, valendo-se dizer que ‘esta aplicação é utilizada principalmente pelos tribunais norte-americanos’. Philippe Fouchard, Emmanuel Gaillard e Berthold Goldman lecionam que ‘the term arbitrability is sometimes given a broader meaning, covering the existence and validity of the parties’ consent to arbitration, as is the case with the terminology used by the United States Supreme Court’. Os autores, porém, entendem que ‘that meaning is liable to generate confusion and is not widely used in international practice’. Julian D. M. Lew, Loukas A. Mistelis e Stefan M. Kroll esclarecem que ‘in the US the term ‘arbitrability’ is often used in a wider sense covering the whole issue of the tribunal’s jurisdiction’. (…). A classificação realmente importante no que diz respeito à arbitrabilidade é aquela que a divide em subjetiva e objetiva. Referindo-se à arbitrabilidade objetiva e depois à arbitrabilidade subjetiva, Philippe Fouchard, Emmanuel Gaillard e Berthold Goldman ensinam que ‘this means, first, that the agreement must relate to subject-matter which is capable of being resolved by arbitration, and, second, that the agreement must have been entered into by parties entitled to submit their disputes to arbitration”. FICHTNER, José Antonio; MANNHEIMER, Sergio Nelson; MONTEIRO, André Luís. Teoria Geral da Arbitragem. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 223-224.
7 Sobre o tema da capacidade civil, é a doutrina de Caio Mário da Silva Pereira: “Aliada à ideia de personalidade, a ordem jurídica reconhece ao indivíduo a capacidade para a aquisição dos direitos e para exercê-los por si mesmo, diretamente, ou por intermédio (pela representação), ou com a assistência de outrem. Personalidade e capacidade completam-se: de nada valeria a personalidade sem a capacidade jurídica que se ajusta assim ao conteúdo da personalidade, na mesma e certa medida em que a utilização do direito integra a ideia de ser alguém titular dele.”. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 30ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 221.
8 “O caput do artigo 1º da Lei de Arbitragem estabelece dois pré-requisitos subjetivos com relação às partes de uma arbitragem: trata-se da existência e da capacidade dos sujeitos que integram os polos de um procedimento arbitral. O termo técnico ‘pessoa’ refere-se tanto ao artigo 1º do Código Civil, que trata das pessoas naturais, quanto aos artigos 40 a 52 do Código Civil, que trazem a definição de pessoa jurídica. (...). Quanto à existência das pessoas jurídicas de direito privado, os artigos 45 e 51 do Código determinam que ela tem início com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, e termina com o encerramento da liquidação e o cancelamento da inscrição no registro. Vale ressaltar que a decretação da falência e o processamento da recuperação judicial não têm impacto sobre a existência da pessoa jurídica. Segundo o Superior Tribunal de Justiça, ‘a decretação da falência, que enseja a dissolução, é o primeiro ato do procedimento e não importa, por si, na extinção da personalidade jurídica da sociedade. A extinção, precedida das fases de liquidação do patrimônio social e da partilha do saldo, dá-se somente ao fim do processo de liquidação, que, todavia, pode ser antes interrompido, se acaso revertidas as razões que ensejaram a dissolução”. SESTER, Peter Christian. Comentários à lei de arbitragem e à legislação extravagante. São Paulo: Quartier Latin, 2020, p. 96.
9 Em relação à recuperação judicial, o artigo 64 é enfático: “Durante o procedimento de recuperação judicial, o devedor ou seus administradores serão mantidos na condução da atividade empresarial, sob fiscalização do Comitê, se houver, e do administrador judicial, salvo se qualquer deles: (...)”. Não há dispositivo legal semelhante para a recuperação extrajudicial, em razão da lógica do instituto: procedimento que visa à homologação do plano de reestruturação apresentado, sem qualquer restrição à gestão da recuperanda.
10 Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.
11 “Importante notar, como explicado por Felipe Moraes, que a convenção de arbitragem celebrada antes da declaração da recuperação ou falência é negócio jurídico bilateral perfeito, ‘com efeitos já realizados por meio de opção pela arbitragem, com o consequente afastamento da jurisdição estatal. Portanto, não há que se falar em necessidade de interpelação do administrador judicial relacionada a contrato que produz efeitos esperados”. SESTER, Peter Christian. Comentários à lei de arbitragem e à legislação extravagante. São Paulo: Quartier Latin, 2020, p. 517.
12 “De forma análoga às ações de conhecimento, os procedimentos arbitrais não são suspensos pela concessão da recuperação judicial ou pela decretação da falência. A suspensão das ações em face do falido e da recuperanda visaria a assegurar o tratamento equivalente entre os credores e a satisfação de seus créditos nos termos do plano de recuperação judicial ou conforme a ordem de pagamento na falência. Não há qualquer risco de o credor ser satisfeito ou de retirar ativos em virtude do procedimento arbitral. As arbitragens visam a formar o título executivo, de modo a apurar o an debeatur (se é devido) e o quantum debeatur (quanto se é devido). Não há risco de retirada do bem da Massa Falida ou do empresário em recuperação, de modo que os procedimentos arbitrais devem ter prosseguimento normalmente.”. SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 108.
13 Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial implica:
II - suspensão das execuções ajuizadas contra o devedor, inclusive daquelas dos credores particulares do sócio solidário, relativas a créditos ou obrigações sujeitos à recuperação judicial ou à falência;
14 GUIMARÃES, Márcio Souza. A Arbitragem na Reforma da Lei de Falências e Recuperação Judicial – Lei 14.112/2020. FGV Blog de Arbitragem. Disponível aqui. Acesso em 5 de novembro de 2021.
15 §9º - o processamento da recuperação judicial ou a decretação da falência não autoriza o administrador judicial a recusar a eficácia da convenção de arbitragem, não impedindo ou suspendendo a instauração de procedimento arbitral.
16 “o processamento da recuperação judicial ou a decretação da falência não autoriza o administrador judicial a recusar a eficácia da convenção de arbitragem, não impede a instauração do procedimento arbitral, nem o suspende”.
17 “A partir de uma leitura sistemática da referida legislação e ainda à luz da teoria do diálogo das fontes, a natureza contratual da convenção de arbitragem, seja ela cláusula compromissória, cheia ou vazia, ou compromisso arbitral, não é suficiente para subordinar sua eficácia ao juízo de conveniência do administrador judicial, afastando-se o art. 117 da Lei de Falências. Isso porque, como já salientado, a convenção de arbitragem é, por si só, suficiente ao afastamento efetivo da jurisdição estatal, consumando, de pronto, renúncia definitiva, ainda que sujeita a condição suspensiva. Portanto, a superveniência da quebra não afasta a exigibilidade e a eficácia da convenção arbitral celebrada validamente pelas partes plenamente capazes no momento de sua contratação”. Superior Tribunal de Justiça. 3ª Turma. Recurso Especial nº 1.355.831-SP. Relator: Ministro Sidnei Beneti. Data do Julgamento: 19.03.2013. DJe: 22.04.2013, p. 18-19.
18 Art. 103. Desde a decretação da falência ou do sequestro, o devedor perde o direito de administrar os seus bens ou deles dispor.
19 Sobre o tema, Renato Stephan Grion, Luiz Fernando Valente de Paiva e Guilherme Piccardi de Andrade e Silva enfatizam que: “A convenção arbitral deverá ser considerada válida e eficaz se, no ato da contratação, havia capacidade plena da parte para a celebração de negócios jurídicos, e não no momento em que efetivamente surge o conflito a ser dirimido pela arbitragem. Ora, não fosse assim, estaria a validade da convenção arbitral sujeita, ad aeternum, a condições resolutivas, quais sejam, a eventual falta de capacidade contratual das partes envolvidas e a eventual indisponibilidade de seus respectivos direitos patrimoniais”. GRION, Renato Stephan; DE PAIVA, Luiz Fernando Valente; SILVA, Guilherme Piccardi de Andrade. A arbitragem no contexto das recuperações judiciais e extrajudiciais e das falências In: MELO, Leonardo de Campos; BENEDUZI, Renato Rezende (coord.). A reforma da arbitragem. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 90.
20 Por todos, destacamos trecho do acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em que o Desembargador Relator Ricardo Negrão consignou que “a superveniência da quebra não afasta a exigibilidade e a eficácia da convenção arbitral celebrada validamente pelas partes plenamente capazes no momento de sua contratação”. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Cível nº 1004662-51.2019.8.26.0510. 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial. Relator (a): Ricardo Negrão. Foro de Rio Claro - 4ª Vara Cível. Data do Julgamento: 18/03/2020. Data da Publicação: 18/03/2020. A respeito do tema, cite-se também trecho de acórdão da lavra do Des. Manoel Pereira Calças, em que restou consignado que: “(...) mesmo considerando-se que no processo de falência há interesses da coletividade dos credores do devedor comum, não se entrevê qualquer impedimento ao cumprimento de convenção de arbitragem pactuada anteriormente à decretação da falência, em cláusula prevista no contrato firmado por pessoas jurídicas, regularmente constituídas e presentadas na forma de seus atos constitutivos, com plena capacidade negocial e tendo por objeto direitos patrimoniais disponíveis (...).” Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Agravo de Instrumento nº 9044554-23.2007.8.26.0000. Relator (a): Pereira Calças. Órgão Julgador: N/A. Data do Julgamento: 25/06/2008. Data de Registro: 30/09/2008. Em caso diverso, quando do julgamento do Conflito de Competência nº 157.099 pela 2ª seção do Superior Tribunal de Justiça, o Ministro Marco Buzzi proferiu voto, consignando que o processamento da recuperação judicial “não tem o condão de impossibilitar o devido trâmite do processo arbitral e este, portanto, poderá prosseguir, observados seus limites materiais”. Superior Tribunal de Justiça. Conflito de Competência nº 157.099/RJ. Relator: Ministro Marco Buzzi. Relatora para Acórdão: Ministra Nancy Andrighi. Data do Julgamento: 10/10/2018. DJe: 30/10/2018.
21 GUIMARÃES, Márcio Souza. Arbitrabilidade Subjetiva, Capacidade da Parte, Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência. In: Arbitragem, Mediação, Falência e Recuperação. MONTEIRO, André; VERÇOSA, Fabiane; FONSECA, Geraldo (coord.). São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p. 113. SESTER, Peter Christian. Comentários à lei de arbitragem e à legislação extravagante. São Paulo: Quartier Latin, 2020, p. 517. Sobre o tema, conferir também: CARDOSO, Marcelo Carvalho Engholm. Arbitragem e Financiamento por Terceiros. São Paulo: Almedina, 2020 e VASCONCELOS, Ronaldo; CARNAÚBA, César Augusto Martins; HANESAKA, Thais D’Angelo da Silva. Financiamento de terceiros e arbitragem no processo concursal. In: LEE, João Bosco; MANGE, Flavia. Revista Brasileira de Arbitragem. Vol. XVI. São Paulo: Comitê Brasileiro de Arbitragem, 2019.
22 Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1598220/RN. 3ª Turma. Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Data do Julgamento: 25/06/2019. DJe: 01/07/2019. No caso, a corte adotou o entendimento de que a validade da cláusula de arbitragem não pode ser afastada pela alegação de vulnerabilidade de uma das partes, no que se inclui, logicamente, a vulnerabilidade econômica do devedor insolvente.
23 Art. 103. Desde a decretação da falência ou do sequestro, o devedor perde o direito de administrar os seus bens ou deles dispor.
24 Art. 22, III, ‘n’ – “representar a massa falida em juízo, contratando, se necessário, advogado, cujos honorários serão previamente ajustados e aprovados pelo Comitê de Credores”. Art.76, parágrafo único – “Todas as ações, inclusive as excetuadas no caput deste artigo, terão prosseguimento com o administrador judicial, que deverá ser intimado para representar a massa falida, sob pena de nulidade do processo.”
25 GUIMARÃES, Márcio Souza. Insolvency and Arbitration In: International Arbitration – Law and Practive in Brazil. SESTER, Peter (coord.). Oxford: Oxford University Press, 2020, p. 499.
26 No mesmo sentido, Paulo Fernando Campos Salles de Toledo critica posição doutrinária contrária à celebração de convenção de arbitragem na pendência de processo falimentar: “A assertiva é, no entanto, questionável: quem não pode celebrar a convenção é o falido, que perde a administração de seus bens. Mas, pergunta-se, e o administrador judicial, representando a massa, pode? (...) Seria aplicável ao caso, por extensão, a regra segundo a qual o administrador judicial, desde que autorizado judicialmente, pode ‘transigir sobre obrigações e direitos da massa falida e conceber abatimento de dívidas’ (...). TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de. Arbitragem e insolvência In: WALD, Arnoldo (Org.). Arbitragem e mediação: arbitragem aplicada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 522-523.
27 Aqui cabe o entendimento de que, caracterizando-se a arbitragem como verdadeira jurisdição privada, aplica-se à massa falida a mesma representação que é realizada pelo administrador judicial nos processos jurisdicionais estatais, que se dá igualmente em outros ordenamentos jurídicos, como nos Estados Unidos da América, em que o trustee age como representante da massa falida e é encarregado de administrar seus bens e proteger os direitos dos credores. É o que se depreende da Section 704 do Chapter 7 do U.S Bankruptcy Code. Na Inglaterra a mesma previsão se encontra no Chapter VII do Insolvency Act de 1986 (Inglaterra) e na França no art. L. 811-1 do seu Código Comercial.