A recuperação judicial é um instituto do direito de insolvência voltado a conferir uma oportunidade à determinada atividade empresarial de superação de uma situação de crise econômica-financeira momentânea.
Em abandono ao instituto da concordata, cuja solução era eminentemente legalista e com alta intervenção judicial, o legislador buscou conferir, através da recuperação judicial, uma solução de mercado à superação da crise da empresa, mediante a discussão e eventual aprovação pelos credores do empresário de um plano de soerguimento por ele apresentado.
Isso porque a recuperação de uma atividade empresarial necessita de soluções econômicas para que haja possibilidade de sucesso. Depende de escolhas inerentes ao exercício da livre iniciativa e somente aqueles que estão no mercado é que possuem condições de avaliar se as escolhas propostas pelo empresário podem ser suscetíveis de êxito no âmbito do empreendedorismo.
Não foi por outra razão que o Senador Ramez Tebet, em seu relatório sobre o PLC 71/2003, que resultou na lei 11.101/2005, elencou como um dos princípios fundamentais do sistema de insolência a participação ativa de credores, verbis:
PARTICIPAÇÃO ATIVA DOS CREDORES. Fazer com que os credores participem ativamente dos processos de falência e de recuperação, a fim de que, em defesa de seus interesses, otimizem os resultados obtidos, diminuindo a possibilidade de fraude ou malversação dos recursos da empresa ou da massa falida.
Portanto, a recuperação judicial deve ser considerada um instituto híbrido composto por elementos e questões tanto de ordem econômica como de ordem jurídica. Seu sucesso e o da atividade que busca o soerguimento depende da compreensão dessas características, a fim de que cada qual seja debatida e observada na sua esfera de incidência.
O soerguimento de uma atividade depende de um plano realista e consentâneo com elementos de mercado e é dependente do contexto econômico no qual será aplicado. Mas a sua construção deve respeitar os limites legais, de ordem processual e material, existentes no ordenamento jurídico, com vistas à garantia de higidez do procedimento e da livre manifestação de vontade das partes, num ambiente de transparência e supervisão judicial.
A jurisprudência é uníssona sobre esse entendimento. Os precedentes dos Tribunais de Justiça do país e do Colendo Superior Tribunal de Justiça ressoam ser dos credores a titularidade da análise de viabilidade da atividade empresarial, para fins de recuperação judicial, competindo ao Poder Judiciário apenas o controle sobre os aspectos de legalidade do plano votado, sem poder se imiscuir nos aspectos econômicos discutidos.
O problema enfrentado nos dias atuais é a escorreita depuração sobre quais seriam elementos de ordem econômica e quais seriam elementos de ordem legal, para fins de controle do plano votado. A jurisprudência já tem alcançado diversas definições, mas o dinamismo da atividade empresarial sempre proporciona novos desafios a serem apreciados.
A consequência desse processo de depuração ainda em construção são as inúmeras discussões levadas ao Poder Judiciário, sob a tese de que se tratariam de aspectos de legalidade do plano, quando, na realidade, configurariam questões de ordem econômica em seu sentido puro ou, ainda, questões que podem se revestir de caráter econômico e jurídico ao mesmo tempo.
E ainda vivemos um cenário de certa imprevisibilidade sobre o âmbito de incidência de um dirigismo judicial acerca do plano votado, pois muitas dessas questões são interpretadas ora como de ordem legal, ora como de ordem econômica, não existindo completa definição sobre os limites de uma intervenção estatal nesse processo negocial.
Com os fenômenos do pós-positivismo e do neoconstitucionalismo houve uma profunda alteração na hermenêutica das regras de direito privado, através de um viés de busca da igualdade material em contraposição à antiga concepção de constitucionalismo liberal, abandonando os dogmas de individualismo e absenteísmo estatal para inserção de metodologias de um dirigismo comunitário liderado pelos poderes estatais voltando a visão do direito para um conteúdo mais social, no sentido de se exigir dos titulares de um determinado direito a observância do cumprimento de sua função social, mediante baldrames axiológicos de eticidade, socialidade e operabilidade.
Entretanto, a desmedida intervenção estatal na ordem econômica, sob os mais variados aspectos, impede o desenvolvimento do mercado e dificulta o exercício do empreendedorismo, ocasionado, em consequência, diminuição dos benefícios sociais decorrentes da atividade empresarial, como a geração de empregos, arrecadação de recursos para o Estado, a manutenção e a criação de novas relações comerciais, a inserção de melhores produtos e serviços no mercado pela livre concorrência entre atividades.
Sobrevém, então, a Lei da Declaração dos Direitos de Liberdade Econômica, cujo escopo é a melhora do ambiente para o exercício de atividades econômicas no país.
Segundo a exposição de motivos da MP 881, de 2019, convertida na lei 13.874/2019:
Por meio da Exposição de Motivos Interministerial (EMI) nº 00083/2019 ME AGU MJSP, datada de 11 de abril de 2019, a Medida Provisória (MPV) nº 881, de 2019, foi justificada pela necessidade urgente de afastar a percepção de que, no Brasil, o exercício de atividades econômicas depende de prévia permissão do Estado. Esse cenário deixaria o particular sem segurança para gerar emprego e renda. E daí decorre o fato de o Brasil figurar "em 150º posição no ranking de Liberdade Econômica da Heritage Foundation/Wall Street Journal, 144º posição no ranking de Liberdade Econômica do Fraser Institute, e 123º posição no ranking de Liberdade Econômica e Pessoal do Cato Institute".
A liberdade econômica, continua a EMI, é fundamental para o desenvolvimento de um país, ainda mais no caso do Brasil, que atualmente está mergulhado em crise econômica. Estudos envolvendo mais de 100 países a partir da segunda metade do século XX comprovam essa relação entre a liberdade econômica e o progresso.
A MPV empodera o particular e insurge-se contra os excessos de intervenção do Estado, com vistas a estimular o empreendedorismo e o desenvolvimento econômico.
A lei 13.874/2019 buscou proporcionar a melhoria do ambiente negocial e de mercado em nossa economia de livre iniciativa, cujos preceitos possuem efeito vinculante aos entes federativos e imposição de interpretação e aplicação sistêmica das normas da Lei, mediante o estabelecimento do entendimento de que a intervenção do Estado nas atividades regidas pela livre iniciativa deve ocorrer somente em casos de imprescindibilidade, prestigiando-se, no mais e em maior medida, a liberdade de vontade e de atuação dos agentes.
Por se tratar de uma declaração de direitos, atribui-se ao sujeito privado o direito subjetivo de conteúdo determinado (disciplina jurídica mais precisa e determinada – fornecimento de soluções específicas), oponível diretamente ao Estado, para o livre exercício de atividades econômicas, respeitados os limites de boa-fé e do cumprimento da função social do direito respectivo, propondo, outrossim, um dirigismo estatal sobre a livre iniciativa mais otimizado e menos denso.
Um importante critério hermenêutico trazido pela lei está no brocardo IN DUBIO, PRO LIBERTATEM. Isso porque temos a cultura de interpretar em sentido oposto ao da liberdade, com entendimentos muitas vezes restritivos e formalistas que repercutem até mesmo no exercício do direito privado pelos agentes econômicos, através de uma “postura de prudência” para justificar a tomada de uma decisão, sob a falsa premissa de se respeitar o ordenamento constitucional. Pela adoção de tal critério hermenêutico, deve ser abandonada essa posição entendendo que a liberdade de iniciativa envolve o prestígio à escolha de objetivos particulares, de modo a tornar o direito privado cada vez mais privado.
No âmbito da recuperação, a aplicação da lei 13.874/2019 pode funcionar como importante critério hermenêutico na depuração sobre quais são as questões efetivamente de natureza econômica, nas quais deve prevalecer a autonomia da vontade, e quais são as questões de natureza jurídica que devam ser enfrentadas pelo Poder Judiciário.
E, no âmbito da autonomia de vontade, importante rememorar o judicioso voto do Eminente Ministro Moura Ribeiro nos autos do REsp 1.532.943-MT, acerca da prevalência da vontade coletiva oriunda da deliberação em AGC sobre as vontades individuais, assim vernaculamente posto:
A vinculação do plano a todos os credores, tanto os que expressaram sua anuência como aqueles que não concordaram com as deliberações da AGC, é destacada por HUMBERTO LUCENA PEREIRA DA FONSECA e MARCOS ANTÔNIO KOHLER:
[...] a nova Lei enfatiza o soerguimento de empresas viáveis que estejam passando por dificuldades temporárias, a fim de evitar que a situação de crise culmine com a falência. Nesse sentido, é extinta a ineficiente concordata e criado o instituto da recuperação judicial, que tem como principal característica o oferecimento aos credores de um plano de recuperação que, na prática, envolverá negociações e concessões mútuas , além de providências e compromissos do devedor visando a persuadir os credores da viabilidade do plano. Esse plano deverá ser aprovado pela maioria dos credores em assembleia, e a decisão vinculará não só os que expressamente anuírem, mas também os que votarem contrariamente (A nova lei de falências e o instituto da recuperação extrajudicial. Texto para discussão 22. Consultoria Legislativa do Senado Federal. Brasília, abril/2005 - sem destaque no original).
No mesmo sentido é a doutrina de PAULO FERNANDO CAMPOS SALLES DE TOLEDO:
O direito das empresas em crise tem como uma de suas características básicas o fato de reger relações em que se situa, de um lado, o devedor, e de outro a coletividade dos credores.
[...]
Ora, como se trata de uma coletividade, e, em especial, de uma comunhão, não pode deixar de existir um meio específico para a expressão da vontade comum. Aplica-se, para tanto, o princípio da maioria , consagrado no direito societário, e também no direito público quando prevê a eleição majoritária. Assim, nas matérias submetidas à deliberação assemblear, a manifestação do órgão faz-se em obediência ao resultado da votação, prevalecendo a maioria, atendidos os requisitos exigíveis. Manifesta-se, desse modo, pela assembleia geral, a vontade coletiva dos credores. No dizer de Marlon Tomazette , de modo semelhante, a assembleia geral das sociedades anônimas, nos regimes instituídos pela LRE, "como órgão de deliberação, a assembleia tem a competência de expressar a vontade da massa de credores, isto é, a vontade coletiva interpretada como vontade unitária do grupo, vinculando inclusive credores ausentes (O Plano de Recuperação e o Controle Judicial da Legalidade. In Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais: RDB, v. 16, n. 60, abr./jun. 2013 - sem destaque no original).
Portanto, em contraposição ao sistema anterior, em que não havia possibilidade de negociação, se descortina um sistema que prima pela composição das partes por meio do voto em assembleia. E esse novel sistema não teria eficácia sem a vinculação dos credores às deliberações majoritárias.
Logo, apenas em aspectos de legalidade, como o Colendo Superior Tribunal de Justiça também já decidiu em outras oportunidades, é que eventual situação não se sujeitará aos termos do plano aprovado, devendo prevalecer a regra de submissão de todos à vontade coletiva formada pela votação resultante da AGC.
Outro ponto que não pode ser desconsiderado no âmbito da recuperação judicial, em virtude da sua natureza econômica, são os poderes econômicos existentes e, por vezes divergentes, revelados nas pessoas dos credores que buscam recuperar os investimentos feitos na atividade empresarial.
E tais poderes econômicos irão se mostrar conforme a natureza do crédito sujeito e o vulto do investimento realizado na empresa. Assim, alguns credores podem assumir alguma posição de superioridade em relação a outros, como decorrência natural dos investimentos por eles realizados ou por negociações mais promissoras que lhes garantiram uma condição mais vantajosa no ambiente de negociação da recuperação judicial.
É importante que essa dinâmica seja preservada em respeito à confiança dos investidores no sistema. Certamente aquele que intenciona maior volume de investimentos numa atividade empresarial espera o retorno econômico de suas ações e, caso enfrente uma situação de crise do seu parceiro comercial, terá a legítima expectativa de preservar seu poder de negociação no plano a ser apresentado, na proporção dos investimentos realizados ou das garantias que detém, presumindo-se a boa-fé nas relações predecessoras que lhe conferiram tal posição econômica.
O que deve ser coibido pelo Poder Judiciário é o abuso de determinado poder econômico, que poderá se revelar por uma imposição irracional de sua vontade contra a possibilidade concreta de soerguimento da atividade, assim reconhecida pelos demais credores, ou mediante a imposição de sacrifícios desproporcionais ao devedor e aos demais credores em posição menos vantajosa, para o atendimento exclusivo de um direito descurado de sua função social por macular as finalidades contidas no art. 47 da lei 11.101/2005.
Todas essas considerações são importantes porque a prática tem demonstrado que muitas discussões envolvendo questões de legalidade na análise do plano envolvem os pontos acima mencionados e que nem sempre são trazidos com um rigor na revelação de sua real natureza jurídica.
Não raro, muitas situações são trazidas ao Poder Judiciário sob a roupagem da discussão de um aspecto de legalidade quando, na realidade, tal postura busca pressionar o devedor em determinada negociação ou aumentar a vantagem de um poder econômico de menor expressão frente aos demais numa determinada negociação .
Todas essas demandas existem e merecem a devida atenção para evitar um dirigismo judicial sobre o ambiente de negociação sem justa causa para tal interferência, na medida em que a vontade coletiva da AGC pressupõe uma organização legal própria para sua composição, constante do art. 45 da lei 11.101/2005 e fundado em situações anteriormente consolidadas pelas relações comerciais construídas entre o empresário em crise e seus credores.
Tais realidades não podem ser desprezadas e fazem parte do conjunto que compõe o processo de recuperação judicial. Embora ainda não analisada no âmbito de apreciação de planos votados em AGC, a Lei das Liberdades Econômicas pode funcionar como importante instrumento de depuração da intervenção judicial no processo de negociação entre o devedor e seus credores, privilegiando a liberdade da manifestação de vontade, o que já é visto inclusive nas situações envolvendo transações entre credores trabalhistas e consumeristas em face de seus devedores nas respectivas jurisdições, reservando a atuação judicial apenas para as hipóteses de clara violação de dispositivos legais de ordem pública ou evidente prejuízo ocasionado por abuso de direito.
Ao comentar a interpretação dos negócios jurídicos à luz da Lei 13.874/2019, Paula A. Forgioni1 assim dispõe, verbis:
5. As liberdade econômicas não são apenas um "poder agir", mas também a garantia de poder agir. Se a livre-iniciativa é constitucionalmente amparada, à empresa está outorgada a garantia de atuar conforme seus interesses, respeitados os limites postos pela própria Constituição e pelas Leis [princípio da legalidade]. Ao mesmo tempo, as faculdades advindas das liberdades constitucionais não são atribuídas aos agentes para que eles possam "fazer o que quiser", mas para viabilizar o adequado funcionamento do mercado, gerando riquezas, impostos, empregos e bem-estar social.
...
Nesse prisma, o princípio da legalidade é fundamental para a organização do sistema econômico. As liberdades econômicas constitucionais devem ser lidas em conjunto com o princípio da legalidade, por serem verso e reverso da mesma medalha. A empresa é livre para agir, para empreender. Contudo, essa liberdade é limitada pela Lei; à empresa é facultado organizar-se e contratar, desde que o faça dentro de parâmetros preestabelecidos pelo ordenamento jurídico. Nenhum agente "será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" [cf. Art. 5º, II, da Constituição Federal]. Para a empresa, o texto normativo é, ao mesmo tempo, limite e garantia de sua liberdade.
A recuperação judicial deve ser compreendida como componente do universo do exercício de livre-iniciativa e o seu resultado assemblear consistente na aprovação do plano pelos credores é reconhecido por ter natureza jurídica contratual, razão pela qual a forma de interpretação acima citada cabe perfeitamente quando da aplicação do instituto e, como dito alhures, já vem sendo reconhecida pela jurisprudência, devendo apenas o Poder Judiciário aprimorar a devida depuração sobre o que é aspecto de legalidade a ser por ele enfrentado e o que é questão atinente aos aspectos econômicos da recuperação judicial, a qual deverá circunscrever-se às deliberações entre devedor e credores, privilegiando-se, neste ponto, a liberdade inerente à autonomia de vontade sem vícios.
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1 Comentários à Lei da Liberdade Econômica. Lei 13.874/2019. Coordenadores Floriano Peixoto Marques Neto, Otávio Luiz Rodrigues Jr., Rodrigo Xavier Leonardo. São Paulo.Thomson Reuters Brasil. 2019. Páginas 366 e 367.