Insolvência em foco

Uso do processo de recuperação judicial como meio para a fraude: crime falimentar ou fato atípico?

Uso do processo de recuperação judicial como meio para a fraude: crime falimentar ou fato atípico?

19/4/2022

Tivemos oportunidade de observar, nas últimas semanas, uma decisão inédita do Tribunal de Justiça de São Paulo, entendendo que, em caso de utilização do processo de recuperação judicial como meio de fraudar credores, caberia a inclusão dos sócios como devedores solidários.

Essa polêmica decisão analisou a questão sob a perspectiva cível. Cabe indagar, entretanto, as consequências da conduta no campo penal: a utilização do processo de recuperação judicial como meio para fraudar credores configuraria crime falimentar?

A questão, que pode parecer simples num primeiro momento, enseja diversos pontos problemáticos a serem resolvidos, o que tentaremos fazer a seguir.

Primeiramente, é preciso saber em qual tipo penal, em tese, poderia recair a conduta do devedor em recuperação que faz uso do processo de recuperação judicial para fins fraudulentos, em prejuízo aos seus credores.

Essa pergunta inicial apresenta resposta aparentemente simples: a conduta parece se subsumir ao tipo penal do art. 168, caput, da Lei de Recuperações e Falências (LREF), com a seguinte redação:

Art. 168. Praticar, antes ou depois da sentença que decretar a falência, conceder a recuperação judicial ou homologar a recuperação extrajudicial, ato fraudulento de que resulte ou possa resultar prejuízo aos credores, com o fim de obter ou assegurar vantagem indevida para si ou para outrem.

No entanto, a simplicidade aparente da tipificação é ilusória.

Como se sabe, conquanto possua distinções importantes, o tipo penal do art. 168 da LREF é delito falimentar semelhante ao crime de estelionato (art. 171 do CP), dele retirando o cerne de sua redação. Assim, o problema em tipificar no art. 168 da LREF a utilização do processo de recuperação como meio de fraude esbarra na tradição da jurisprudência brasileira, que considera atípico o estelionato quanto realizado por meio de processo judicial (o chamado "estelionato judiciário"), ressalvada a punição pelo crime (meio) de falsidade (se e quando existente) que não reste absorvido pelo estelionato. Nesse sentido, aliás, é quase unânime o entendimento dos tribunais:

RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. "ESTELIONATO JUDICIÁRIO". ATIPICIDADE. DETECÇÃO DA FRAUDE PELO JUÍZO NO CURSO DA AÇÃO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL PARCIALMENTE CARACTERIZADO. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. RECURSO PROVIDO. I - O posicionamento doutrinário e jurisprudencial, inclusive desta Corte Superior de Justiça, não admite a prática do delito de estelionato por meio do ajuizamento de ações judiciais.

II - Notadamente no caso dos autos, porquanto o Juiz do feito, ciente da apuração de suposta conduta criminosa em tese praticada pelo paciente em outros processos, determinou a realização de perícia na documentação acostada, bem como encaminhou representação contra o ora recorrente ao Ministério Público Estadual e à OAB/RJ.

III - Sendo a fraude passível de conhecimento e de fato apurada pelas vias ordinárias no curso do processo, é de se reconhecer a atipicidade da conduta atribuída ao recorrente em relação ao delito previsto no art. 171, § 3º, c/c art. 14, II, ambos do Código Penal, para trancamento da ação penal. Recurso ordinário provido. (RHC 81.174/RJ, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 03/08/2017, DJe 10/08/2017)

APELAÇÃO CRIMINAL - Condenação pela prática do crime de estelionato tentado (art. 171, "caput", c.c. o art. 14, II, ambos do CP) – Irresignação defensiva – Alegação de atipicidade da conduta reconhecida como sendo delito de "estelionato judiciário" – Acolhimento – Possibilidade, ainda que em tese, de se desvendar a fraude no curso da ação judicial em que foi praticada a conduta que afasta a tipificação expressa no art. 171 do CP - Precedentes - Insurgência ministerial visando a majoração da pena-base – Análise prejudicada, haja vista o provimento do apelo da Defesa – Recurso defensivo provido e ministerial prejudicado. (TJSP; Apelação Criminal 0027249-22.2015.8.26.0576; Relator (a): Cláudio Marques; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Criminal; Foro de São José do Rio Preto - 4ª Vara Criminal; Data do Julgamento: 12/12/2019; Data de Registro: 13/12/2019)

Diante desse óbice, poder-se-ia argumentar que, atípico no Brasil o "estelionato judiciário", também atípica, por analogia, seria a conduta do devedor que usa o processo de recuperação judicial para fraudar seus credores.

No entanto, a conclusão da atipicidade nos parece equivocada.

Primeiro porque, conquanto parecidos, existem diferenças substanciais entre o delito do art. 168 da LREF e o crime do art. 171 do CP, como já ressaltamos em obra sobre o tema:1

[O] delito em questão não se confunde com o estelionato definido no Código Penal, como se verá mais adiante, dado terem vítimas distintas (no crime falimentar, a comunidade de credores; no estelionato, pessoa(s) determinada(s)), não admitir o estelionato o mero prejuízo potencial (como se admite no crime falimentar), além da distinção de ânimo do agente.

Enquanto o delito de estelionato afeta usualmente vítimas individualizadas, o crime falimentar do art. 168 da LREF pode trazer prejuízo (efetivo ou potencial) a uma comunidade (por vezes indeterminada) de credores, além de atentar contra a administração da justiça.

Outrossim, cumpre salientar que os crimes falimentares definidos na LREF têm um importante papel de guardiões da lisura e da transparência dos processos de recuperação e de falência e, por consequência, das regras e balizas do sistema de mercado em que as entidades empresariais realizam seus negócios. A potencial punição criminal para seus autores visa garantir um efeito de dissuasão (deterrence effect) sobre condutas potencialmente danosas ao mercado. Proclamar a impunidade em relação à conduta em estudo, portanto, é equivalente a sujeitar o mercado a mais riscos e ao preço daí derivado (= aumento de custos de transação).

Mas não é só.

A tendência de países mais desenvolvidos nessa matéria é a tipificação de delitos cujas condutas envolvam a utilização de processos de recuperação como meio de fraude.

Como também já salientamos em obra própria, na legislação norte-americana, a utilização do processo falimentar ou de reorganização como meio para um resultado fraudulento em prejuízo aos credores é expressamente tipificada em lei como crime (Bankruptcy fraud – U.S. Code, Chapter 19, Title 18, § 157), cujo teor pedimos vênia para citar nos termos e na linguagem original:

A person who, having devised or intending to devise a scheme or artifice to defraud and for the purpose of executing or concealing such a scheme or artifice or attempting to do so-

(1) files a petition under title 11, including a fraudulent involuntary bankruptcy petition under section 303 of such title;

(2) files a document in a proceeding under title 11, including a fraudulent involuntary bankruptcy petition under section 303 of such title; or

(3) makes a false or fraudulent representation, claim, or promise concerning or in relation to a proceeding under title 11, including a fraudulent involuntary bankruptcy petition under section 303 of such title, at any time before or after the filing of the petition, or in relation to a proceeding falsely asserted to be pending under such title, shall be fined under this title, imprisoned not more than 5 years, or both."

Nesse mesmo sentido, argumentamos alhures que, na doutrina norte-americana,2 aponta-se alguns exemplos de utilização fraudulenta do processo, tais como: (1) o devedor que intencionalmente ganha a confiança de seus credores por determinado período de tempo, para conseguir o fornecimento de grandes quantidades de estoque a crédito, sem pagamento imediato, vendendo o estoque a vista a terceiros e ingressando com processo de recuperação para forçar a concessão de maiores prazos de pagamento, acordos para não pagar juros ou abatimento de valores (fraude conhecida como "bustout"); (2) O devedor que desvia os valores de empréstimo obtido com garantia hipotecária para outra pessoa jurídica, controlada pelo primeiro ou por pessoa a ele ligada, evitando a execução hipotecária pelo ingresso de processo de recuperação sem qualquer fundamento, beneficiando-se da suspensão de execuções (“automatic stay period”), em prejuízo do credor hipotecário (fraude conhecida como "skimming").

Em conclusão, temos que não se pode concordar, no campo dos crimes falimentares, com a mera aplicação da jurisprudência brasileira sobre a atipicidade do "estelionato judiciário", isso porque: (1) o crime do art. 168 da LREF é mais grave que o tipificado no art. 171 do CP, afeta maior número de vítimas e viola a própria credibilidade do Poder Judiciário; (2) eventual impunidade de fraudes em processos de recuperação podem representar severos riscos às expectativas de lisura em tais procedimentos, aumentando os riscos de mercado e os custos de transação inerentes; (3) a tendência de países mais desenvolvidos nessa matéria é tipificar a conduta em estudo.

__________

1 PEREIRA, Alexandre. Crimes Falimentares, Teoria, prática e questões de concursos comentadas. São Paulo: Malheiros, 2010.

2 WICKOUSKI, Stephanie. Bankruptcy crimes. Washington: Beard Books, 2007.

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Alberto Camiña Moreira é mestre e doutor pela PUC/SP. Advogado.

Alexandre Demetrius Pereira é mestre e doutor em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo. Pós-graduado (especialização) em Higiene Ocupacional pela Escola Politécnica da USP e em Gestão de Negócios pela Fundação Getúlio Vargas. Graduado em Ciências Contábeis pela FEA-USP. Foi professor de Direito Empresarial na Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, professor de pós-graduação no curso de Engenharia de Segurança do Trabalho do Programa de Educação Continuada (PECE) da Escola Politécnica da USP e professor de pós-graduação de matemática financeira, contabilidade e análise de demonstrações no Insper - Instituto de Ensino e Pesquisa.

Daniel Carnio Costa é juiz titular da 1ª vara de Falências e Recuperações Judiciais de SP. Graduado em Direito pela USP, mestre pela FADISP e doutor pela PUC/SP. Mestre em Direito Comparado pela Samford University/EUA. Pós-doutorando pela Universidade de Paris 1 - Panthéon/Sorbonne. Professor de Direito Empresarial da PUC/SP. Professor convidado da California Western School of Law. Membro do Grupo de Trabalho do Ministério da Fazenda para reforma da Lei de Recuperação de Empresas e Falências. Membro titular de cadeira da Academia Paulista de Magistrados e da Academia Paulista de Direito. Membro da INSOL International e do International Insolvency Institute. Autor de livros e artigos publicados no Brasil e no exterior.

Fabiana Solano é formada pela PUC/SP e tem LLM pela faculdade de Direito de Stanford - EUA. É sócia do Felsberg Advogados desde 2011. Foi foreign associate na área de insolvência do White & Case em Miami, onde atuou em processos de insolvência norte-americanos (Chapter 15) envolvendo empresas brasileiras. Atua na representação de devedores, credores e investidores em reestruturações privadas de dívidas e em processos de recuperação judicial, extrajudicial e falências. Em mais de 20 anos de atuação, participou dos casos mais relevantes de insolvência do país desde a entrada em vigor da lei 11.101/05, alguns deles vencedores ou finalistas do prêmio Deal of the Year da publicação Latin Lawyer.

João de Oliveira Rodrigues Filho é juiz de Direito da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da capital de São Paulo. Especialista em Direito Empresarial pela EPM. Professor do curso de pós-graduação em Falências e Recuperação Judicial da FADISP. Palestrante e conferencista.

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Otávio Joaquim Rodrigues Filho é mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Membro do IBR. Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo

Paulo Penalva Santos advogado no Rio de Janeiro e São Paulo. Procurador aposentado do Estado do Rio de Janeiro.