Insolvência em foco

Alguns apontamentos sobre o procedimento de habilitações e impugnações de crédito nos processos de falência e recuperação judicial

O tratamento sobre habilitações e impugnações de crédito ainda não possui o amadurecimento necessário na doutrina e jurisprudência.

9/8/2022

O tratamento sobre habilitações e impugnações de crédito ainda não possui o amadurecimento necessário na doutrina e jurisprudência. Faço essa afirmação com base nos mais variados entendimentos sobre o tema e a profusão de situações que são vistas na prática forense.

Por habilitação de crédito se entende a pretensão de ver seu crédito incluído no quadro geral de credores em processo de recuperação judicial ou de falência. Já os incidentes de impugnação ou divergência de crédito visam a correção de determinado crédito incluído, seja para modificar a classificação dada ao valor ou natureza do crédito, ou até mesmo para que se proporcione a exclusão de determinado crédito incluído pelo devedor ou pelo administrador judicial.

Entretanto, o tema assume profundo relevo uma vez que são tais incidentes que ocasionam o grande volume de processos a serem julgados nas competências de falências e recuperações judiciais na justiça brasileira.

Só na 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo, existe em tramitação o número de 18.792 processos, entre feitos principais e incidentes a eles relacionados.

Além dos impactos na gestão judicial, a se considerar a otimização das rotinas judiciais e cartorárias para o cumprimento da razoável duração do processo (CF, art. 5º, LXXVIII), o grande volume dos processos nos quais tais questões são discutidas trazem implicações de ordem processual e tributária, na medida em que algumas legislações estaduais preveem o recolhimento de taxa judiciária para as habilitações retardatárias.

Um primeiro problema enfrentado é que os incidentes de habilitação ou impugnação de créditos são resolvidos por decisões de mérito e não por sentenças. Tal circunstância ocasiona uma falsa percepção de produtividade judiciária em varas judiciais, pois, mesmo decidindo centenas ou milhares de processos, pela incompreensão dessa realidade diante do baixo número de sentenças prolatadas em feitos ligados à recuperação judicial ou falência, há a incorreta percepção de pouca produção das magistradas ou magistrados que atuam em tal competência.

A situação, antes de 2018, no âmbito do Tribunal de Justiça de São Paulo, era ainda pior, pois a distribuição de um processo de habilitação ou divergência de crédito sequer era computada, para fins de contagem do número de processos da vara judicial, o que mudou após a edição do Comunicado CG 219/2018, o qual determinou que tais incidentes fossem distribuídos como ações judiciais autônomas, de modo a refletir a realidade das varas de falências e recuperações judiciais.

Por mais que a jurisprudência venha se firmando no sentido de que as decisões em incidentes de habilitação ou impugnação de créditos assemelhem-se a sentenças judiciais, a medição da produtividade em nível de competência de falências e recuperações judiciais ainda precisa de um melhor olhar, computando-se também as decisões de mérito e não somente sentenças judiciais.

Já em relação aos aspectos processuais e tributários relacionados a tais feitos, o primeiro ponto é saber se há diferenciação entre os incidentes.

Há certo consenso na doutrina e na jurisprudência acerca da inexistência de diferença processual entre ambas as espécies, seja pelo texto do art. 7º, § 1º, da lei 11.101/2005, seja por força do § 5º do art. 10 do aludido diploma legal, que preceitua ser aplicado o procedimento das impugnações de crédito para as habilitações retardatárias.

E o que são habilitações retardatárias?

Pela leitura do art. 10, caput, da lei 11.101/2005, serão retardatárias as habilitações não propostas no prazo de 15 dias junto ao administrador judicial, conforme mandamento do art. 7º, § 1º, da lei de regência.

Entretanto, nem sempre surgirá o interesse processual do credor em promover sua habilitação de crédito após a publicação do edital da lista da recuperanda/falida.

Um exemplo seria a supressão do crédito pelo administrador judicial na lista do art. 7º, § 2º, da lei 11.101/2005, momento a partir do qual teria o credor o interesse processual de buscar eventual correção na lista de credores do processo de recuperação judicial ou de falência. 

O entendimento que tem sido adotado na 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo, até o presente momento, é o de que as habilitações e impugnações de crédito (diante da similitude dos procedimentos) serão consideradas retardatárias quando, a parte, com interesse de agir, não tiver observado:

- O prazo de 15 dias previsto no art. 7, §1º, da Lei n. 11.101/05 ou,

- O prazo de 10 dias previsto no art. 8º da Lei n. 11.101/05.

E por serem retardatárias, os processos de habilitação e impugnação de crédito estão sujeitas ao recolhimento das custas nos termos do art. 4º, parágrafo 8º, da lei estadual 11.608/03, exceto no caso de pedido de gratuidade da justiça, que será analisado nos termos dos arts. 98 e ss. do CPC.

Por tal razão é que se faz a distinção acima mencionada, malgrada a existência de doutrina que desconsidera a previsão do art. 10 da lei 11.101/2005, sem apresentar a devida justificativa para sustentar tal posicionamento.

Há, ainda, outra controvérsia a ser dirimida, que reside em ser o prazo de 10 dias do art. 8º da lei 11.101/2005 peremptório ou não.

No julgamento do REsp 1.704.201-RS, o voto vencido do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino foi no sentido de se admitir a interposição de impugnações de crédito após o prazo do art. 8º da Lei 11.101/2005, observando-se o rito processual previsto nos arts. 13 a 15 do mencionado diploma legal, com necessidade de recolhimento de custas. Cito o seguinte o excerto:

Possível, pois, concluir que a homologação do quadro geral consolidado é o marco fatal para impugnações embasadas em fatos conhecidos pelos credores, mas não suscitados em momento oportuno. A apresentação de impugnação extemporânea, mas antes da homologação do quadro de credores, poderá, assim, ser conhecida, exigindo-se, apenas, do impugnante o pagamento das custas respectivas.

Todavia, no mencionado Recurso Especial, o voto vencedor foi da lavra da Ministra Nancy Andrighi, que considerou como peremptório o prazo do art. 8º para o credor-impugnante, verbis:

A norma do artigo retro citado contém regra de aplicação cogente, que revela, sem margem para dúvida acerca de seu alcance, a opção legislativa a incidir na hipótese concreta. Trata-se de prazo peremptório específico, estipulado expressamente na lei de regência. O dispositivo, assim, é ele próprio o resultado da ponderação, levada a cabo pelo legislador, entre quaisquer princípios potencialmente colidentes (isonomia versus celeridade processual, p.ex.), não havendo espaço, nessa medida, a se proceder a interpretações que lhe tirem por completo seus efeitos, sob pena de se fazer letra morta da escolha parlamentar.

Enquanto não consolidado o tema pela jurisprudência, para evitar maiores controvérsias sobre o tema e permitir o acesso à jurisdição, existem muitos precedentes no sentido de se admitir habilitações e impugnações retardatárias, até a consolidação do quadro geral de credores, cujo rito observará o previsto nos arts. 13 a 15 da lei 11.101/2005.

Como critério de tempestividade, todavia, ainda não há consenso, ora se aplicando os prazos constantes ou do art. 7º, parágrafo 1º ou do art. 8º, da legislação de regência, somado ao nascimento do interesse processual para intervenção da parte, ora somente se aplicando o prazo do art. 8º da lei 11.101/2005.

Como dito acima, no tocante às impugnações retardatárias, há entendimento de que a elas a lei 11.101/05 atribuiu as mesmas características e ritos das habilitações retardatárias (art. 10, §5º da lei 11.101/05), o que, por corolário lógico, implicaria, também, o recolhimento de custas (art. 10, §3º e §5º da lei 11.101/05).

Cito como precedente utilizado sobre o tema, o Agravo de Instrumento autos nº 2173513-77.2020.8.26.0000, da relatoria do Desembargador Grava Brazil, data do julgamento: 08/04/2021, verbis:

Agravo de instrumento – Incidente de impugnação de crédito – Decisão agravada que acolheu a alteração da classificação do crédito – Inconformismo das recuperandas – Não acolhimento - Pretensão do credor de alteração da classificação do crédito que possui conteúdo de impugnação de crédito (art. 8º, da Lei n. 11.101/05) – Impugnação de crédito retardatária que passou a ser expressamente reconhecida com a inclusão dos §§ 7º e 8º no art. 10 da Lei n. 11.101/05, com a reforma feita pela Lei n. 14.112/20 – Natureza alimentar do crédito discutido que ficou comprovada pelo teor da Confissão de Dívida, o qual é expresso a respeito da dívida ser originada de honorários advocatícios – Crédito relativo a honorários advocatícios que é equiparado ao crédito trabalhista – Crédito que fica mantido na Classe Trabalhista – Impugnação de crédito retardatária que se assemelha à habilitação de crédito retardatária no tocante ao recolhimento das custas iniciais (arts. 8º e 10 da Lei nº 11.101/05 e art. 4º, § 8º, da Lei Estadual nº 11.608/2003) – Contudo, o recolhimento de custas pelo credor, neste momento processual, não é necessário, tendo em vista a sucumbência das recuperandas e o disposto no art. 82, do CPC – Decisão mantida - Recurso desprovido. 

(TJSP;  Agravo de Instrumento 2173513-77.2020.8.26.0000; Relator (a): Grava Brazil; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Mairiporã - 2ª Vara; Data do Julgamento: 08/04/2021; Data de Registro: 08/04/2021) 

Importante registrar que se tem imposto maior rigor na apreciação de questão relativa ao recolhimento de custas em São Paulo, mediante a edição do Provimento CG 01/2020, que alterou o art. 102, § 6º do artigo 1.093, "caput" do art. 1.098 e §1º do artigo 1.275 das NSCGJ, adequando-os ao disposto no artigo 1.007 do Código de Processo Civil, determinando mais acuidade com a verificação de recolhimento das taxas judiciárias pelos Juízos de primeira instância.

Litigar no Brasil é barato. Em razão de uma visão de irrestrito acesso à jurisdição, tanto a concessão de justiça gratuita como a aplicação das taxas judiciárias têm sido um tema tratado de maneira lateral e insuficiente. Empiricamente é possível afirmar que a morosidade do sistema de justiça, nos dias atuais, está atrelada ao alto número de processos, ausência de filtro para o ajuizamento de demandas e recursos e uma cultura beligerante ainda ensinada nos bancos universitários.

Diante dos índices de alta produtividade do Poder Judiciário1, divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça, por mais que juízas, juízes e servidores se dediquem ao cumprimento de seu dever, não haverá a devida satisfação esperada pela população brasileira.

É preciso que modifiquemos nossa cultura jurídica com o fomento a métodos alternativos de resolução de conflitos, os quais devem prevalecer antes da fase judicial. Mas, se recorrer ao Judiciário for inevitável, é preciso maior acuidade com a concessão de benefícios processual, justamente para evitar a massificação de discussões judiciais, as quais, em matéria de falências e recuperações judiciais, funciona como meio de alavancagem processual na ilícita defesa de interesses não ligados aos fins dos procedimentos do sistema de insolvência.

É imprescindível, nessa toada, que o tratamento dos processos de habilitações e divergências de crédito, que ocupam volume de relevo no cotidiano forense, tenha um olhar mais assertivo da comunidade jurídica, para melhor fluidez em sua tramitação e resolução de conflitos em tempo adequado e sem que o processo seja utilizado para acorbertar interesses divorciados das finalidades da recuperação judicial e da falência, ao prolongar discussões como forma de evitar o pagamento de créditos ou, ainda, como maneira de pressionar determinada parte, para conseguir melhor poder de negociação.

__________

1 No ano de 2022, a 01ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo promoveu a baixa de 6.754 processos, um número maior do que de distribuição de novos feitos, para o mesmo período, que ficou em 5.184 processos (números de janeiro a julho de 2022)

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Alberto Camiña Moreira é mestre e doutor pela PUC/SP. Advogado.

Alexandre Demetrius Pereira é mestre e doutor em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo. Pós-graduado (especialização) em Higiene Ocupacional pela Escola Politécnica da USP e em Gestão de Negócios pela Fundação Getúlio Vargas. Graduado em Ciências Contábeis pela FEA-USP. Foi professor de Direito Empresarial na Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, professor de pós-graduação no curso de Engenharia de Segurança do Trabalho do Programa de Educação Continuada (PECE) da Escola Politécnica da USP e professor de pós-graduação de matemática financeira, contabilidade e análise de demonstrações no Insper - Instituto de Ensino e Pesquisa.

Daniel Carnio Costa é juiz titular da 1ª vara de Falências e Recuperações Judiciais de SP. Graduado em Direito pela USP, mestre pela FADISP e doutor pela PUC/SP. Mestre em Direito Comparado pela Samford University/EUA. Pós-doutorando pela Universidade de Paris 1 - Panthéon/Sorbonne. Professor de Direito Empresarial da PUC/SP. Professor convidado da California Western School of Law. Membro do Grupo de Trabalho do Ministério da Fazenda para reforma da Lei de Recuperação de Empresas e Falências. Membro titular de cadeira da Academia Paulista de Magistrados e da Academia Paulista de Direito. Membro da INSOL International e do International Insolvency Institute. Autor de livros e artigos publicados no Brasil e no exterior.

Fabiana Solano é formada pela PUC/SP e tem LLM pela faculdade de Direito de Stanford - EUA. É sócia do Felsberg Advogados desde 2011. Foi foreign associate na área de insolvência do White & Case em Miami, onde atuou em processos de insolvência norte-americanos (Chapter 15) envolvendo empresas brasileiras. Atua na representação de devedores, credores e investidores em reestruturações privadas de dívidas e em processos de recuperação judicial, extrajudicial e falências. Em mais de 20 anos de atuação, participou dos casos mais relevantes de insolvência do país desde a entrada em vigor da lei 11.101/05, alguns deles vencedores ou finalistas do prêmio Deal of the Year da publicação Latin Lawyer.

João de Oliveira Rodrigues Filho é juiz de Direito da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da capital de São Paulo. Especialista em Direito Empresarial pela EPM. Professor do curso de pós-graduação em Falências e Recuperação Judicial da FADISP. Palestrante e conferencista.

Marcelo Sacramone é doutor e mestre em Direito Comercial pela USP. Professor de Direito Empresarial da PUC/SP. Juiz de Direito em exercício na 2ª vara de Falência e Recuperação Judicial de SP.

Márcio Souza Guimarães é professor doutor Visitante da Université Paris-Panthéon-Assas. Doutorado pela Université Toulouse 1 Capitole. Max Schmidheiny professor da Universidade de Saint Gallen. Foi membro do MP/RJ por 19 anos. Sócio de Márcio Guimarães/TWK Advogados, Árbitro e parecerista.

Otávio Joaquim Rodrigues Filho é mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Membro do IBR. Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo

Paulo Penalva Santos advogado no Rio de Janeiro e São Paulo. Procurador aposentado do Estado do Rio de Janeiro.