Texto de autoria de Carlos Alberto Garbi
A lei 11.101/2005 introduziu no Direito brasileiro um novo modelo para o tratamento da crise e da insolvência das sociedades empresariais. Influenciada pelo direito estrangeiro, especialmente norte-americano, criou uma solução negociada entre o devedor e credores para superar a crise econômica-financeira da empresa, deslocando o centro decisório do Juiz para os credores. Só tivemos oportunidade de testar a lei a partir da crise econômica de 2008, e mais intensamente, a partir de 2014, quando vivemos o início de uma crise política com reflexos na economia. O resultado não foi satisfatório quanto à recuperação das empresas. É sabido que a maior parte das empresas que recorreu ao processo judicial de recuperação não voltou ao mercado nas condições anteriores e muitas sucumbiram.
Há vários problemas com a lei em vigor, o que motivou um movimento para a sua reforma. Nesse sentido algumas tentativas foram feitas. As mais recentes são registradas no Governo Temer e agora, com a crise pandêmica, pelo Projeto emergencial de autoria do Deputado Hugo Leal (Proj. 1.297/2020), já aprovado na Câmara dos Deputados e em tramitação no Senado Federal.
Um dos pontos que tem sido objeto desse movimento de reforma diz respeito ao tratamento da crise e da insolvência no âmbito dos grupos de sociedades. Não temos no direito brasileiro uma disciplina societária adequada para os grupos de sociedades, fenômeno cada vez mais presente na vida das sociedades empresárias e que oferece, pela sua complexidade, muitos desafios aos juristas. A lei brasileira (lei 6.404/76) tentou regular os grupos de sociedades formalmente constituídos, ignorando os grupos de fato, que são a imensa maioria. E não há nenhum regime legal para os grupos de sociedades na crise e na insolvência, não obstante o trabalho construtivo da jurisprudência. O legislador brasileiro ainda não olhou com atenção para o fenômeno plurissocietário e a jurisprudência pouco se ocupa de distinguir as possíveis formas de coligação societária, incluindo a maior parte delas, sem critério maior, em uma noção abrangente de grupo econômico, o que tem causado distorções.
A preocupação com a crise das empresas e a insolvência tem ocupado nos últimos anos a atenção da maior parte dos países ocidentais, verificando-se um intenso movimento de renovação legislativa nos países do civil law. Recentemente a União Europeia aprovou a Diretiva 2019/1023, de 20 de junho de 2019, sobre os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas, e que altera a Diretiva (UE) 2017/1132 (sobre reestruturação e insolvência).
Pouco antes, entrou em vigor na Europa o Regulamento 2015/838, de 20 de maio de 2015, relativo aos processos de insolvência, que dedicou parte da sua atenção aos grupos de sociedades, estabelecendo medidas de coordenação dos processos de insolvência envolvendo sociedades em relação de grupo. Não foi além da “coordenação” dos processos, cuja autonomia e separação foram mantidas.
Em razão das normativas do Parlamento Europeu e do Conselho da União Europeia, os países-membros procuraram adaptar a sua legislação. A Itália aprovou recentemente, pelo decreto legislativo 14, de 12 de maio de 2019, por força da Lei Delegada nº 155, de 19 de outubro de 2017, o CODICE DELLA CRISI DI IMPRESA E DELL'INSOLVENZA ("CODICE"), que regula de forma inovadora, no direito italiano, a insolvência no âmbito do grupo de sociedades, e que deverá entrar em vigor em 1 de setembro de 20211.
O propósito desta breve abordagem é apontar as medidas legislativas adotadas neste novo diploma, que poderiam ser aproveitadas no Direito brasileiro, restringindo-se o exame ao tratamento da crise e da insolvência nos grupos de sociedades. E o interesse pela reforma italiana não está apenas no fato de que é o mais moderno diploma europeu sobre o tratamento da insolvência, mas está igualmente na influência que o direito comercial italiano e europeu tem sobre o Direito brasileiro.
A reforma italiana, no que diz respeito ao grupo de sociedades, seguiu duas diretrizes: de um lado, se permitiu o tratamento unitário dos diversos procedimentos concursais das sociedades integrantes do grupo, que no CODICE são a concordata preventiva, o acordo de reestruturação de dívidas e a liquidação judicial, quando esta unidade for vantajosa para os credores; de outro lado, se reforçou a necessidade de manter distintas as massas ativas e passivas das sociedades em relação de grupo, não obstante a gestão unitária do procedimento2.
Um primeiro ponto a chamar a atenção diz respeito à adoção, para efeito do tratamento de insolvência, de uma definição flexível de grupo de sociedades, que pode acomodar as mais variadas formas em que se apresenta esse fenômeno, fundada na ideia, que tem prevalecido, de que a relação de grupo se caracteriza pela existência de direção e coordenação unitárias, seja o grupo participativo ou contratual, paritário ou não3. Essa flexibilidade considera, corretamente, as múltiplas formas de organização dos grupos de sociedades, que não podem ser reduzidas a um só tipo ou modelo para o tratamento da insolvência.
Já tivemos oportunidade de defender, em investigação que fizemos em sede acadêmica, ainda não publicada, que o conceito de grupo de sociedades para efeito de tratamento da insolvência pode ser mais abrangente, e menos rígido, do que ele é no campo societário. Esse foi o caminho seguido pela Lei italiana. Há uma tendência de ver nas Leis de Insolvência uma espécie de microssistema que labora conceitos próprios e flexíveis. O legislador moderno, brasileiro e europeu, sempre cuidou nos últimos anos da insolvência em diplomas separados, o que sugere e autoriza modelar noções adequadas ao melhor tratamento da matéria em favor de uma relativa autonomia que vem sendo reconhecida ao Direito de Insolvência. É o que, de certa forma, tem se verificado em recentes decisões dos Tribunais no Brasil com o alargamento da definição de empresário para admitir o uso da recuperação judicial em favor de produtores rurais e associações, o que se tem feito por um esforço de interpretação. Cabe registrar que o Projeto de Lei do Deputado Hugo Leal referido amplia ainda mais esta definição para alcançar os "agentes econômicos".
Outro ponto relevante se encontra na possibilidade de apresentação de um plano unitário de recuperação ou de liquidação, bem como na possibilidade de apresentação de planos paralelos, mas interferentes ou interdependentes, para cada uma das sociedades em relação de grupo, assegurando-se, em ambos os casos, a plena autonomia e separação patrimonial entre as sociedades. Essa possibilidade, admitida pela Lei Italiana, não encontra paralelo no direito brasileiro, não obstante contar com o apoio de boa doutrina. Os projetos de modificação da lei em vigor no Brasil contemplam essa possibilidade.
Há um aspecto substancial na relação de grupo que não tem sido levado em consideração no tratamento das questões relacionadas à crise das empresas, e especialmente nos processos de recuperação judicial, que é justamente a característica mais distintiva da relação de grupo, qual seja a existência de uma direção unitária. Evidentemente, não se pode esperar para o superamento da crise do grupo que as decisões não sejam tomadas de forma unitária. Separar as sociedades do grupo ou afastar as sociedades dos seus controladores, e os respectivos planos de recuperação, é medida que contraria a própria existência e a natureza do grupo de sociedades e que se revela desfuncional no tratamento da crise, sem prejuízo da separação das massas patrimoniais societárias. Em outras palavras, não se reproduz na fase de crise ou insolvência a mesma unidade de direção que caracteriza o grupo de sociedades e, muito frequentemente, se nega a possibilidade do Grupo governar a crise no processo de recuperação, impondo-se soluções separadas para cada uma das sociedades. Impede-se, quase sempre, que a sociedade controladora ou holding possa continuar a exercer o poder de direção que sempre existiu no grupo de sociedades, e quando ela própria se vê envolvida, também se nega a ela a prerrogativa de dirigir outras sociedades do grupo em favor do superamento da crise. Em favor de uma interpretação voltada ao modelo de sociedade singular, se anula a possibilidade de uma solução global da crise para o grupo.
A flexibilidade que se defende para a definição de grupo é também a flexibilidade que se deve dotar a Lei para o tratamento da crise no âmbito dos grupos de sociedades, permitindo-se a solução unitária para o grupo – processo unitário, com o máximo de coordenação compatível com a separação das massas patrimoniais. Também deve ser aberta a possibilidade de levar somente uma das sociedades do grupo ao processo de recuperação, quando essa solução representar medida de maior eficiência e resultado. O CODICE atuou nesse sentido.
Na segunda parte deste artigo vamos abordar a questão do controlador e da holding nos processos de recuperação e liquidação, bem como da consolidação processual e substancial e respectivos procedimentos.
*Carlos Alberto Garbi é pós-Doutor pela Universidade de Coimbra. Doutor e mestre Pela PUC/SP. Professor da FMU/SP. Advogado, consultor, parecerista e desembargador aposentado do TJ/SP.
__________
1 O Decreto-legge n. 23/2020 prorrogou a entrada em vigor do novo CODICE de agosto de 2020 a 1° de setembro de 2021, em razão da pandemia. O novo CODICE está sujeito a modificações corretivas e integrativas até 14 de agosto de 2022 (Legge 8 marzo 2019, n. 20 (Gazz. Uff. 20 marzo 2019, n. 67). A Lei italiana utilizou de boa técnica de aprimoramento legislativo e determinou a entrada em vigor de poucos dispositivos, de menor relevância, em até trinta dias, e deixou um período maior, de dois anos, para a vigência por inteiro do novo regime, prevendo modificações legislativas de correção e integração.
2 Giuseppe Fauceglia. Il Nuovo Diritto Della Crisi e Dell’Insolvenza. Torino : G. Giappichelli Editore, 2019, p.213-214.
3 O CODICE definiu o grupo de sociedades no seu art. 2.1. “h”: «gruppo di imprese»: l'insieme dele societa', delle imprese e degli enti, escluso lo Stato, che, ai sensi degli articoli 2497 e 2545-septies del codice civile, sono sottoposti alla direzione e coordinamento di una societa', di um ente o di una persona fisica, sulla base di un vincolo partecipativo o di um contratto; a tal fine si presume, salvo prova contraria, che: 1) l'attivita' di direzione e coordinamento di societa' sia esercitata dalla societa' o ente tenuto al consolidamento dei loro bilanci; 2) siano sottoposte alla direzione e coordinamento di una societa' o ente le societa' controllate, direttamente o indirettamente, o sottoposte a controllo congiunto, rispetto alla societa' o ente che esercita l'attivita' di direzione e coordinamento.