Insolvência em foco

Conflito entre Juízo da execução fiscal e Juízo da recuperação judicial de competência do STJ: competência interna da Segunda Seção

Conflito entre Juízo da execução fiscal e Juízo da recuperação judicial de competência do STJ: competência interna da Segunda Seção.

31/3/2020

Texto de autoria de Paulo Penalva Santos

O legislador foi bem feliz ao indicar no artigo 47 lei 11.101/2005 o objetivo da recuperação judicial, que é o de "viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica".

A regra, como leciona o Ministro Luis Felipe Salomão, "é buscar salvar a empresa, desde que economicamente viável1.

O objetivo indicado no artigo 47 da lei 11.101/2005 coincide com fundamentos, objetivos fundamentais e princípios que têm sede constitucional, como os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, os objetivos de erradicar a pobreza reduzir desigualdades sociais, enunciados nos artigos 1º e 3º da Constituição da República Federativa do Brasil2 e reafirmados no artigo 170 como princípios da atividade econômica3.

Em razão do status constitucional de que goza o princípio da preservação da empresa, o Poder Judiciário, na solução das muitas controvérsias surgidas na aplicação da lei 11.101/2005, no âmbito do processo de recuperação judicial, passou a sopesar os valores envolvidos em cada caso concreto, levando em consideração os objetivos da recuperação judicial, prestigiando, assim, o interesse público primário do Estado, que não é coincidente com o interesse arrecadatório da Fazenda Pública, conforme a doutrina de Renato Alessi4, e, entre nós adotada, dentre outros por Celso Antonio Bandeira de Mello5.

Exemplo de caso de aparente antinomia de normas da lei 11.101/2005, resolvido no âmbito da recuperação judicial e pelo juízo da recuperação judicial é o do cabimento ou não do prosseguimento de execução fiscal no stay period ou após a aprovação do plano de recuperação judicial, já que o crédito tributário não está sujeito à recuperação judicial6.

No âmbito da recuperação judicial, os juízos, dando-se por competentes para decidir sobre a matéria, tem resolvido a questão no sentido de que a suspensão das ações e execuções contra o devedor em recuperação judicial não alcançam as execuções fiscais que tenham por objeto a cobrança de crédito tributário. Contudo, os atos de constrição de bens e direitos da empresa em recuperação judicial dependem de prévia autorização do juízo da recuperação judicial, porque tais atos podem inviabilizar o processo de soerguimento, antes da concessão da recuperação judicial, ou afetar o plano, comprometendo a capacidade do devedor de cumpri-lo.

Por sua vez, os Juízos onde se processam execuções fiscais, também dando-se por competentes, passaram a resolver a mesma questão mediante interpretação literal do § 7º do artigo 6º da lei 11.101/20057, para atender a justa expectativa das Fazendas Públicas de arrecadar os seus tributos, em detrimento da não menos justa expectativa da empresa em dificuldade de superar a crise, manter-se viva no mercado, e, assim, cumprir a sua função social, com geradora de empregos, riquezas e tributos que ordinariamente revertem aos cofres públicos.

Essa diversidade de orientações e entendimentos tem motivado o ajuizamento de conflitos positivos de competência, medida processual regulada nos artigos 951 a 959 do Código de Processo Civil ("CPC"), cabível se verificado conflito positivo ou negativo de competência, conforme definidos nos incisos I e II do artigo 66 do CPC.

O Superior Tribunal de Justiça ("STJ") tem competência originária para julgar os conflitos de competência entre quaisquer tribunais ou entre tribunal e juiz a ele não vinculado, nos termos do artigo 105, I, "d", da CRFB, ressalvada a competência originária do Supremo Tribunal Federal, para os casos de conflito que envolva Tribunais superiores.

Não foram e não são poucos os conflitos positivos de competência ajuizados perante o STJ, com fundamento na existência de conflito positivo de competência entre o juízo de execução fiscal em curso perante a Justiça Federal e o juízo da recuperação judicial, vinculado à Justiça Estadual comum, em razão da prática, pelo juízo da execução fiscal de atos de contrição de bens do patrimônio de empresa em recuperação judicial, capazes de inviabilizar o processo de soerguimento.

No STJ, esses conflitos de competência vinham sendo distribuídos ora à Primeira Seção, ora à Segunda Seção, competentes, respectivamente, nos termos do Regimento Interno (RISTJ), para o julgamento dos feitos relativos a matérias de direito público e de matérias de direito privado, incluindo falência e recuperação judicial.

Ambas as Turmas se davam por competentes para o julgamento do conflito de competência e, além da diversidade de entendimentos quanto à competência interna, instaurou-se divergência na solução mérito do conflito de competência.

Com efeito, a jurisprudência da Primeira Turma do STJ, interpretando literalmente o § 7º do artigo 6º da lei 11.101/2005, orientou-se no sentido de que os efeitos da recuperação judicial não alcançam os créditos tributários, razão pela qual não havia obstáculo ao prosseguimento da execução fiscal, com a prática, pelo juízo da execução de atos de constrição de bens do patrimônio da empresa em recuperação judicial.

Já a Segunda Turma do STJ, prestigiando o princípio da preservação da empresa, que, como visto, tem status constitucional, orientou-se no sentido de que as execuções fiscais não são suspensas, mas a competência para a prática de atos de constrição de bens do patrimônio da empresa recuperanda é do juízo da recuperação judicial.

Em razão dessa diversidade de entendimentos, no CC 120.432-SP, o Relator, Ministro Antônio Carlos Ferreira propôs e a Segunda Seção, por unanimidade, acolheu questão de ordem e afetou à Corte Especial do STJ a definição do órgão fracionário competente para julgamento de conflitos de competência entre juízos da recuperação judicial e juízos da execução fiscal, vinculados a tribunais diversos.

No julgamento da questão de ordem no do CC 120.432-SP, a Corte Especial, por unanimidade, decidiu competir à Segunda Seção o julgamento de conflito de competência entre o Juízo da recuperação judicial e o Juízo da execução fiscal em curso perante a Justiça Federal.

No julgamento do mérito, a Segunda Seção, por unanimidade, no julgamento do Agravo Regimental no CC 120.432-SP, manteve a orientação que vinha sendo adotada no sentido de que compete ao juízo da recuperação judicial a prática de atos de constrição contra bens do patrimônio da recuperanda:

"PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO CONFLITO DE COMPETÊNCIA. EMPRESA EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PROCESSOS DE EXECUÇÃO FISCAL E DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. QUESTÃO DE ORDEM. COMPETÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO. EDIÇÃO DA LEI N. 13.043, DE 13.11.2014. PARCELAMENTO DE CRÉDITOS DE EMPRESA EM RECUPERAÇÃO. JURISPRUDÊNCIA MANTIDA. 1. Compete à SEGUNDA SEÇÃO processar e julgar conflito de competência entre o juízo da recuperação judicial e o da execução fiscal, seja pelo critério da especialidade, seja pela necessidade de evitar julgamentos díspares e a consequente insegurança jurídica (Questão de Ordem apreciada nestes autos pela CORTE ESPECIAL em 19.9.2012). 2. O deferimento da recuperação judicial não suspende a execução fiscal, mas os atos de constrição e de alienação de bens sujeitos à recuperação submetem-se ao juízo universal. 3. A edição da Lei n. 13.043, de 13.11.2014, por si, não implica modificação da jurisprudência desta Segunda Seção a respeito da competência do juízo da recuperação para apreciar atos executórios contra o patrimônio da empresa. 4. No caso concreto, destaca-se ademais que o deferimento da recuperação judicial e a aprovação do correspondente plano são anteriores à vigência da Lei n. 13.043/2014. 5. Agravo regimental a que se nega provimento.” (AgRg no CONFLITO DE COMPETÊNCIA Nº 120.432 – SP, Relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Segunda Seção, DJE 19/12/2016).

A Corte Especial do STJ revisitou o tema da competência para julgamento de conflitos entre juízos vinculados a tribunais diversos, no caso de um dos juízos suscitados ser juízo em que se processa execução fiscal e o outro o juízo recuperacional, no CC 153.998 – DF, suscitado pelo Ministro Mauro Campbell Marques, com o objetivo de limitar a competência da Segunda Seção, como exposto na decisão que suscitou o conflito:

"Em suma, faço tais considerações para demonstrar a necessidade de que a questão seja novamente enfrentada no âmbito desta Corte Especial, evidentemente num caso concreto que isso seja possível, para excluir da competência da Segunda Seção os casos em que a discussão restringe-se ao prosseguimento da execução fiscal (ainda que com penhora determinada), sem pronunciamento do juízo da recuperação judicial acerca da incompatibilidade da medida constritiva com o plano de recuperação judicial. Nessa hipótese, há apenas um incidente no âmbito da execução fiscal, que atrai a competência da Primeira Seção.

Por outro lado, havendo pronunciamento do juízo da recuperação judicial (no sentido de que a penhora inviabiliza o plano de recuperação judicial), impõe-se reconhecer a existência de incidente no âmbito da recuperação judicial, o que atrai a competência da Segunda Seção".

No julgamento do CC 153.998 – DF, concluído no dia 18 de dezembro de 2019, a Corte Especial do STJ, por maioria, decidiu que compete à Segunda Seção o julgamento dos conflitos juízo onde se processa a recuperação judicial e o juízo onde se processa a execução fiscal, nos termos o voto da Ministra Nancy Andrighi.

Em seu voto, a Ministra Nancy Andrighi identificou a controvérsia, registrando que o tema assume contornos mais complexos, porque a execução fiscal atrai a competência da Primeira Seção, enquanto a recuperaçao judicial atrai a competência da Segunda Seção.

No voto, fazendo ponderação dos valores envolvidos, com ênfase no sistema estabelecido na lei 11.101/2005, e ao objetivo indicado no seu artigo 47, de proteger a empresa em dificuldades, de “viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores”, a Ministra Nancy Andrighi reafirmou a posição da Corte Especial, no sentido da competência da Segunda Seção, para qualquer caso de conflito de competência entre juízo recuperacional e juízo da execução fiscal, com base no critério da especialidade e para evitar julgados díspares.

A confirmação da orientação antes adotada no julgamento da Questão de Ordem no CC 120.432-SP, pela Corte Especial do STJ representa grande contribuição para a segurança jurídica e estabilidade das relações sociais, contribuindo, inclusive para viabilizar a busca de soluções consentâneas com a realidade no que respeita a questão do equacionamento do passivo tributário.

__________

1 Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência, Editor Gen/Forense, 4ª Edição, pág. 24.

2 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

(.....)

IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

II – garantir o desenvolvimento nacional.

III – erradicar a pobreza e marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

(....)

3 Art. 170 – A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

III – função social da propriedade;

(....)

VII – redução das desigualdades regionais e sociais;

VIII – busca do pleno emprego;


4 ALESSI, Renato. Sistema istituzionale del diritto amministrativo italiano, 2ª ed. Milano, Giuffrè, 1958, pp 179-178.

5 "Outrossim, a noção de interesse público, tal como expusemos, impede que se incida no equívoco muito grave de supor que o interesse público é exclusivamente um interesse do Estado, engano, este, que faz ressalvar fácil e naturalmente para a concepção simplista e perigosa de identifica-lo com quaisquer interesses da entidade que representa o todo (isto é, o Estado e demais pessoas de Direito Público interno).

Uma vez reconhecido que os interesses públicos correspondem à dimensão pública dos interesses individuais, ou seja, que consistem no plexo dos interesses dos indivíduos enquanto partícipes da Sociedade (entificada juridicamente no Estado), nisto incluído o depósito intertemporal destes mesmos interesses, põe-se a nu a circunstância de que não existe coincidência necessária entre interesse público e interesse do Estado e demais pessoas de Direito Público." (Destaque do original). (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo, 32ª ed. São Paulo, Malheiros, 2014, pp 65-66)

6 CTN, art. 187 – A cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento.

7 Art. 6º - A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário.

(.....)

§ 7º - As execuções de natureza fiscal não são suspensas pelo deferimento da recuperação judicial, ressalvada a concessão de parcelamento nos termos do Código Tributário Nacional e da legislação ordinária específica.

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Alberto Camiña Moreira é mestre e doutor pela PUC/SP. Advogado.

Alexandre Demetrius Pereira é mestre e doutor em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo. Pós-graduado (especialização) em Higiene Ocupacional pela Escola Politécnica da USP e em Gestão de Negócios pela Fundação Getúlio Vargas. Graduado em Ciências Contábeis pela FEA-USP. Foi professor de Direito Empresarial na Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, professor de pós-graduação no curso de Engenharia de Segurança do Trabalho do Programa de Educação Continuada (PECE) da Escola Politécnica da USP e professor de pós-graduação de matemática financeira, contabilidade e análise de demonstrações no Insper - Instituto de Ensino e Pesquisa.

Daniel Carnio Costa é juiz titular da 1ª vara de Falências e Recuperações Judiciais de SP. Graduado em Direito pela USP, mestre pela FADISP e doutor pela PUC/SP. Mestre em Direito Comparado pela Samford University/EUA. Pós-doutorando pela Universidade de Paris 1 - Panthéon/Sorbonne. Professor de Direito Empresarial da PUC/SP. Professor convidado da California Western School of Law. Membro do Grupo de Trabalho do Ministério da Fazenda para reforma da Lei de Recuperação de Empresas e Falências. Membro titular de cadeira da Academia Paulista de Magistrados e da Academia Paulista de Direito. Membro da INSOL International e do International Insolvency Institute. Autor de livros e artigos publicados no Brasil e no exterior.

Fabiana Solano é formada pela PUC/SP e tem LLM pela faculdade de Direito de Stanford - EUA. É sócia do Felsberg Advogados desde 2011. Foi foreign associate na área de insolvência do White & Case em Miami, onde atuou em processos de insolvência norte-americanos (Chapter 15) envolvendo empresas brasileiras. Atua na representação de devedores, credores e investidores em reestruturações privadas de dívidas e em processos de recuperação judicial, extrajudicial e falências. Em mais de 20 anos de atuação, participou dos casos mais relevantes de insolvência do país desde a entrada em vigor da lei 11.101/05, alguns deles vencedores ou finalistas do prêmio Deal of the Year da publicação Latin Lawyer.

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Otávio Joaquim Rodrigues Filho é mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Membro do IBR. Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo

Paulo Penalva Santos advogado no Rio de Janeiro e São Paulo. Procurador aposentado do Estado do Rio de Janeiro.