Insolvência em foco

Conciliações e mediações antecedentes: O sistema brasileiro de pré-insolvência empresarial

Conciliações e mediações antecedentes: O sistema brasileiro de pré-insolvência empresarial.

28/9/2021

A lei 14.112/20, em vigor desde 23 de janeiro de 2021, promoveu recente e importante alteração no sistema de insolvência empresarial brasileiro, alterando substancialmente o texto da lei 11.101/05, que regula a recuperação judicial, extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária.

A reforma aprimorou algumas das ferramentas jurídicas já existentes no nosso sistema de insolvência empresarial, mas também trouxe ferramentas novas, introduzindo importantes mecanismos para o tratamento mais eficaz da crise da empresa.

Dentre as novidades trazidas pela reforma, pode-se citar o sistema de pré-insolvência empresarial, criado sob inspiração do modelo francês da conciliacion e do mandat ad hoc, da Diretiva da União Europeia 2019/1023 e da moratorium do direito britânico, criada pelo Corporate Insolvency and Governance Act de 2020.

Conforme já explicado em artigo1 publicado no Migalhas, comentando o sistema de pré-insolvência ainda na fase de projeto:

O sistema de pré-insolvência criado pelo PL 4458/20 cria estímulos para que empresas devedoras busquem a renegociação coletiva de suas dívidas de forma predominantemente extrajudicial, com mínima intervenção judicial. A utilização da mediação e da conciliação preventivas necessita da criação de estímulos para que seja eficaz e adequada. Nesse sentido, é preciso proteger o devedor de execuções individuais, como condição para que se crie um espaço adequado para realização dos acordos com os credores. Os credores somente se sentarão à mesa para negociar se não puderem prosseguir nas suas execuções individuais. Por outro lado, a devedora somente terá condições de propor um acordo aos seus credores se tiver um espaço de respiro e uma proteção contra os ataques patrimoniais provenientes de ações individuais. Da mesma forma, um credor somente se sentirá seguro para negociar se houver uma proteção ao acordo entabulado, evitando-se que seja prejudicado pelo uso sucessivo de um processo de insolvência. De igual modo, deve-se cuidar para que os devedores não façam uso predatório dessa ferramenta, apenas com o intuito de prolongar a proteção do stay contra os credores.

Tendo em vista essas premissas, o projeto estimula a conciliação e a mediação nos CEJUSCs, criando-se alternativa extrajudicial de renegociação das dívidas. Por outro lado, oferece à devedora a essencial proteção do stay, típico da recuperação judicial, a fim de se criar um ambiente adequado à negociação coletiva. Considerando que a determinação de suspensão de ações deve ser judicial - só uma decisão judicial pode ter o condão de suspender o andamento de ações judiciais - o mecanismo oferece à devedora a oportunidade de requerer ao juízo competente a medida de stay com natureza cautelar, eventualmente preparatória de futura recuperação judicial. No entanto, a fim de se evitar a utilização do mecanismo apenas como uma forma de alongar a proteção típica de uma recuperação judicial, o projeto determina que o prazo de proteção antecipado à devedora durante as negociações no CEJUSC será descontado do prazo de stay típico.

Superada a discussão travada durante o processo legislativo, o sistema de pré-insolvência brasileiro tornou-se realidade e se encontra regulado na Seção II-A da lei 11.101/05 pelos artigos 20-A a 20-D.

Nesse sentido, faz-se importante destacar algumas características bastante práticas para orientação de utilização desse novel instituto no direito brasileiro.

De início, vale destacar que a utilização dessa ferramenta pressupõe o entendimento de que a lei trouxe uma gradação no tratamento da crise da empresa. Nesse sentido, o sistema de pré-insolvência foi pensado para ser utilizado como ferramenta eficaz para o tratamento precoce da crise da empresa, num momento em que a situação econômico-financeira da devedora ainda não é de extrema gravidade. Essa é a razão pela qual o art. 20-B, parágrafo primeiro, dispõe que a suspensão das execuções, no bojo de um procedimento de mediação ou conciliação prévia, poderá ser obtida por empresas em dificuldade e não necessariamente empresas insolventes.

O sistema estimula o uso dessa ferramenta por empresas que estejam em dificuldades, mas que ainda tenham condições de negociar com seus credores em condições de equalizar seu passivo e reestruturar suas atividades empresariais com intervenção judicial mínima.

Portanto, o sistema de pré-insolvência mostra-se como ferramenta adequada para o tratamento da crise do empresário individual, da micro e da pequena empresa, seja pelo perfil mais simples das suas crises, seja pela menor quantidade de credores envolvidos na negociação. Destaca-se, também, que esses procedimentos possuem menor custo, se comparados à recuperação judicial ou extrajudicial, ampliando-se o acesso à mecanismos de reestruturação para micro e pequenas empresas

É certo que até mesmo grandes empresas podem se utilizar do sistema de pré-insolvência como estratégia para o enfrentamento da crise, antecipando-se ao problema e evitando-se o desgaste e o estigma associados aos processos de recuperação judicial.

Analisando-se em detalhes o procedimento da pré-insolvência (mediação ou conciliação antecedentes), é importante que fique claro que a concessão da medida cautelar prevista no art. 20-B, parágrafo primeiro, da lei 11.101/05 pressupõe a demonstração pelo requerente de que o procedimento de mediação ou conciliação já foi instaurado no CEJUSC do Tribunal competente ou da câmara especializada, com a comprovação de expedição das cartas endereçadas aos credores convidados a participar do referido procedimento.

O texto da lei condiciona o deferimento da tutela de urgência cautelar à demonstração de que o procedimento de mediação ou conciliação já esteja instaurado perante o CEJUSC ou câmara privada. Entretanto, é necessário definir o momento em que se considera instaurado o referido procedimento. Nesse sentido, deve-se considerar iniciado o procedimento de mediação ou conciliação quando o CEJUSC do tribunal competente ou a câmara privada expedir a carta-convite endereçada aos credores envolvidos na negociação.

O pedido de medida cautelar deve ser instruído com os documentos elencados no art. 48 da lei 11.101/05. Conforme dispõe o art. 20-B, parágrafo primeiro, a obtenção da medida de suspensão das execuções somente será possível por empresas que preencham os requisitos legais para requerer recuperação judicial. Os documentos que demonstram a existência desse direito são aqueles elencados pelo art. 48 da Lei n. 11.101/05 (não ser falido, não ter requerido recuperação judicial nos últimos 05 anos etc.). Não é necessária a juntada dos documentos relacionados pelo art. 51 da lei 11.101/05, uma vez que não se trata de ajuizamento da recuperação judicial, mas apenas de medida cautelar antecedente.

Conforme já explicado na obra Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência2, "a probabilidade do direito consiste na apresentação dos documentos relacionados no art. 48, que comprovam que a devedora tem direito á pedir recuperação judicial".

A definição exata dos credores convidados a participar do procedimento de mediação ou de conciliação instaurado no CEJUSC do tribunal competente ou na câmara privada deve ser exigida como requisito para a concessão da medida cautelar prevista no art. 20-B, parágrafo primeiro, da lei 11.101/05. Isso porque, toda e qualquer medida cautelar pressupõe a demonstração de fumus boni juris e de periculum in mora. No caso dessa medida cautelar nominada, o periculum in mora é in re ipsa, sendo presumido por lei na medida em que a suspensão das execuções é essencial para a criação de um ambiente mais adequado à realização das negociações, sem o qual as chances de êxito nas mediações ou conciliações serão reduzidas drasticamente. Entretanto, compete à devedora comprovar a fumaça do bom direito, sendo que a apresentação organizada e precisa dos credores sujeitos ao procedimento de mediação ou conciliação é fundamental para demonstrar, ao menos em tese, a possibilidade de reorganização de suas atividades e de superação da crise da empresa, sem a necessidade de utilização das ferramentas da recuperação extrajudicial ou judicial.

O prazo de 60 dias de suspensão previsto no art. art. 20-B, parágrafo primeiro, da lei 11.101/05 é decadencial e improrrogável, considerando que se trata de medida cautelar requerida em caráter antecedente, cuja eficácia cessa se o autor não deduzir o pedido principal de recuperação judicial ou extrajudicial nos termos do art. 309, inc. i, do CPC.

O prazo de suspensão das execuções previsto nesse artigo tem natureza jurídica de medida cautelar preparatória. Portanto, o não ajuizamento do pedido principal subsequente, decorrido o prazo de 60 dias, implica no reconhecimento da decadência da medida, cuja eficácia cessará nos termos do art. 309, inc. I, do CPC.

Cabe ao requerente comunicar aos juízos responsáveis pelas execuções a concessão da medida cautelar de suspensão deferida com base no art. 20-B, parágrafo primeiro, da lei 11.101/05. A prática forense na condução das medidas cautelares preparatórias ou antecedentes deve ser observada na utilização dessa nova medida prevista no art. 20-B, parágrafo primeiro, da lei 11.101/05. Nesse sentido, se mostra desnecessária a citação dos credores para apresentação de contestação da medida cautelar. Basta que os credores sejam cientificados da medida pela própria devedora, momento em que devem aguardar o decurso do prazo de suspensão ou impugná-lo mediante o recurso próprio.

A medida cautelar de suspensão prevista no art. 20-B, parágrafo primeiro, da lei 11.101/05 vincula apenas os credores convidados a participar do procedimento de mediação ou conciliação instaurado no CEJUSC do tribunal competente ou na câmara privada.

O objetivo da medida cautelar de suspensão das execuções é proporcionar um espaço de respiro e um ambiente mais adequado de negociação da devedora com os seus credores. Na medida em que os credores sujeitos à negociação não podem prosseguir nas suas execuções individuais, cria-se o estímulo necessário para que se sentem à mesa para negociar com a devedora. Nesse sentido, é importante esclarecer que a suspensão das execuções só faz sentido em relação àqueles credores envolvidos na mediação ou conciliação, não atingindo os demais credores que não tenham sido convidados a participar do procedimento de negociação.

A devedora não poderá renovar o pedido de suspensão previsto no art. 20-B, parágrafo primeiro, da lei 11.101/05 depois de cessada a sua eficácia, salvo em relação a credores que não participaram do procedimento de mediação ou conciliação, nos termos do art. 309, parágrafo único, do CPC.

A medida cautelar de suspensão das execuções prevista no art. 20-B, parágrafo primeiro, da lei 11.101/05 está sujeita ao regime jurídico das tutelas cautelares requeridas em caráter antecedente. Nesse sentido, depois de cessada a eficácia da medida pelo decurso do prazo de 60 dias sem o ajuizamento do pedido principal, é vedado à devedora renovar o pedido, salvo em relação a outros credores, conforme dispõe o art. 309, parágrafo único, do CPC.

Pode o juiz revogar a medida cautelar deferida com base no art. 20-B, parágrafo primeiro, da lei 11.101/05, diante da demonstração por qualquer credor de que a devedora não promove ou procrastina, de qualquer forma, o regular andamento do procedimento de mediação ou conciliação instaurado no CEJUSC do tribunal competente ou na câmara privada.

O juiz que concede a medida cautelar prevista no no art. 20-B, parágrafo primeiro, da lei 11.101/05 deverá fiscalizar a presença dos requisitos autorizadores da concessão da cautelar durante todo o período de sua vigência. Nesse sentido, desaparecendo a fumaça do bom direito durante o prazo de suspensão das execuções de 60 dias, a medida deverá ser revogada. Nesse sentido, se depois de iniciada a mediação ou conciliação, o comportamento da devedora demonstrar de forma inequívoca o seu intuito procrastinatório ou refratário às negociações, deverá o juiz competente revogar a medida cautelar.

Os acordos obtidos durante o procedimento de mediação ou conciliação instaurado no CEJUSC do tribunal competente ou na câmara privada vinculam apenas os credores anuentes, não se aplicando nessa fase a regra da maioria ou a extensão aos dissidentes do acordo aceito pela maioria dos credores.

A lógica dos procedimentos de pré-insolvência é a concessão de algumas das vantagens oferecidas pela recuperação judicial, mas sem algumas de suas desvantagens, como o estigma causado à devedora que se utiliza dessa ferramenta. No Brasil, a pré-insolvência concede à devedora a suspensão das execuções mesmo sem estar em recuperação judicial, criando um ambiente adequado de negociação e buscando evitar o ajuizamento de uma recuperação judicial. Entretanto, por opção legislativa, o sistema brasileiro de pré-insolvência não adotou a regra da maioria nessa fase prévia de mediação ou conciliação. Nesse sentido, os acordos realizados nessa fase vinculam apenas as partes que expressamente anuírem, não podendo ser impostos aos credores resistentes, ainda que minoritários.

A novação decorrente do acordo feito entre devedora e credor no procedimento previsto nos artigos 20-B e 20-C da lei 11.101/05 somente se consolida com o decurso do prazo de 360 dias a contar da sua homologação judicial e desde que a devedora não ajuíze pedido de recuperação judicial ou extrajudicial, nos termos do art. 20-C, parágrafo único.

A regra do art. 20-C, parágrafo único, da lei 11.101/05 tem por objetivo dar aos credores maior tranquilidade e conforto para realizarem acordos nessa fase de pré-insolvência, sem o risco de serem prejudicados pelo sucessivo ajuizamento de recuperação judicial com inclusão do crédito já renegociado. Assim, a novação decorrente do acordo é provisória durante o prazo de 360 dias a contar da sua homologação judicial. Caso a devedora ajuíze recuperação judicial ou extrajudicial dentro desse prazo, incluindo o crédito já renegociado na fase de pré-insolvência, o credor voltará a ser titular do valor integral do crédito, em suas condições originais, deduzidos os valores eventualmente pagos e ressalvados os atos validamente praticados naquela fase. Protege-se o interesse do credor, a fim de criar mais um estímulo à realização de acordos nas mediações ou conciliações antecedentes.

Essas são algumas ponderações práticas sobre o uso adequado do sistema de pré-insolvência brasileiro. Espera-se que essa importante ferramenta de enfrentamento da crise da empresa tenha no Brasil a mesma relevância já observada nos países europeus e asiáticos que possuem a tradição de gerenciamento precoce da crise das empresas, eliminando-se os custos e os estigmas associados á utilização das ferramentas judiciais e tradicionais de recuperação empresarial.

__________

1 COSTA, Daniel Carnio. CUEVA., Ricardo Villas Boas. Disponível aqui.

2 COSTA, Daniel Carnio. MELO, Alexandre Nasser. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência; 2ª edição – Curitiba: Juruá.2021; pág. 130.

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Alberto Camiña Moreira é mestre e doutor pela PUC/SP. Advogado.

Alexandre Demetrius Pereira é mestre e doutor em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo. Pós-graduado (especialização) em Higiene Ocupacional pela Escola Politécnica da USP e em Gestão de Negócios pela Fundação Getúlio Vargas. Graduado em Ciências Contábeis pela FEA-USP. Foi professor de Direito Empresarial na Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, professor de pós-graduação no curso de Engenharia de Segurança do Trabalho do Programa de Educação Continuada (PECE) da Escola Politécnica da USP e professor de pós-graduação de matemática financeira, contabilidade e análise de demonstrações no Insper - Instituto de Ensino e Pesquisa.

Daniel Carnio Costa é juiz titular da 1ª vara de Falências e Recuperações Judiciais de SP. Graduado em Direito pela USP, mestre pela FADISP e doutor pela PUC/SP. Mestre em Direito Comparado pela Samford University/EUA. Pós-doutorando pela Universidade de Paris 1 - Panthéon/Sorbonne. Professor de Direito Empresarial da PUC/SP. Professor convidado da California Western School of Law. Membro do Grupo de Trabalho do Ministério da Fazenda para reforma da Lei de Recuperação de Empresas e Falências. Membro titular de cadeira da Academia Paulista de Magistrados e da Academia Paulista de Direito. Membro da INSOL International e do International Insolvency Institute. Autor de livros e artigos publicados no Brasil e no exterior.

Fabiana Solano é formada pela PUC/SP e tem LLM pela faculdade de Direito de Stanford - EUA. É sócia do Felsberg Advogados desde 2011. Foi foreign associate na área de insolvência do White & Case em Miami, onde atuou em processos de insolvência norte-americanos (Chapter 15) envolvendo empresas brasileiras. Atua na representação de devedores, credores e investidores em reestruturações privadas de dívidas e em processos de recuperação judicial, extrajudicial e falências. Em mais de 20 anos de atuação, participou dos casos mais relevantes de insolvência do país desde a entrada em vigor da lei 11.101/05, alguns deles vencedores ou finalistas do prêmio Deal of the Year da publicação Latin Lawyer.

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Paulo Penalva Santos advogado no Rio de Janeiro e São Paulo. Procurador aposentado do Estado do Rio de Janeiro.