Insolvência em foco

Consolidação substancial e project finance

Rejeitar, prima facie, a consolidação substancial nessas hipóteses é assegurar a confiança do investidor, atraindo-o para o financiamento de longo prazo, tão necessário para a realização de obras de infraestrutura.

23/12/2021

Os empreendimentos de infraestrutura, de que o nosso país tanto carece, demandam vultosos investimentos. O financiamento para a construção desses empreendimentos depende de estudos muito sofisticados, e, em grande medida, há um cálculo para que o financiamento seja pago pelo faturamento que vier a ser obtido, no futuro, com aquela obra a ser construída.

O financiador sabe que nesse tipo de empreendimento há um tempo de projeto e um tempo de construção (muitas vezes, demorado) até a entrega da obra.  É a partir deste instante que se abre a possibilidade de cobrar pelo serviço usufruído pela população.

Os empréstimos para financiamento desses empreendimentos são de longo prazo, especialmente porque o pagamento ao financiador será feito com recursos auferidos pelo empreendimento financiado.

Nesse tipo de financiamento, os contratos são expressos na previsão de que o pagamento dar-se-á com os recursos obtidos pelo financiado decorrentes da exploração do empreendimento.

Há um vai e vem, no sentido de que o dinheiro do financiador vai para a obra, e o dinheiro da exploração da obra volta para o financiador.

Cada empreendimento é visto como um negócio isolado, pois é ele que vai se pagar. O risco é isolado no empreendimento em si, sem consideração relevante para com a própria pessoa do empreendedor. O risco não se transmite a outras unidades de negócio.

Tal é a noção de project finance, que se define como a “captação de recursos para financiar um projeto de investimento de capital economicamente separável, razão de ser das SPEs (Sociedades de Propósito Específico). Neste caso, os provedores de recursos veem o fluxo de caixa e/ou ativos do projeto como fonte primária de recursos para atender ao serviço da dívida (juros), mais a amortização do principal, a fim de fornecer um retorno compatível sobre o capital investido” (...).“Uma das características que distingue o project finance das demais modalidades de financiamento é a concessão de crédito a uma entidade jurídica segregada”1.

Há necessidade de se promover uma segregação jurídica e uma segregação econômico-financeira, pois cada operação deve ser apta a suportar o pagamento dos juros e o pagamento do principal.

Luis Ferreira Xavier Borges2, em estudo de 1998, ao apontar os figurantes de um clássico project finance, aponta o patrocinador, fornecedores de equipamentos, de serviços e de insumos, operador, comprador da produção, engenheiro independente, consultor de seguros, conselheiros legal e financeiro, financiador. Afirma que  

“Essas mesmas personagens podem coexistir no todo ou em parte, mas a figura da sociedade de propósito especial – special purpose company (SPC) – costuma ser uma constante, que se explica pela própria necessidade de segregar o risco e pelo imperativo de uma personalidade jurídica distinta daquela dos sócios para o veículo dos investimentos”.

Outro ponto destacado pela doutrina é

“A segregação de riscos e, consequentemente, de recursos entre os participantes torna essa estrutura de financiamento mais atrativa para os setores intensivos de capital, como o de infraestrutura”3.

Ilustre administrativista4, ao notar a aproximação dos instrumentos de direito privado na seara do direito público, escreveu que

“Para o project finance, a constituição da SPE é essencial. Ela figurará como a concessionária de serviço público, no polo prestador do contrato. Por meio dela, o projeto será isolado de quaisquer outros desenvolvidos pelos participantes e nela será administrado o fluxo de caixa do empreendimento (...)” (sem grifo no original).

“As garantias do project finance são precipuamente aquelas relativas aos ativos do projeto, os quais espelham a sua rentabilidade (o que mitiga mas não exclui a possibilidade de garantias dos responsáveis do projeto – no caso, os acionistas da SPE concessionária). O contrato de financiamento deixa, portanto, de ter a tradicional característica subjetiva que a ele desde sempre esteve associada (a pessoa-investidora como a razão suficiente para que o mútuo seja celebrado) e assume nota puramente objetiva (o investimento lui même como razão e garantia do empréstimo” (grifos do original).

Outro autor5 ensina que

“A SPE tem como uma de suas principais finalidades a segregação do risco da atividade concedida do risco das demais atividades desenvolvidas pelas sociedades componentes do grupo vencedor da licitação (normalmente um consórcio). Essa segregação é essencial para o project finance, que é baseado em análise e controle de riscos (...) Com a segregação, limita-se o risco assumido pelos financiadores/credores à atividade de prestação de serviço público”.

Tem-se, em síntese, a concepção de sociedades de propósito específico com a finalidade de captar recursos com maior facilidade, dada a segregação de riscos e a possibilidade de satisfação do crédito por meio de recursos gerados pelo próprio empreendimento financiado.

O isolamento dos riscos, por meio da constituição de sociedades de propósito específico, contribui para a obtenção de recursos; tudo fica isolado já na origem, tudo é segregado, de modo consciente, pelos empreendedores e pelos financiadores.

A constituição de uma pessoa jurídica já tem a finalidade de limitar o risco empresarial. Quando se concebe o mecanismo do project finance e a respectiva SPE, tem-se mente especial preocupação com a segregação de riscos, tanto pelo empreendedor como por parte do financiador.

Claro que o empreendedor de um projeto de grandes dimensões poderá estar integrado a um grupo empresarial, e esse grupo empresarial poderá experimentar crise econômico-financeira, a ponto de necessitar ajuizar uma recuperação judicial.

No âmbito do processo de recuperação judicial poderá ser discutida a chamada consolidação substancial. E é aqui que nasce a conexão entre os dois termos deste artigo. Que papel desempenha o project finance na recuperação judicial.

Na consolidação substancial há episódica criação ficcional de uma única entidade devedora, pois todos os devedores são considerados como se fossem um só, e os ativos de todas as empresas em recuperação são reunidos para a satisfação dos credores. Trata-se de uma das consequências da consolidação substancial, nos termos expressos do artigo 69-K da Lei 11.101/05: “Em decorrência da consolidação substancial, ativos e passivos de devedores serão tratados como se pertencessem a um único devedor”.

Segundo o artigo 69-J, é requisito da consolidação substancial a “confusão entre ativos ou passivos dos devedores”. É aqui que surge o conflito entre a consolidação substancial e a SPE criada com recursos oriundos do project finance.

A consolidação substancial representa a mistura de todos os empreendimentos como se fossem um só, o que “destrói as bases que fundamentam o cálculo do risco envolvido nos negócios”[6], e isso é o oposto do project finance, que é concebido para se manter isolado até o pagamento do financiamento.

No julgamento do AI 2198895-43.2018.8.26.0000, a 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJSP entendeu que “Não há que se falar na suspensão total do pagamento dos financiadores, o que seria danoso ao sistema de financiamento de infraestrutura, já que a principal garantia do project finance não teria qualquer serventia diante de dificuldades financeiras enfrentadas pelas concessionarias”. Nesse caso, os recebíveis do empreendimento (aeroporto) estavam cedidos em alienação fiduciária.

Outro julgado, o AI 2297840- 94.2020.8.26.0000, este da 2ª Câmara Reservada, também faz referência ao project finance, todavia, sem discutir as consequências desse arranjo financeiro no âmbito do processo de recuperação (concessionária de rodovia, remunerada por pedágio).

A consolidação substancial não se afeiçoa à ideia do project finance, cuja deliberada e necessária segregação, jurídica e financeira, tem a vocação de permanecer isolada, ainda que o devedor integre um grupo empresarial. A garantia do financiamento é o próprio empreendimento (ou melhor, os recebíveis do empreendimento), mais que os empreendedores, ainda que estes tenham, eventualmente, prestado outras garantias.

A confiança do financiador advém do próprio empreendimento a ser financiado, segundo estudos econômicos e financeiros de consultorias especializadas. Por isso, o foco da garantia são os recebíveis gerados pelo projeto financiado, e as considerações de ordem subjetiva, especialmente à garantia, são colocadas em segundo plano. Por essa razão, não influenciam na consolidação substancial.

Em rápidas palavras, e à guisa de conclusão, deve ser dito que a regra é a inadmissibilidade da consolidação substancial envolvendo sociedade de propósito específico concebida para a construção de determinado empreendimento, garantido pelos respectivos recebíveis, dada a especial segregação dos riscos envolvendo esse negócio.

Rejeitar, prima facie, a consolidação substancial nessas hipóteses é assegurar a confiança do investidor, atraindo-o para o financiamento de longo prazo, tão necessário para a realização de obras de infraestrutura. Certamente, somente em circunstâncias muito excepcionais, é de ser admitida a consolidação substancial entre empresas de um mesmo grupo econômico, em que esteja presente negócio financiado por meio de project finance.

_____________

1 Luis Ferreira Xavier Borges e Viviana Cardoso de Sá e Faria. Project Finance: Considerações sobre a aplicação em infraestrutura no Brasil. Revista do BNDES, v. 9, n. 18, dez. 2002, p. 244. Os autores louvam-se em Finerty.

2 Project finance e infraestrutura: descrição e críticas. Revista do BNDES, v. 5, n. 9, p. 108.

3 Ob. Cit., p. 271.

4 Egon Bockmann Moreira, Concessões de serviços públicos e project finance. Revista Zênite de Licitações e Contratos, n. 199, setembro 2010, p. 870.

5 Henrique Bastos Rocha. Project finance e serviço público, in  Direito Administrativo. Estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto. Coord. Fábio Medina Osório e Marcos Juruena Villela Souto. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006,  p. 839.

6 Gilberto Deon Corrêa Júnior, A consolidação substantiva no direito americano. Artigo publicado na Revista Ajuris, 73, 1998, página 2 da versão eletrônica.

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