Insolvência em foco

O fim da recuperação judicial

O fim da recuperação judicial.

24/9/2019


Texto de autoria de Marcelo Barbosa Sacramone

Diversos projetos de lei têm sido apresentados ao Congresso Nacional para alterar a Lei de Insolvência Brasileira.

Com o entendimento de que os interesses dos credores não eram os únicos a serem afetados por uma crise do empresário devedor e de que a concordata era instrumento insuficiente ao empresário para a superação da crise, a lei 11.101 foi em 2005 promulgada. Dentre seus objetivos, orientava-se pela preservação da atividade empresarial, pois, nas palavras do senador Ramez Tebet, autor do relatório apresentado à Comissão de Assuntos Econômicos à época sobre o Projeto, "gera riqueza econômica e cria emprego e renda, contribuindo para o crescimento e desenvolvimento social do país".

Essa preservação da atividade empresarial, em benefício de todos os envolvidos, foi estruturada por meio de dois sistemas: a recuperação e a falência.

Diante de uma crise econômico-financeira temporária e reversível, permitiu-se ao empresário devedor, por meio do instituto da recuperação, negociar com os seus credores uma solução comum para a superação da crise que acometia a atividade. A preservação da atividade empresarial viável sob a condução do empresário, orientada por um plano de recuperação judicial negociado com os credores, poderia resultar na maior satisfação de todos os interessados.

A postergação injustificada de uma liquidação forçada de uma empresa economicamente inviável sob a condução do devedor, contudo, apenas protelaria sua falência e consumiria os recursos escassos. Inviável a condução da empresa pelo devedor, a decretação da quebra, com a imediata alienação dos bens, permitiria a preservação da empresa por meio da arrematação dos bens do falido por outros empresários, que passariam a desenvolver a atividade de forma mais eficiente e em benefício de toda a coletividade.

Passados 14 anos de vigência da lei, todavia, tais objetivos não têm sido satisfatoriamente alcançados. Em estudo realizado pelo Núcleo de Estudo e Pesquisa sobre Insolvência da PUC/SP (NEPI), em parceria com a Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ), foi constatado que, embora 72,1% dos planos de recuperação judicial tenham sido aprovados pela Assembleia Geral de Credores, apenas 18,2% dos processos de recuperação judicial efetivamente conseguiram se encerrar sem a decretação da falência pelo cumprimento ao menos das obrigações vencidas nos dois primeiros anos, ainda que o plano mediano de pagamento das obrigações quirografárias seja de aproximadamente 10 anos.

Se a recuperação judicial aparenta não permitir a concessão da recuperação apenas aos empresários com atividades economicamente viáveis, a falência também não tem sido eficiente a permitir a maximização do valor dos ativos e da satisfação dos interesses dos credores. Conforme estudo de Jupetipe, Martins, Mário e Carvalho, os processos de falência duraram, em média, 9,2 anos, com alienação de bens que resultou em perda de valor de 46,84% e ressarcimento aos credores de apenas 12,4% do montante devido.

A lei 11.101/05, pelos resultados objetivamente colhidos até então, decerto, precisa de pontuais ajustes.

Dentre as últimas alterações propostas ao Projeto de lei 6.229/2005, várias são pertinentes a tornar mais eficiente o procedimento de insolvência. Destacam-se as alterações no procedimento de verificação de crédito, com a limitação temporal às habilitações retardatárias e a formação do quadro geral de credores provisório; a desburocratização das publicações das convocações; a proteção ao investidor; a célere liquidação dos bens no procedimento falimentar, com determinação de prazo ao administrador judicial e previsão de valor mínimo escalonado de alienação.

A inserção da proposta de alteração ao art. 56 da lei 11.101/05, à revelia da comunidade acadêmica e dos aplicadores, contudo, poderá colocar tudo a perder.

Nos termos do dispositivo da proposta, diante da rejeição do plano de recuperação apresentado pelo devedor, permite-se a apresentação de plano alternativo pelos próprios credores, com a isenção das garantias pessoais prestadas pelos sócios em relação aos créditos a serem novados. A despeito dessa possibilidade de propositura, não foram inseridos qualquer parâmetros a exigirem que o empresário devedor requeira as medidas de reestruturação, nem foi permitido que os credores, ainda que possam apresentar plano alternativo, possam requerer o ingresso em recuperação do devedor em crise.

A proposta de alteração da lei, sem maiores estruturações ou quaisquer análises, pode criar incentivo perverso. Ao permitir que o plano de recuperação judicial seja apresentado pelos próprios credores, sem que possam também requerer a recuperação do devedor ou sem que haja parâmetros para que esse seja compulsoriamente submetido ao procedimento, desincentiva a negociação entre devedor e credor na busca de uma solução comum. Mais que isso, incentiva os credores a rejeitarem quaisquer propostas apresentadas pelo devedor como condição para apresentarem o próprio plano de recuperação judicial a ser por eles próprios aprovado.

A circunstância de a propositura do plano alternativo implicar a isenção das garantias pessoais prestadas pelos sócios em relação aos créditos a serem novados não freia o comportamento estratégico dos credores. Apenas fará com que a maioria dos credores, de modo ainda mais oportunista, aprove plano de recuperação judicial por ela proposto em detrimento dos próprios credores minoritários e detentores das garantias pessoais.

Nesse cenário provável, com o risco de afastamento da condução de sua própria empresa e a possibilidade de confisco dos seus ativos pelos próprios credores à sua revelia e sem que haja absolutamente qualquer parâmetro que obrigue o empresário devedor a requerer as medidas de restruturação ou a elas se sujeitar, o comportamento esperado do empresário devedor será o de mitigar seu risco e maximizar sua utilidade. Mesmo em crise econômico-financeira, o empresário devedor simplesmente optará por não ingressar com o pedido de recuperação.

Sem processo, as diversas alterações benéficas propostas pelo projeto de lei 6.229/2005 não terão onde ser aplicadas e, pior, o empresário brasileiro continuará sem ter um instituto adequado para que possa superar a crise financeira que acomete sua atividade e que permitiria o desenvolvimento econômico nacional.

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Alberto Camiña Moreira é mestre e doutor pela PUC/SP. Advogado.

Alexandre Demetrius Pereira é mestre e doutor em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo. Pós-graduado (especialização) em Higiene Ocupacional pela Escola Politécnica da USP e em Gestão de Negócios pela Fundação Getúlio Vargas. Graduado em Ciências Contábeis pela FEA-USP. Foi professor de Direito Empresarial na Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, professor de pós-graduação no curso de Engenharia de Segurança do Trabalho do Programa de Educação Continuada (PECE) da Escola Politécnica da USP e professor de pós-graduação de matemática financeira, contabilidade e análise de demonstrações no Insper - Instituto de Ensino e Pesquisa.

Daniel Carnio Costa é juiz titular da 1ª vara de Falências e Recuperações Judiciais de SP. Graduado em Direito pela USP, mestre pela FADISP e doutor pela PUC/SP. Mestre em Direito Comparado pela Samford University/EUA. Pós-doutorando pela Universidade de Paris 1 - Panthéon/Sorbonne. Professor de Direito Empresarial da PUC/SP. Professor convidado da California Western School of Law. Membro do Grupo de Trabalho do Ministério da Fazenda para reforma da Lei de Recuperação de Empresas e Falências. Membro titular de cadeira da Academia Paulista de Magistrados e da Academia Paulista de Direito. Membro da INSOL International e do International Insolvency Institute. Autor de livros e artigos publicados no Brasil e no exterior.

Fabiana Solano é formada pela PUC/SP e tem LLM pela faculdade de Direito de Stanford - EUA. É sócia do Felsberg Advogados desde 2011. Foi foreign associate na área de insolvência do White & Case em Miami, onde atuou em processos de insolvência norte-americanos (Chapter 15) envolvendo empresas brasileiras. Atua na representação de devedores, credores e investidores em reestruturações privadas de dívidas e em processos de recuperação judicial, extrajudicial e falências. Em mais de 20 anos de atuação, participou dos casos mais relevantes de insolvência do país desde a entrada em vigor da lei 11.101/05, alguns deles vencedores ou finalistas do prêmio Deal of the Year da publicação Latin Lawyer.

João de Oliveira Rodrigues Filho é juiz de Direito da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da capital de São Paulo. Especialista em Direito Empresarial pela EPM. Professor do curso de pós-graduação em Falências e Recuperação Judicial da FADISP. Palestrante e conferencista.

Marcelo Sacramone é doutor e mestre em Direito Comercial pela USP. Professor de Direito Empresarial da PUC/SP. Juiz de Direito em exercício na 2ª vara de Falência e Recuperação Judicial de SP.

Márcio Souza Guimarães é professor doutor Visitante da Université Paris-Panthéon-Assas. Doutorado pela Université Toulouse 1 Capitole. Max Schmidheiny professor da Universidade de Saint Gallen. Foi membro do MP/RJ por 19 anos. Sócio de Márcio Guimarães/TWK Advogados, Árbitro e parecerista.

Otávio Joaquim Rodrigues Filho é mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Membro do IBR. Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo

Paulo Penalva Santos advogado no Rio de Janeiro e São Paulo. Procurador aposentado do Estado do Rio de Janeiro.