Introdução
O direito das empresas em dificuldade tem por função responder ao risco inerente à atividade empresária. Inúmeros fatores econômicos, sociais, financeiros, jurídicos, sociais, dentre outros, podem levar o empresário (ou a sociedade empresária) ao enfrentamento de uma crise, de maior ou menor proporção. Diante de cada caso, o diagnóstico pode levar ao seu encerramento, com a falência, ou seu reerguimento, com a recuperação judicial ou extrajudicial. Entretanto, o manejo de tais institutos não acarretará, em regra, na incidência da desconsideração da personalidade jurídica, alcançando sócios e administradores, os quais não se confundem com a sociedade.
I. O instituto da desconsideração da personalidade jurídica
Mesmo passados muitos anos da previsão legal dos institutos de responsabilização, verifica-se ainda certa dificuldade em diferenciar o instituto da responsabilização dos sócios (a) e administradores de uma sociedade empresária (b), da desconsideração da personalidade jurídica. Ainda que ambos tenham como objetivo final a responsabilidade patrimonial de determinados agentes, cada um possui técnicas e pressupostos legais distintos.
A. Os mecanismos de responsabilização dos sócios e administradores
Há mais de cem anos, o Código Civil de 1916, estabeleceu expressamente no direito brasileiro o princípio da autonomia patrimonial. De acordo com o art. 20 daquele diploma1, a pessoa jurídica possui existência distinta da de seus membros, sendo capaz de deveres e direitos próprios, ostentando responsabilidade patrimonial própria. Nesse sentido, Pontes de Miranda2 já lecionava que:
Ser pessoa é ser capaz de direitos e deveres. Ser pessoa jurídica é ser capaz de direitos e deveres, separadamente; isto é, distinguidos o seu patrimônio e os patrimônios dos que a compõe, ou dirigem.
A previsão de autonomia patrimonial da pessoa jurídica foi um grande avanço para a atratividade dos investimentos, com a alocação de risco previsível. O sócio passou a ter noção perfeita do limite do risco do seu investimento, sabedor de que o máximo de perda (valor investido) é delimitado. Mesmo um século após o advento do Código Civil de 1916, e quase duas décadas da vigência no Código Civil de 2002, ainda foi necessária nova intervenção legislativa para explicitar o comando de 1916, o que se verificou com o novo art. 49-A do Código Civil, surgido com a Lei de Liberdade Econômica3.
Assim, a sociedade é uma pessoa jurídica de direito privado e possui personalidade jurídica própria, com aptidão para responder pelos atos que pratica, diretamente com o seu patrimônio; preceito secular, mas de tão difícil compreensão prática, como já defendemos4:
A pessoa jurídica é, assim, um instrumento indispensável para os incentivos empresariais dos agentes econômicos, dado que a sua criação proporcionou a limitação das eventuais perdas dos seus fundadores e a aglutinação de recursos dos sócios, permitindo a constituição de diversas sociedades que, se não fosse por sua criação jurídica (ficção jurídica), não existiriam.
Em decorrência de seu significativo papel de incentivo aos agentes econômicos, a recente reforma da lei 11.101/05, pela lei 14.112/20, também reiterou o postulado da autonomia patrimonial, como se depreende do seu art. 6º-C:
Art. 6º-C. É vedada atribuição de responsabilidade a terceiros em decorrência do mero inadimplemento de obrigações do devedor falido ou em recuperação judicial, ressalvadas as garantias reais e fidejussórias, bem como as demais hipóteses reguladas por esta lei.
Nesse contexto, a sociedade é uma ficção jurídica, com existência limitada ao plano meramente jurídico, mas com personalidade, patrimônio e vontade distintas das dos sócios.
Quanto à formação e manifestação de vontade das sociedades, nos sistemas jurídicos de tradição romano-germânica, adotou-se, comumente, a teoria organicista, em oposição à teoria da representação5. Assim, entende-se que a sociedade, por ser desprovida materialmente de meios próprios para manifestar sua vontade e realizar negócios jurídicos válidos de maneira autônoma, vale-se dos seus diversos órgãos para tanto.
Estes podem ser divididos em órgãos de deliberação - assembleia geral, no caso das sociedades anônimas, conforme o art. 121 da lei 6.404/766; ou reunião de sócios, no caso das sociedades limitadas, na forma do art. 1.072 do Código Civil7 -, de controle (conselho fiscal) ou de execução (administração, direção) sendo certo que o administrador ou diretor apenas expressa a vontade da sociedade e não a sua própria, executando e pondo em prática aquilo que foi deliberado no órgão próprio de deliberação social da pessoa jurídica, desde que instaurados de acordo com as previsões legais e estatutárias aplicáveis.
Nem sempre, entretanto, estes gestores atuam de acordo com os deveres e limites impostos pela lei e pelo objeto social. Podem atuar orientados por interesses diversos do interesse social, em benefício próprio, de terceiros ou mesmo de maneira contrária à lei. Desta forma, uma vez comprovada a extrapolação dos objetivos da sociedade ou a prática de atos abusivos por parte dos administradores, estes respondem pessoalmente pelos prejuízos causados.
Contudo, não se quer dizer que estamos diante do instituto da desconsideração da personalidade jurídica.
A responsabilidade do administrador de sociedades anônimas está indicada no art. 158 da lei 6.404/76:
Art. 158. O administrador não é pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da sociedade e em virtude de ato regular de gestão; responde, porém, civilmente, pelos prejuízos que causar, quando proceder:
I - dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo;
II - com violação da lei ou do estatuto.
No mesmo sentido, o art. 1.016 do Código Civil determina que os administradores respondem solidariamente perante a sociedade e os terceiros prejudicados, por culpa no desempenho de suas funções. Há ainda a possibilidade de aplicação supletiva das regras previstas na lei 6.404/76 às sociedades limitadas, na forma do parágrafo único do art. 1.053 do Código Civil, hipótese em que se autoriza a aplicação do já citado art. 158 daquele diploma para fins de responsabilização dos administradores pelo descumprimento de seus deveres.
Essas são as matrizes da responsabilidade dos administradores de sociedades empresárias.
Por outro lado, não se pode olvidar que, em determinados casos, prejuízos causados por condutas dos administradores estão abrangidos pelo próprio risco da atividade empresarial. A título de exemplo, o art. 159 da lei 6.404/76 prevê a possibilidade de exclusão da responsabilidade do administrador nos casos em que se comprove que agiu de boa-fé e visando ao interesse da companhia.
Trata-se de regra inspirada na denominada teoria da Business Judgement Rule, criada no direito norte-americano com o objetivo de orientar a análise da regularidade das decisões tomadas pelos administradores de sociedades anônimas, visando diferenciar uma decisão de gestão equivocada de eventuais abusos. A diretriz determina que o administrador não será responsabilizado pelos prejuízos decorrentes de determinada medida quando, agindo de boa-fé, tenha tomado a decisão de forma refletida, fundamentada e informada8.
Depreende-se, portanto, que a análise da responsabilização dos administradores não se confunde com o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, prevista no art. 50 do Código Civil.
Da mesma maneira, a lei prevê a possibilidade de responsabilização dos sócios controladores pelos prejuízos causados à sociedade e a terceiros, desde que presentes determinados pressupostos. Quando detentores de participação suficiente para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia – o que a lei denomina de poder de controle – podem ser responsabilizados em caso de abuso de poder, na forma do art. 117 da lei 6.404/769, aplicável subsidiariamente às sociedades regulamentadas pelo Código Civil.
O regramento de conduta do acionista ou sócio controlador está prevista no art. 116, parágrafo único, da lei 6.404/76, norma que reflete a necessidade de proteção do denominado tríplice interesse transindividual societário10, ao dispor que a companhia deve atender aos direitos e interesses (i) do capital; (ii) do trabalho e (iii) da sociedade:
Art. 116. P.ú. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender.
Assim, o abuso do poder de controle não é causa para a desconsideração da personalidade jurídica, mas de responsabilização do sócio controlador.
O enunciado 48 da I Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal bem exprime a assertiva, diferenciando a apuração da responsabilidade dos sócios, controladores e administradores da desconsideração da personalidade jurídica11:
A apuração da responsabilidade pessoal dos sócios, controladores e administradores feita independentemente da realização do ativo e da prova da sua insuficiência para cobrir o passivo, prevista no art. 82 da Lei n. 11.101/2005, não se refere aos casos de desconsideração da personalidade jurídica.
Diante do caso concreto, deve ser verificado se a hipótese é de abuso de poder de controle, na forma prevista na lei 6.404/76, ou de aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, com base no art. 50 do Código Civil, por se tratar de institutos diversos e com seus próprios requisitos legais.
- Leia a íntegra do artigo.
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1 Art. 20. As pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros.
2 Como tivemos a oportunidade de escrever: “Os dispositivos do Código Comercial (1850) referentes às sociedades davam margem à dúvida sobre a consideração da personalidade jurídica, ao asseverar que dentre os sócios, ao menos um deveria ser comerciante, nos termos dos artigos 311; 315 e 317. Em 1916, o Código Civil dirimiu qualquer controvérsia ao indicar o nascimento da personalidade jurídica (artigo 18), bem como ao asseverar que as pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros (artigo 20). O mesmo caminho foi percorrido pelo Novo Código Civil, nos artigos 45 e 985.” GUIMARÃES, Márcio Souza. Aspectos Modernos da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica. In: Revista da EMERJ. V. 7. N. 25. Rio de Janeiro: EMERJ, 2004, p. 231.
3 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo I. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970. p. 288.
4 Art. 49-A A pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores.
5 GUIMARÃES, Márcio Souza. Redirecionamento da execução fiscal: novos contornos da jurisprudência. In: ARAÚJO FILHO, Raul; MARCONI, Cid e ASFOR ROCHA, Tiago. (coord.) Temas Atuais e Polêmicos na JUSTIÇA FEDERAL. Editora JusPodivm, 2018, p. 2.
6 Assim esclarece José Edwaldo Tavares Borba: “Os órgãos administrativos são os que dão vida à sociedade, fazendo-a funcionar. São dois esses órgãos: o conselho de administração e a diretoria. (...). Os administradores têm vários deveres para com a sociedade, podendo-se afirmar que o primeiro de todos esses deveres é o de bem administrá-la; deve o administrador agir com a competência, eficiência e honestidade que seriam de esperar de um homem ‘ativo e probo’ que estivesse a cuidar de seu próprio negócio.” BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito Societário. 14ª ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 307-405. Corroborando a teoria organicista, o TJSP já decidiu que “a agravante é sociedade empresária, constituída como sociedade anônima, que não tem representante legal, mas sim, presentante legal, na correta terminologia de Pontes de Miranda. A sociedade se faz presente na Assembleia de Credores e em qualquer outro ato ou negócio jurídico por seus diretores ou administradores, observada a aplicação da teoria organicista e não a teoria da representação.” Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Seção de Direito Privado. Câmara Especial de Falências e Recuperações Judiciais. Agravo de Instrumento 429.581.4/3-00. Relator: Desembargador Manoel de Queiroz Pereira Calças. Data do Julgamento: 15.03.2006. p. 5.
7 Art. 121. A assembleia-geral, convocada e instalada de acordo com a lei e o estatuto, tem poderes para decidir todos os negócios relativos ao objeto da companhia e tomar as resoluções que julgar convenientes à sua defesa e desenvolvimento.
8 Art. 1.072. As deliberações dos sócios, obedecido o disposto no art. 1.010, serão tomadas em reunião ou em assembleia, conforme previsto no contrato social, devendo ser convocadas pelos administradores nos casos previstos em lei ou no contrato.
9 Sobre o tema, Alfredo de Assis Gonçalves Neto assevera que: “Por isso, na determinação da culpa, em qualquer de suas manifestações (in elegendo, in vigilando, por imprudência, negligência ou imperícia), com ou sem dolo, é preciso muita cautela para não inviabilizar o exercício dessa nobre profissão. É indispensável, na verificação da conduta do administrador, analisar sua postura profissional no cumprimento das suas obrigações, comparando-a com aquela que outra pessoa em igual posição normalmente faria se estivesse em seu lugar.” NETO, Alfredo de Assis Gonçalves. Direito de Empresa – Comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil. 9ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 262-263. No mesmo sentido, Nelson Eizirik esclarece que: “Como o dever de diligência não possui um conteúdo delimitado e não está codificado de maneira uniforme, foi desenvolvida, nos Estados Unidos, a partir do julgamento de ações de responsabilidade contra administradores, a chamada business judgement rule, para verificar se estes cumpriram o duty of care. A business judgement rule constitui um standard of judicial review, isto é, corporifica uma regra de controle judiciário sobre as decisões dos administradores, estabelecendo a presunção de que estes agiram de forma independente e desinteressada, com conhecimento e informações adequados, com boa-fé e acreditando que seus atos visaram a atender aos melhores interesses da companhia.” EIZIRIK, Nelson; GAAL, Ariádna B; PARENTE, Flávia e HENRIQUES, Marcus de Freitas. Mercado de Capitais – Regime Jurídico. 4ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2019. P, 567-581.
10 Art. 117. O acionista controlador responde pelos danos causados por atos praticados com abuso de poder.
11 SOUZA GUIMARÃES, Márcio. O Controle Difuso das Sociedades Anônimas pelo Ministério Público. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2005, p. 22.
12 No mesmo sentido, o STJ bem delineou a distinção entre estes institutos: “Não há como confundir a ação de responsabilidade dos sócios e administradores da sociedade falida (art. 6º do decreto-lei 7.661/45 e art. 82 da lei 11.101/05) com a desconsideração da personalidade jurídica da empresa. Na primeira, não há um sujeito oculto, ao contrário, é plenamente identificável e evidente, e sua ação infringe seus próprios deveres de sócio/administrador, ao passo que na segunda, supera-se a personalidade jurídica sob cujo manto se escondia a pessoa oculta, exatamente para evidenciá-la como verdadeira beneficiária dos atos fraudulentos. Ou seja, a ação de responsabilização societária, em regra, é medida que visa ao ressarcimento da sociedade por atos próprios dos sócios/administradores, ao passo que a desconsideração visa ao ressarcimento de credores por atos da sociedade, em benefício da pessoa oculta”. STJ. 4ª turma. REsp 1.180.191 - RJ. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Data do Julgamento: 05.04.2011. DJe: 09.06.2011. p. 2.