Na coluna do dia 3 de março de 2020 tratei da insolvência das cooperativas, e me concentrei no exame de alguns aspectos da lei 5.471/71, que é a chamada lei das cooperativas.
Hoje quero falar sobre a reforma da lei 11.101/05, introduzida pela lei 14.112/2020, e que tem provocado alguma celeuma sobre o seu impacto nas cooperativas.
As cooperativas, como regra geral, estão afastadas do regime de insolvência da lei 11.101/05. Essa afirmativa pode ser feita sem nenhum receio. Pode-se dizer que, de lege lata, essa é a única interpretação possível.
Ainda que se queira ver a cooperativa como um agente econômico organizado sob a forma de empresa, que de fato é, ela não pode ajuizar a ação de recuperação judicial, por opção do legislador.
Há quem sustente que a previsão do inciso II do art. 2º, que estatui não se aplicar a lei 11.101/05 a cooperativa de crédito implica dizer que as demais cooperativas estão autorizadas a ajuizar a recuperação. O raciocínio seria o seguinte. Como a lei só excluiu do regime da lei 11.101/05 as cooperativas de crédito, automaticamente teria admitido que as demais cooperativas possam ajuizar recuperação judicial.
O equívoco interpretativo reside no seguinte ponto. A restrição do inciso II do artigo 2º não significa dilatação do âmbito de aplicação do artigo 1º da lei 11.101/05. Por outras palavras, a previsão expressa de não cabimento da recuperação judicial para as cooperativas de crédito não leva, não transforma, as demais cooperativas em sociedade empresária. Por que o inciso II do artigo 2º da lei 11.101/05 só se refere às cooperativas de crédito não significa que as demais sociedades cooperativas estão, automaticamente, enquadradas no regime do artigo 1º da lei 11.101/05. Pode ser dito ainda que a previsão do inciso II do artigo 2º não transforma a sociedade cooperativa de sociedade simples em sociedade empresária.
Não duvido, porém, que a jurisprudência brasileira, que sempre foi voluntarística em relação à crise da empresa, e isso vem desde o regime da concordata preventiva da lei de insolvência de 1945, acabe por aceitar o processamento de recuperação judicial de cooperativas. As perplexidades que a concordata preventiva suscitava, e que causaram a perda de sua credibilidade, ainda que seu perfil fosse de reduzida eficácia, vão sendo reproduzidas na vigência da lei 11.101/05, e, talvez, até com mais intensidade.
O fato de certo ente jurídico ser um agente econômico não é suficiente para o uso da recuperação judicial, que não é um dado da natureza, senão uma criação jurídica, um instituto que tem seus contornos estabelecidos pela lei, cuja observância, no estado de direito, é imperativo democrático e respeito à separação de poderes.
A reforma advinda da lei 14.112/2020 contém previsões acerca das cooperativas. Elas estão muito mal alocadas, pois inseridas no artigo 6º, § 13, quando, ao menos formalmente, deveriam estar contempladas ou no artigo 49 ou no artigo 1º. Porém, esse é um aspecto de menor relevância, dado o contexto legislativo em que vivemos.
O § 13 do artigo 6º, na redação dada pela lei 14.112/2020, está assim redigido: "Não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial os contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados, na forma do art. 79 da lei 5.764, de 16 de dezembro de 1971, consequentemente, não se aplicando a vedação contida no inciso II do art. 2º quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for cooperativa médica".
São dois os assuntos contidos nesse dispositivo. O primeiro, diz respeito à não submissão de créditos e o segundo (na parte em itálico do dispositivo acima transcrito) à legitimidade ativa de uma entidade jurídica.
Como se verá, não há nexo lógico nem jurídico entre os dois temas tratados no dispositivo.
A primeira parte do § 13 tem o seguinte significado. Uma vez admitida a recuperação judicial do produtor rural, a lei estabelece exclusão de crédito dos seus efeitos. Assim, estão excluídos da recuperação judicial do produtor rural o crédito da cooperativa à qual é cooperado ou associado. Note-se que, aqui, a cooperativa é credora e mantém incólume o seu direito de crédito.
Ao que tudo indica, a ratio legis é a proteção da cooperativa, tendo em vista os princípios que governam a sua idealização e concretização, cujo crédito não será reestruturado como os demais créditos sujeitos o serão. Ato cooperativo é o ato celebrado entre a cooperativa e o seu cooperado (vide definição no art. 79 da lei 5.674/71). Somente o crédito oriundo dessa relação está excluído da recuperação judicial do produtor rural. Duas observações se impõem: a) caso exista relação jurídica entre o produtor rural e a cooperativa que integra, e que não se caracterize como ato cooperativo, o respectivo crédito estará submetido à recuperação judicial, presentes os demais requisitos (art. 49); b) eventual dívida que o produtor rural tenha para com uma cooperativa da qual não seja associado, não é dívida oriunda de ato cooperativo, e, então, poderá ser crédito submetido ao processo de recuperação, respeitado o comando do artigo 49 da lei 11.101/05.
A reforma da lei, aliás, pode ser interpretada como um retrocesso para o produtor rural, pois, além da restrição do crédito decorrente de ato cooperativo, ainda viu excluído o crédito decorrente de cédula de produto rural física (CPR com liquidação física). (art. 11 da lei 8.929/1994, na redação dada pela lei 14.112/2020.
A segunda parte do § 13 do artigo 6º tem uma redação curiosa: "...consequentemente, não se aplicando a vedação contida no inciso II do art. 2º quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for cooperativa médica". Da primeira parte do dispositivo, que cuida de exclusão de crédito, a própria lei extrai uma consequência. Note-se que o legislador saiu do campo prescritivo e foi ao campo doutrinário, no qual é próprio o caráter descritivo. Extrair consequência de uma norma é descrever seu âmbito de incidência e, portanto, é tarefa da doutrina, e não da lei.
O ponto é recheado de perplexidades. Não há antecedente lógico que suporte a consequência estabelecida; não há premissa que sustente a consequência que a própria lei extraiu. Pode-se dizer que o legislador é um péssimo intérprete do seu próprio texto.
Em termos lógicos, a previsão do § 13 do artigo 6º da lei 11.101/05 é um verdadeiro desastre.
Em termos gramaticais, consequentemente é uma conjunção (conclusiva ou ilativa), e já vimos que não há nenhuma relação com a primeira oração do parágrafo. Excluir crédito (primeira parte) não se afeiçoa, nem longinquamente, com a legitimidade ativa assegurada pela segunda parte do dispositivo.
Há, na realidade, uma falsa oração subordinada, pois, para que ela se caracterize, a ligação entre as duas proposições exige que "uma esteja contida na outra como o efeito na causa" (Carneiro Ribeiro), e não é o que ocorre na espécie. Nada foi alterado em relação à oração subordinante. Em termos lógicos e gramaticais, não há congruência alguma no texto.
É precisa, a respeito, a lição de Fábio Ulhoa Coelho1: "Não é possível, sob o ponto de vista lógico, extrair qualquer conclusão de algo que não está sedimentado na premissa. Quer dizer, não é possível extrair-se de norma sobre cooperativas credores nenhuma consequência acerca de cooperativas devedoras" (itálico do original).
Poder-se-ia tentar salvar o preceito recorrendo-se ao canône hermenêutico que procura aproveitar as palavras da lei, que não conteria nenhuma inutilidade.
Para salvar o dispositivo, nessa linha e argumentação, seria preciso conferir certa autonomia à parte final do texto legal em relação à primeira parte.
Ter-se-ia de dizer que a segunda parte do § 13 do artigo 6º, da lei 11.101/05, é um verdadeiro parágrafo dentro do parágrafo, que contém regra própria e autônoma em relação à primeira oração. Ter-se-ia, então, a seguinte conclusão: "não se aplica a vedação contida no inciso II do art. 2º quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for cooperativa médica". Trata-se de um preceito possível, evidentemente, pois, a critério do legislador, elege-se tal ou qual sociedade para este ou aquele regime de insolvência, pois não temos, entre nós, ao menos por enquanto, um regime universal de insolvência.
Ocorre que essa conclusão tem um complicador fatal. O comando legislativo, segundo o qual as operadoras de plano de assistência à saúde, instituídas sob a forma de cooperativas, não se submetem à restrição do inciso II do artigo 2º da lei 11.101/05, surgiu apenas no Senado Federal. Não houve apreciação desse tema por ocasião de sua tramitação na Câmara dos Deputados.
No Senado Federal, a oração surbordinada "consequentemente não se aplicando a vedação contida no inciso II do art. 2º quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for cooperativa médica" foi admitida como emenda de redação, o que não corresponde à realidade. É evidente que se trata de um assunto relevante e importante, mas completamente dissociado da oração subordinante, contida na primeira parte do § 13. O texto que admite um novo regime jurídico para uma espécie societária não é apenas uma emenda de redação, sem alteração de texto normativo.
Em termos jurídicos, a inovação é muito grande, sem que haja pertinência com a exclusão de crédito perpetrada pela primeira parte do dispositivo legal.
A conclusão definitiva a ser extraída é a de que é inconstitucional a parte final do parágrafo treze do artigo 6º da Lei de Falências e Recuperação de Empresas, o que já foi notado por Fábio Ulhoa Coelho2 e por Marcelo Barbosa Sacramone. Diz o artigo
O STF apreciou assunto dessa natureza no julgamento da ação declaratória de constitucionalidade nº 3, j.02-12-1999, rel. Min. Nelson Jobim. Transcrevo trecho de interesse para esta coluna:
"O retorno do projeto emendado à Casa iniciadora não decorre do fato de ter sido simplesmente emendado. Só retornará se, e somente se, a emenda tenha produzido modificação de sentido na proposição jurídica. Ou seja, se a emenda produzir proposição jurídica diversa da proposição emendada.
Tal ocorrerá quando a modificação produzir alterações em qualquer um dos âmbitos de aplicação do texto emendado: material, pessoal, temporal ou espacial. Não basta a simples modificação do enunciado pela qual se expressa a proposição jurídica. O comando jurídico - a proposição - tem que ter sofrido alteração. O conceito de emenda de redação é: modifica-se o enunciado, sem alterar a proposição" (sem grifo no original).
Definitivamente, não foi o que ocorreu com a Lei 14.112/2020, cujo trâmite, no Senado Federal, trouxe inequívoca alteração da proposição aprovada pela Câmara dos Deputados. Ora, o texto aprovado pela Câmara Federal continha a seguinte e única previsão:
"Não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial os contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados, na forma do art. 79 da Lei no 5.764, de 16 de dezembro de 1971." (NR).
Já a redação aprovada pelo Senado Federal, que se se tornou lei, é a seguinte, com o perdão pela insistência:
§ 13. Não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial os contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados, na forma do Art. 79 da lei 5.764, de 16 de dezembro de 1971, consequentemente, não se aplicando a vedação contida no inciso II do Art. 2º quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for cooperativa médica.
A parte final (em negrito) é rigorosamente autônoma em relação à primeira parte, e ela pretende assegurar a legitimidade para as cooperativas de planos de saúde ajuizarem recuperação judicial.
Trata-se de clara inovação legislativa, e não de emenda de redação, e, por isso, está contrariado o disposto no artigo 65, parágrafo único, da Constituição Federal, segundo o qual: "sendo o projeto emendado, voltará à Casa iniciadora".
O Regimento Interno das Casas do Congresso, no artigo 135, prevê que "A retificação de incorreções de linguagem, feita pela Câmara Revisora, desde que não altere o sentido da proposição, não constitui emenda que exija sua volta `à Câmara iniciadora".
Na interpretação a contrario sensu, a norma regimental só admite a chamada emenda de redação quando se assentar em dois pressupostos: a) correção de linguagem; b) manutenção do sentido da proposição. Como, na espécie ora comentada, não se trata de correção de linguagem, ter-se-ia de examinar se se trata de alteração de sentido da proposição.
Ora, não há a menor dúvida de que houve alteração de sentido, e de larga magnitude. Jamais se poderá inferir que, da redação aprovada pela Câmara Federal, as cooperativas de planos de saúde estariam autorizadas a ajuizar a recuperação judicial.
Essa fórmula de legislar (a mídia diz que se trata de inserir um jabuti no projeto), tão depreciadora do trabalho legislativo, é causa de forte insegurança jurídica. Caso não haja rápido pronunciamento do STF a respeito da matéria, a jurisprudência, por certo, oscilará, o que não é nada conveniente para quem experimenta crise econômico-financeira.
Um outro aspecto da inovação implementada exclusivamente pelo Senado Federal é a distorção no mercado. A administração de planos de saúde é uma atividade que depende de especial autorização do estado para funcionamento, com controles intensos, ao longo do exercício da atividade, de diversos aspectos, inclusive o da liquidez e solvência do administrador que recolhe recursos do público em geral.
Admitida a recuperação judicial da cooperativa administradora de planos de saúde, as demais sociedades que atuam no mesmo mercado terão recebido tratamento distinto, pois a insolvência de uma sociedade anônima ou limitada passará pelos regimes especiais de direito público (intervenção e liquidação extrajudicial, entre outros). E fica ainda a seguinte perplexidade: a ANS poderá decretar a liquidação extrajudicial da cooperativa, a despeito de ela poder ajuizar a recuperação judicial? Ou ficará derrogada a atuação da ANS no que concerne à insolvência da cooperativa médica?
O assunto é muito sério para ser tratado como uma mera emenda de redação, pois, na verdade, provoca uma profunda alteração na sistemática regulatória da atividade de administração de planos de saúde.
Em conclusão, tem-se: a) cooperativa de crédito não pode fazer uso da recuperação judicial; b) crédito de cooperativa está excluído dos efeitos do processo de recuperação judicial do produtor rural, desde que se refira a ato cooperativo; c) as cooperativas, de modo geral, não têm legitimidade ativa para o ajuizamento da recuperação judicial; d) ainda que as cooperativas sejam agentes econômicos, a lei, ao caracterizá-la como sociedade simples, afastou-a do regime da insolvência da sociedade empresária; e) pretendeu-se reconhecer legitimidade à cooperativa médica para ajuizar recuperação judicial. Porém, a previsão, tal como consta da lei 11.101/05, é inconstitucional.
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1 Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas, 14ª ed., complemento de rejeição dos vetos. São Paulo, RT, p. 3.
2 Ob.cit., p. 3. No mesmo sentido, Marcelo Barbosa Sacramone, coluna Insolvência em Foco, Migalhas, 30/03/2021.