Insolvência em foco

Releitura do acesso à Justiça: a mediação como meio adequado e prévio à recuperação judicial

Releitura do acesso à Justiça: a mediação como meio adequado e prévio à recuperação judicial

8/7/2020

Texto de autoria de Paulo Furtado de Oliveira Filho

Sob a promessa de que ninguém terá uma lesão a seu direito sem uma solução estatal, a CF/88 reservou ao Poder Judiciário papel destacado na proteção à cidadania. O acesso à ordem jurídica justa resultou em uma multiplicidade de demandas. No ano passado foram propostas mais de 28 milhões de ações. A Magistratura tem alta produtividade, mas nossa despesa com o serviço judiciário é alta, se comparada com a de outros países. Há algo de errado no acesso à Justiça de forma descontrolada.

Sem prejuízo de mudanças legislativas como a introduzida no processo trabalhista e que resultou em queda expressiva de demandas, e sem entrar na discussão acerca dos incentivos econômicos para uma desjudicialização dos conflitos, nota-se que a jurisprudência dos Tribunais Superiores passou a ser mais rigorosa na análise do interesse de agir, concluindo que o direito de acesso à Justiça deve ser responsável.

A título de exemplo, o Supremo Tribunal Federal decidiu que "a concessão de benefícios previdenciários depende de requerimento do interessado, não se caracterizando ameaça ou lesão a direito antes de sua apreciação e indeferimento pelo INSS, ou se excedido o prazo para análise" (Recurso Extraordinário 631.240).

Na mesma linha, o Superior Tribunal de Justiça passou a decidir que o consumidor não tem direito de exigir a exibição do instrumento contratual em juízo sem previamente ter solicitado o documento diretamente à agência bancária (REsp. 1.349.453).

A releitura do princípio do acesso à Justiça pelos Tribunais Superiores foi acompanhada de modificações legislativas recentes (CPC e lei 13.140/2015) que enfatizaram a necessidade de solução adequada aos conflitos, não só pelo Poder Judiciário, mas também com o apoio da mediação e da conciliação.

Nos termos do artigo 3º, § 2º do CPC:

"§ 2º O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos.

§ 3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados pelos juízes, advogados, defensores e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial".

Como enuncia o art. 3º., parágrafo 3º do CPC, não há apenas um dever ético do advogado em estimular a solução consensual dos conflitos – por meio da efetiva negociação do devedor com seus credores antes do ingresso em juízo -, mas uma imposição legal.

Embora o conciliador e o mediador possam ser atores relevantes na cena judicial, é preciso enfatizar a necessidade de uma nova visão acerca do acesso à Justiça, quando se trata de medidas colocadas à disposição do devedor para superação de sua crise econômica, especialmente neste momento trágico de pandemia da Covid-19.

Muitas renegociações têm sido realizadas sem necessidade de qualquer recurso ao Poder Judiciário, pois os agentes econômicos perceberam que ajustar os contratos é a medida mais sensata. Nada mais correto porque, em um regime baseado na livre iniciativa econômica, quem tem o poder de vincular-se a outros agentes, assumindo obrigações, também tem a responsabilidade de buscar soluções para o reajuste das obrigações assumidas, adaptando-as aos tempos de pandemia.

É importante ressaltar que a valorização da autonomia privada na solução da crise econômico-financeira é o modelo adotado desde 2005 pela lei 11.101. Aos diretamente afetados pela crise foi atribuído o papel de decidir acerca da melhor forma de superá-la, após uma negociação dos credores com o devedor, que resultará na aprovação ou rejeição do plano de recuperação.

Porém, e aqui impõe-se a releitura do direito de acesso à Justiça no direito das empresas em crise, é preciso que o devedor que se apresenta ao Poder Judiciário demonstre ter iniciado tratativas extrajudiciais com seus credores, envidado esforços na negociação, realizado propostas razoáveis, e, além disso, que as medidas adotadas não foram suficientes para a negociação avançar e resultar em acordo que permita a superação da crise. É preciso atribuir-lhe o ônus de demonstrar, com documentos que acompanham a petição inicial, que necessita da proteção judicial para concluir o processo negociado de solução da crise já iniciado.

Ademais, como a lei 11.101/2005 oferece ao devedor a opção da recuperação extrajudicial – mecanismo muito mais rápido e barato, e, portanto, mais eficiente para a solução da crise – cabe a ele igualmente demonstrar que o seu recurso à recuperação judicial se deve à impossibilidade de utilizar o meio menos oneroso.

A recuperação extrajudicial, infelizmente, tem sido pouco utilizada, porém é um instrumento que pode oferecer segurança aos agentes econômicos.

As lacunas legislativas a respeito de "stay period" e alienação de UPI podem ser supridas pelas normas aplicáveis à recuperação judicial. A exclusão dos créditos trabalhistas, previstas em 2005, foram superadas pelas alterações legislativas posteriores que valorizaram a autonomia da vontade dos trabalhadores na resolução dos contratos, redução de jornada e de salário. Temos mecanismos legais e adequados para a solução das crises e devemos utilizá-los.

Não havendo, no âmbito privado, uma solução que possa ser implantada sem o risco de determinado credor dissidente impedir a solução coletiva mais vantajosa, então cabe ao devedor e aos credores aderentes um esforço qualificado na negociação, para a obtenção de adesão de mais de 3/5 e o uso da recuperação extrajudicial, meio menos oneroso e mais rápido para a solução da crise.

E apenas em caso de insuperável necessidade, devidamente justificada, quando incapaz de obter uma adesão da grande maioria dos credores, mesmo tendo se empenhado na negociação, o devedor poderá se valer da recuperação judicial, por ser o meio mais oneroso aos credores, ao Estado, e à sociedade.

Não podemos continuar, nos próximos meses e anos, repetindo o mesmo proceder dos quinze anos de vigência inicial da lei 11.101/2005. Advogados, assessores financeiros, empresários, bancos e sindicatos, além do Poder Judiciário, devem fazer um esforço coletivo para potencializar o uso da recuperação extrajudicial, reservando a recuperação judicial apenas aos casos de efetiva necessidade.

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Alberto Camiña Moreira é mestre e doutor pela PUC/SP. Advogado.

Alexandre Demetrius Pereira é mestre e doutor em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo. Pós-graduado (especialização) em Higiene Ocupacional pela Escola Politécnica da USP e em Gestão de Negócios pela Fundação Getúlio Vargas. Graduado em Ciências Contábeis pela FEA-USP. Foi professor de Direito Empresarial na Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, professor de pós-graduação no curso de Engenharia de Segurança do Trabalho do Programa de Educação Continuada (PECE) da Escola Politécnica da USP e professor de pós-graduação de matemática financeira, contabilidade e análise de demonstrações no Insper - Instituto de Ensino e Pesquisa.

Daniel Carnio Costa é juiz titular da 1ª vara de Falências e Recuperações Judiciais de SP. Graduado em Direito pela USP, mestre pela FADISP e doutor pela PUC/SP. Mestre em Direito Comparado pela Samford University/EUA. Pós-doutorando pela Universidade de Paris 1 - Panthéon/Sorbonne. Professor de Direito Empresarial da PUC/SP. Professor convidado da California Western School of Law. Membro do Grupo de Trabalho do Ministério da Fazenda para reforma da Lei de Recuperação de Empresas e Falências. Membro titular de cadeira da Academia Paulista de Magistrados e da Academia Paulista de Direito. Membro da INSOL International e do International Insolvency Institute. Autor de livros e artigos publicados no Brasil e no exterior.

Fabiana Solano é formada pela PUC/SP e tem LLM pela faculdade de Direito de Stanford - EUA. É sócia do Felsberg Advogados desde 2011. Foi foreign associate na área de insolvência do White & Case em Miami, onde atuou em processos de insolvência norte-americanos (Chapter 15) envolvendo empresas brasileiras. Atua na representação de devedores, credores e investidores em reestruturações privadas de dívidas e em processos de recuperação judicial, extrajudicial e falências. Em mais de 20 anos de atuação, participou dos casos mais relevantes de insolvência do país desde a entrada em vigor da lei 11.101/05, alguns deles vencedores ou finalistas do prêmio Deal of the Year da publicação Latin Lawyer.

João de Oliveira Rodrigues Filho é juiz de Direito da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da capital de São Paulo. Especialista em Direito Empresarial pela EPM. Professor do curso de pós-graduação em Falências e Recuperação Judicial da FADISP. Palestrante e conferencista.

Marcelo Sacramone é doutor e mestre em Direito Comercial pela USP. Professor de Direito Empresarial da PUC/SP. Juiz de Direito em exercício na 2ª vara de Falência e Recuperação Judicial de SP.

Márcio Souza Guimarães é professor doutor Visitante da Université Paris-Panthéon-Assas. Doutorado pela Université Toulouse 1 Capitole. Max Schmidheiny professor da Universidade de Saint Gallen. Foi membro do MP/RJ por 19 anos. Sócio de Márcio Guimarães/TWK Advogados, Árbitro e parecerista.

Otávio Joaquim Rodrigues Filho é mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Membro do IBR. Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo

Paulo Penalva Santos advogado no Rio de Janeiro e São Paulo. Procurador aposentado do Estado do Rio de Janeiro.