Texto de autoria de Marcelo Barbosa Sacramone
A Lei de Recuperação de Empresas e Falência procurou criar ambiente institucional para que o empresário devedor pudesse negociar com seus credores uma solução para superar a crise econômico-financeira que acometia sua atividade.
Para que essa negociação coletiva fosse incentivada, a LREF estabeleceu o período de suspensão na recuperação judicial. Deferido o processamento da recuperação judicial, todas as ações e execuções em face do empresário em recuperação judicial são suspensas pelo prazo de 180 dias como forma de evitar as constrições de ativos e os comportamentos oportunistas de retirada de bens indispensáveis à restruturação da atividade do devedor e que, inclusive, poderiam comprometer a satisfação da coletividade dos próprios credores.
Controverte a jurisprudência, entretanto, se essa determinação de suspensão é aplicável às ações de despejo e se a locatária em recuperação judicial, mesmo inadimplente com os alugueis, continuaria a poder usar e gozar da coisa locada.
Para parte dos precedentes1, apenas o crédito seria sujeito à recuperação judicial, mas não o direito de retomada do bem pelo locador. O inadimplemento das obrigações anteriores à distribuição do pedido, ainda que submetesse o crédito à recuperação judicial, não impediria o direito de o credor exercer o direito de propriedade sobre o bem e despejar o locatário em crise. Para essa corrente, em virtude da proteção ao direito de propriedade, a ação não seria suspensa, tampouco o mandado de despejo dela decorrente.
Não há, contudo, qualquer exceção na LREF quanto a essas ações.
Pela regra geral do art. 6º da lei, são suspensas todas as ações e execuções em face do devedor justamente para se permitir a este negociar com seus credores a melhor solução para a superação da crise econômico-financeira que acomete sua atividade. Não são suspensas apenas as ações e execuções referentes a créditos não sujeitos à recuperação judicial, pois, com o crédito não poderá ser novado pelo instituto, não se justifica a suspensão do direito de o credor perseguir a satisfação de seu crédito. Tampouco são suspensas as ações ilíquidas, assim tratadas aquelas que não permitem a imediata constrição de bens do devedor, com prejuízo a todos, seja pela falta de certeza quanto à obrigação devida, seja pela falta de certeza em relação ao montante.
A ação de despejo figura exatamente nesse contexto. A simples apuração do montante dos alugueis ou encargos devidos, ou mesmo a apuração de eventuais outras violações contratuais, não exigirá sua suspensão em razão do deferimento do processamento da recuperação judicial.
Ainda que o montante possa depender apenas de cálculo aritmético e permita a imediata execução, a cobrança dos alugueis cumulativa com pedido de rescisão da locação e despejo exigiria sentença condenatória e mandamental após a apuração do quantum debeatur e do an debeatur. Dessa forma, não poderia ser caracterizada como demanda por quantia líquida para fins de suspensão, eis que não permitiria a imediata constrição dos ativos, embora decerto as medidas constritivas liminares fiquem suspensas pela exigência de preservação da empresa durante o stay period, desde que fundamentadas em obrigações não satisfeitas anteriores à recuperação judicial.
O prosseguimento regular da ação de despejo não significa, todavia, que o mandado de despejo não poderá ser suspenso. Após o reconhecimento do descumprimento contratual da locação, com a procedência do pedido de despejo e por ocasião da expedição do mandado, que conterá o prazo de 30 dias para a desocupação voluntária, a ação poderá ser suspensa.
Fundamentado o pedido de despejo em inadimplemento anterior à distribuição do pedido, o crédito se submete à recuperação judicial e será novado nos termos do plano aprovado. Pela novação determinada pela LREF, ainda que condicional ao cumprimento das obrigações previstas para satisfação no período de dois anos após a concessão, a obrigação anterior não satisfeita deixa de existir e será substituída pela obrigação prevista no plano e que contou com a anuência dos credores.
Concedida a recuperação judicial e novadas as obrigações, assim, não há mais inadimplemento do devedor ou fundamento para o despejo pelo locador. Por consequência, não se justifica permitir ao credor manter o comportamento individual de retomar o bem em detrimento da negociação coletiva e que permitiria a superação da crise em benefício de todos.
Referida posição não prejudica seu direito de propriedade. O próprio titular do direito vinculou-se voluntariamente à obrigação de conservar a posse e o gozo do locatário a menos que houvesse o descumprimento do contrato. Pela possibilidade de concessão da recuperação judicial, a novação substitui a obrigação descumprida por outra prevista no plano e aprovada pela coletividade2.
Ressalte-se que poderá ocorrer a suspensão do mandado de despejo, e não deverá. A suspensão do mandado de despejo apenas ocorrerá se decorrente de descumprimento de obrigação existente antes da distribuição do pedido de recuperação judicial, haja vista que os créditos dela decorrentes poderão ser novados pelo plano de recuperação.
Caso o despejo seja motivado pelo término do período de locação, rescisão do contrato de trabalho ou descumprimento de obrigações existentes apenas após a distribuição do pedido de recuperação judicial, como referidas obrigações não se sujeitam à recuperação judicial, não haveria razão para submeter esses credores à suspensão. A recuperação judicial não obrigaria à manutenção do contrato de locação caso seu prazo já tenha se findado ou mesmo a manutenção do contrato de trabalho que dele seja fundamento, de modo que a retomada do bem não se submeteria a qualquer suspensão, mesmo que o bem locado fosse imprescindível ao desenvolvimento da atividade empresarial.
Desta forma, apenas com a diferenciação entre a data das obrigações descumpridas e entre a apuração do descumprimento e o efetivo mandado de despejo é que se poderá compreender a regra de suspensão das ações de despejo diante da recuperação judicial dos locatários.
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1 STJ, Segunda Seção, AgRg no CC 133.612-AL, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 14.10.2015; STJ, Segunda Seção, CC 122.440/SP, Rel. Min. Raul Araújo, dje 15.10.2014; TJSP, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, AI 2200533-14.2018, Rel. Des. Maurício Pessoa, j. 10/12/2018; TJSP, 26ª Câmara de Direito Privado, AI 2157100-91.2017, Rel. Des. Antonio Nascimento, j. 26.04.2018; TJSP, 27ª Câmara de Direito Privado, AI 2053598-44.2014, Rel. Des. Gilberto Leme, j. 29.04.2014; TJSP, 29ª Câmara de Direito Privado, AI 0343932-53.2009, Rel. Des. Luís de Carvalho, j. 03.02.2010.
2 Nesse sentido: TJSP, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, AI 2043646-02.2018, Rel. Des. Azuma Nishi, j. 23.05.2018; TJSP, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, AI 2044673-54.2017, Rel. Des. Cesar Ciampolini, j. 13/9/2017.