A reforma da Lei de Recuperação de Empresas e Falência buscou dar respostas a um sério problema de origem do modelo brasileiro de insolvência empresarial: a não sujeição do crédito fiscal e dos créditos garantidos fiduciariamente aos efeitos da recuperação judicial.
Muito embora a preservação de credores hold outs – não sujeitos aos efeitos de uma recuperação empresarial – contrarie a lógica do sistema de insolvência, uma vez que esse pressupõe que todos os credores sejam impedidos de avançar contra o patrimônio da devedora durante a negociação coletiva como condição para criação de ambiente adequado e estimulado de construção de consensos, o legislador brasileiro optou por excluir da recuperação judicial os créditos fiscais, bem como aqueles garantidos fiduciariamente (notadamente os créditos titularizados por instituições financeiras).
Essa opção política gerou graves incongruências sistêmicas. Como equacionar a situação em que um bem essencial de uma empresa em recuperação judicial acaba sendo atingido por atos de constrições provenientes de execuções de créditos não sujeitos aos efeitos da recuperação judicial? Nessa hipótese, cria-se um conflito entre o interesse do credor não sujeito e os interesses públicos e sociais envolvidos na recuperação da empresa, como a própria preservação da atividade e a função social da empresa. Vale dizer que muitas vezes a expropriação do ativo pertencente à empresa em recuperação judicial nos autos da execução do crédito não sujeito implicará na convolação em falência de uma empresa geradora de empregos, tributos, serviços ou produtos relevantes, com grande impacto social e em prejuízo à comunidade de credores atendida no processo recuperacional.
Em razão desse conflito de interesses, a jurisprudência do STJ evoluiu para reconhecer que, nas hipóteses do art. 49, parágrafo terceiro, bem como no caso dos créditos fiscais, cabe ao juízo da recuperação judicial decidir sobre a destinação dos ativos de empresa recuperanda que são objeto de constrição em execuções em curso por outros juízos fiscais ou cíveis.
Em outras palavras, o juízo da recuperação judicial será competente para aferir a essencialidade do ativo constrito na execução do crédito não sujeito aos efeitos concursais, autorizando ou não a sua expropriação naqueles autos, como forma de tutela do interesse prevalente nesse conflito, qual seja, o interesse público e social decorrente da preservação da empresa.
Assim, considerando que é o juízo da recuperação judicial quem tem uma visão mais completa da atuação da empresa e da importância daquele ativo específico na manutenção de suas atividades, deverá ele decidir sobre a possibilidade ou não de prosseguimento da execução fiscal ou cível extraconcursal.
Em razão disso, as devedoras passaram a utilizar o conflito de competência como ferramenta para buscar o reconhecimento judicial da competência do juízo recuperacional, bem como para obter uma determinação superior de suspensão da execução individual com preservação dos interesses maiores tutelados pela recuperação judicial.
Mas como compatibilizar o direito dos credores não sujeitos ao processo concursal de receber o que lhes é devido com o direito da sociedade em preservar a atividade da empresa em recuperação judicial?
Não seria também razoável que o fisco ou os credores com garantia fiduciária ficassem impedidos de prosseguir nas suas execuções por tempo indeterminado, em afronta ao direito legalmente estabelecido de não se sujeitarem aos efeitos do processo recuperacional.
Foi em razão desse problema que a reforma estabeleceu que, no caso dos credores garantidos fiduciariamente, caberá ao juízo da recuperação determinar a suspensão dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial durante o prazo de stay (180 dias, prorrogáveis por mais 180 dias), suspensão essa que deve ser implementada mediante cooperação. No caso das execuções fiscais, a lei passou a dizer que o juízo da recuperação judicial tem a competência para determinar a substituição dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial até o encerramento da recuperação judicial, a qual será implementada também mediante cooperação jurisdicional.
Perceba-se que tanto a suspensão dos atos de constrição, como sua substituição, deverá ser implementada mediante cooperação jurisdicional.
Diante dessa nova regulação legal, o entendimento do STJ evoluiu para reconhecer que seriam cabíveis conflitos de competência apenas quando houvesse concretamente uma divergência entre os juízos com relação à suspensão ou substituição dos atos de constrição sobre bens essenciais da devedora em recuperação judicial.
Tal entendimento é correto, vez que o simples deferimento do processamento da recuperação judicial não pode ser utilizado como motivo bastante para o conhecimento do conflito de competência.
Deverá haver uma decisão concreta do juízo da execução, determinando a constrição ou expropriação do bem, e uma decisão concreta do juízo da recuperação reconhecendo a essencialidade do mesmo bem.
Não há necessidade, todavia, de que já se tenha tentado a cooperação jurisdicional. Isso porque, a suspensão da execução ou da constrição do bem é medida essencial para que a própria cooperação jurisdicional ocorra.
É a suspensão da execução fiscal ou cível, onde se deu a constrição ou se pretende a expropriação do bem essencial para a recuperanda, que criará o ambiente adequado e estimulado para que a cooperação efetivamente aconteça.
É evidente que, podendo o juízo fiscal ou cível prosseguir na expropriação do bem, não haverá qualquer estímulo para que sejam envidados esforços para suspensão ou substituição dos atos de constrição. Essa situação, por óbvio, violará a competência legal do juízo da recuperação para determinar essa suspensão ou substituição do ato de constrição.
Por isso é que se afirma que o conflito de competência, desde que demonstrada a existência de decisões concretas e conflitantes entre os juízos sobre a destinação de ativos da recuperanda, deve ser conhecido pelo Tribunal competente (STJ nos casos de sua competência constitucional), mesmo que ainda não se tenha tentado a cooperação jurisdicional.
O próprio Superior Tribunal de Justiça já decidiu nesse sentido, afirmando que tem cabimento o conflito de competência com suspensão da execução individual como medida essencial para que ema implementada a cooperação jurisdicional.
Nesse sentido, confira-se:
Evidentemente, cabe ao Juízo da recuperação judicial definir a qualidade do bem de capital constrito na execução fiscal como essencial, bem como cabe àquele Juízo determinar a sua substituição por outro ativo da devedora em recuperação judicial, em atividade cooperativa com o Juízo da execução fiscal.
Assim, até que seja definida a qualidade do bem constrito e implementada a referida cooperação jurisdicional para sua substituição, deve a execução fiscal permanecer suspensa.
Verifica-se, portanto, a presença do fumus boni iuris relativo ao pedido de suspensão da execução fiscal.
O periculum in mora, por sua vez, está demonstrado por meio da decisão do Juízo suscitado, que determinou o prosseguimento da execução movida contra a empresa suscitante (fls. 33-35). (Min. Humberto Martins; Conflito de Competência 181.190 – AC; 2021/0221593-7)
Conclui-se, portanto, que a cooperação jurisdicional é a ferramenta adequada para que o juízo da recuperação exerça concretamente sua competência legal de determinar a suspensão ou substituição dos atos de constrição sobre bem essencial da empresa recuperanda, mas que a determinação da suspensão da execução individual é a medida essencial para que se crie o ambiente adequado para a efetiva realização da cooperação, o que poderá ser determinado pelo Tribunal superior competente no bojo de conflitos de competência, desde que haja demonstração concreta da existência de decisões conflitantes entre os juízos sobre a destinação do bem objeto da constrição.