Insolvência em foco

A possibilidade de prorrogação compulsória de contrato essencial para o soerguimento da empresa em recuperação judicial

A possibilidade de prorrogação compulsória de contrato essencial para o soerguimento da empresa em recuperação judicial.

16/7/2019


Texto de autoria de Paulo Penalva Santos

Sumário: 1. Introdução – 2. A interpretação do contrato conforme a real intenção das partes. A relação contratual por prazo indeterminado – 3. O procedimento para rescisão de contratos à luz do art. 473 do Código Civil – 4. O prazo razoável para a prorrogação e o momento para a decisão da questão – 5. Conclusão.

1. Introdução

O presente artigo tem por objetivo examinar a possibilidade de prorrogação compulsória de contrato essencial para a empresa em recuperação judicial.

A prática empresarial demonstra que, dependendo das circunstâncias, ao celebrar um contrato uma sociedade empresária pode ficar em situação de dependência econômica em relação à outra parte contratante. E isso é mais acentuado em contratos pactuados com cláusula de exclusividade, o que é frequente em contratos de distribuição. Assim sendo, a rescisão do contrato pode comprometer relevantemente as finanças da sociedade, se não houver tempo suficiente para que esta amortize os investimentos realizados para a execução do contrato.

Também é comum encontrar, nessa relação obrigacional, contratos celebrados formalmente por prazo determinado, mas sendo renovados por vários anos consecutivos. Nesse caso, a não renovação do contrato interromperia fatalmente as atividades da sociedade em recuperação, tornando insuperável a sua crise econômico-financeira.

Deste modo, questiona-se: pode, por exemplo, a sociedade em recuperação judicial requerer judicialmente a prorrogação desse contrato de distribuição? Caso positivo, qual o período razoável para tal prorrogação?

2. A interpretação do contrato conforme a real intenção das partes. a relação contratual por prazo indeterminado

Para investigar se a relação contratual das partes era por prazo determinado ou por prazo indeterminado, faz-se necessária a utilização da boa-fé, tanto na sua função interpretativa quanto na sua função limitadora do exercício de direitos abusivos. Isto é, se a conduta das partes indica que a relação era por prazo indeterminado ou não.

Importa destacar que nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem, de acordo com o artigo 112 do Código Civil. Deste modo, a existência de cláusula expressa não é suficiente para concluirmos que os pactos tinham prazo certo, devendo ser investigada a vontade das partes ao celebrar o ajuste.

Deste modo, é necessário identificar no caso concreto indícios de que a relação entre as partes funcionava por tempo indeterminado. Por exemplo, sucessivas renovações ao longo de muitos anos, continuidade da prestação de serviço após o fim do período contratual e a subsequente celebração de novo instrumento com efeitos retroativos, inclusão de novos serviços, prorrogação do contrato por período exíguo etc.

Em muitos casos, a celebração de diversos contratos em caráter sucessivo mascara a intenção de colocar em vantagem a parte mais forte na relação contratual, pois esta pode terminar a relação contratual a qualquer tempo. Para a outra parte, ainda que também possua tal direito, a situação de dependência econômica decorrente do contrato desaconselha a rescisão, pois ficaria numa situação econômica difícil.

Deste modo, deve-se privilegiar a real intenção das partes, ainda que esta venha não a corresponder à literalidade do contrato. A busca da vontade real deve ocorrer em relação a todas as disposições do pacto, incluindo o prazo do contrato e a sua abrangência.

3. O procedimento para rescisão de contratos à luz do art. 473 do Código Civil

O Código Civil de 2002 estabelece restrições ao poder de livre denúncia de contratos. Entretanto, discute-se em doutrina se o parágrafo único do artigo 473 do Código Civil seria aplicável somente aos contratos por prazo indeterminado ou se este poderia também ser aplicado aos contratos por prazo certo.

A melhor corrente doutrinária entende que o dispositivo legal também poderia ser utilizado nos contratos por prazo determinado, em algumas hipóteses.

No entanto, se dada a natureza do contrato, uma das partes houver feito investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos, conforme disposto no art. 473 do Código Civil. Nesta segunda hipótese, a lei é clara em condicionar os efeitos da denúncia à concessão de prazo compatível com os investimentos. A ratio leges é permitir que o contratante amortize os investimentos realizados ao longo do tempo. Antes da concessão desse prazo, o contrato não pode ser rescindido unilateralmente.

Na maioria das vezes, o abuso de direito ocorre quando o contratante exerce a denúncia do contrato com aviso prévio ínfimo, principalmente quando sua relação contratual com o contratado tenha durado longos anos, gerando confiança recíproca e maior integração entre ambas empresas. Também é comum a ruptura do contrato sem a concessão de nenhum aviso prévio, contrariando o disposto no parágrafo único do art. 473 Código Civil. Nessas hipóteses, o rompimento abrupto do contrato se revela abusivo e, assim, ilícito, como o STJ já teve a oportunidade de se manifestar1.

A importância do aviso prévio razoável na denúncia em contratos, como por exemplo, de distribuição se justifica, pois o distribuidor precisa de tempo para amortizar os custos de seus investimentos, principalmente quando o contrato possui cláusula de exclusividade. Sem a concessão deste prazo, o revendedor não poderia se organizar para liquidar o seu estoque e dispensar os seus empregados ou, se quiser continuar no mesmo ramo de atividade, se reinserir no mercado mediante a distribuição de produtos de outro fabricante.

Na hipótese de o fabricante tentar rescindir abruptamente o contrato, cabe ao distribuidor requerer em juízo (i) a prorrogação do contrato, a fim de que lhe seja garantido prazo para amortizar os seus investimentos ou (ii) indenização por perdas e danos. Destas duas possibilidades, deve-se, quando possível, prestigiar a execução específica da obrigação (a concessão de mais prazo contratual) ao invés da conversão da obrigação em perdas e danos. No direito das obrigações, a conversão em perdas e danos é sempre medida excepcional, quando a obrigação principal não puder ser satisfeita.

O STJ tem precedentes no sentido da possibilidade de o Poder Judiciário impedir a resolução do contrato antes de decorrido prazo razoável para a amortização dos investimentos feitos2.

Nesse contexto, a lei 11.101/2005 dispõe, no art. 47, que "a recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica". Assim, a recuperação judicial interessa não apenas à empresa em crise, mas aos credores, aos empregados (que manterão os seus empregados), ao fisco e à coletividade como um todo.

Portanto, todos devem cooperar para o soerguimento da empresa, inclusive eventualmente sacrificando seus interesses individuais em prol do interesse coletivo.

O art. 47 da LRF é um norte interpretativo para guiar a operacionalidade da recuperação judicial. Na interpretação dos preceitos legais, deve-se, sempre que possível, prestigiar a solução que melhor garanta a recuperação da empresa. A solução que não apenas prestigia, mas, em verdade, viabiliza o soerguimento empresarial, é a prorrogação dos contratos.

Contudo, esta prorrogação não pode ser eterna, sob pena de se violar a liberdade de contratar das partes. A prorrogação é temporária, estritamente pelo tempo necessário para que a parte amortize os seus investimentos.

4. O prazo razoável para a prorrogação e o momento para a decisão da questão

A lei não prevê quanto tempo é necessário para que os investimentos sejam amortizados. A análise desta questão depende, evidentemente, do exame da situação concreta das partes. De igual modo, em sendo o contrato provisoriamente prorrogado, a lei não determina em que momento o juiz deve se manifestar em definitivo sobre a matéria, inclusive com a definição do prazo final da prorrogação compulsória.

Não havendo previsão específica em relação ao momento em que o juiz deve se pronunciar definitivamente acerca da questão, nos parece razoável que isto ocorra logo após a assembleia de credores que aprecie o plano de recuperação judicial.

Havendo a rejeição do plano de recuperação judicial, a falência será decretada. De acordo com o art. 117 da LRF, "os contratos bilaterais não se resolvem pela falência e podem ser cumpridos pelo administrador judicial se o cumprimento reduzir ou evitar o aumento do passivo da massa falida ou for necessário à manutenção e preservação de seus ativos, mediante autorização do comitê". Assim, após a rejeição do plano e a decretação da falência, o administrador judicial e o comitê devem ser ouvidos para que se avalie a conveniência, ou não, de se resolver os contratos. Feito isso, o juiz deve se pronunciar, em definitivo, sobre a prorrogação dos contratos.

Havendo a aprovação do plano de recuperação judicial, seja com ou sem modificações, deve o juiz decidir pela homologação do plano. É nesse momento que o magistrado deve se pronunciar, em definitivo, sobre até quando deve vigorar a prorrogação dos contratos, pois já estará clara a situação econômica da devedora e de que forma esta pretende superar a sua crise econômico-financeira.

Deste modo, embora não haja um momento específico previsto em lei para o pronunciamento judicial definitivo sobre a prorrogação dos contratos, nos parece razoável que isto ocorra após a assembleia de credores que aprecie a proposta de plano de recuperação judicial.

5. Conclusão

Em síntese, concluímos que sendo os contratos por prazo indeterminado e, em algumas hipóteses também por prazo determinado, caso tenham sido feitos investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos. A não concessão de prazo razoável é medida abusiva e faculta ao contratante ofendido o direito de requerer em juízo (i) a prorrogação do contrato, a fim de que lhe seja garantido prazo para amortizar os seus investimentos ou (ii) indenização por perdas e danos.

Verificado o preenchimento dos pressupostos legais acima, não só pode o Judiciário prorrogar compulsoriamente os contratos pelo prazo necessário para que os investimentos realizados possam ser amortizados, bem como é recomendável fazê-lo em vista do contexto fático-jurídico do caso concreto, não sendo eventual indenização por perdas e danos medida mais adequada para viabilizar o soerguimento das recuperandas.

Após a aprovação do plano de recuperação judicial deve o juiz decidir pela homologação do plano. É esse o momento oportuno para o magistrado se pronunciar, em definitivo, sobre até quando deve vigorar a prorrogação dos contratos, pois já estará clara a situação econômica da devedora e de que forma esta pretende superar a sua crise econômico-financeira. Deste modo, embora não haja um momento específico previsto em lei para o pronunciamento judicial definitivo sobre a prorrogação dos contratos, nos parece razoável que isto ocorra após a assembleia de credores que aprecie a proposta de plano de recuperação judicial.

__________

1 STJ, REsp 1.555.202/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, 4ª Turma, julgado em 13/12/2016, DJe de 16/03/2017.

2 "A regra deve ser tomada, por analogia, para solucionar litígios como o presente, onde uma das partes do contrato afirma, com plausibilidade, ter feito grande investimento e o Poder Judiciário não constata, em cognição sumária, prova de sua culpa a justificar a resolução imediata do negócio jurídico. Assim, a solução que melhor se amolda ao presente litígio é permitir a continuidade do negócio durante prazo razoável, para que as partes organizem o término de sua relação negocial. O prazo dá às partes a possibilidade de ampliar sua base de clientes, de fornecedores e de realizar as rescisões trabalhistas eventualmente necessárias" (REsp 972.436/BA, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, 3ª Turma, julgado em 17/03/2009, DJe de 12/6/2009 – grifo nosso).

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Alberto Camiña Moreira é mestre e doutor pela PUC/SP. Advogado.

Alexandre Demetrius Pereira é mestre e doutor em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo. Pós-graduado (especialização) em Higiene Ocupacional pela Escola Politécnica da USP e em Gestão de Negócios pela Fundação Getúlio Vargas. Graduado em Ciências Contábeis pela FEA-USP. Foi professor de Direito Empresarial na Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, professor de pós-graduação no curso de Engenharia de Segurança do Trabalho do Programa de Educação Continuada (PECE) da Escola Politécnica da USP e professor de pós-graduação de matemática financeira, contabilidade e análise de demonstrações no Insper - Instituto de Ensino e Pesquisa.

Daniel Carnio Costa é juiz titular da 1ª vara de Falências e Recuperações Judiciais de SP. Graduado em Direito pela USP, mestre pela FADISP e doutor pela PUC/SP. Mestre em Direito Comparado pela Samford University/EUA. Pós-doutorando pela Universidade de Paris 1 - Panthéon/Sorbonne. Professor de Direito Empresarial da PUC/SP. Professor convidado da California Western School of Law. Membro do Grupo de Trabalho do Ministério da Fazenda para reforma da Lei de Recuperação de Empresas e Falências. Membro titular de cadeira da Academia Paulista de Magistrados e da Academia Paulista de Direito. Membro da INSOL International e do International Insolvency Institute. Autor de livros e artigos publicados no Brasil e no exterior.

Fabiana Solano é formada pela PUC/SP e tem LLM pela faculdade de Direito de Stanford - EUA. É sócia do Felsberg Advogados desde 2011. Foi foreign associate na área de insolvência do White & Case em Miami, onde atuou em processos de insolvência norte-americanos (Chapter 15) envolvendo empresas brasileiras. Atua na representação de devedores, credores e investidores em reestruturações privadas de dívidas e em processos de recuperação judicial, extrajudicial e falências. Em mais de 20 anos de atuação, participou dos casos mais relevantes de insolvência do país desde a entrada em vigor da lei 11.101/05, alguns deles vencedores ou finalistas do prêmio Deal of the Year da publicação Latin Lawyer.

João de Oliveira Rodrigues Filho é juiz de Direito da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da capital de São Paulo. Especialista em Direito Empresarial pela EPM. Professor do curso de pós-graduação em Falências e Recuperação Judicial da FADISP. Palestrante e conferencista.

Marcelo Sacramone é doutor e mestre em Direito Comercial pela USP. Professor de Direito Empresarial da PUC/SP. Juiz de Direito em exercício na 2ª vara de Falência e Recuperação Judicial de SP.

Márcio Souza Guimarães é professor doutor Visitante da Université Paris-Panthéon-Assas. Doutorado pela Université Toulouse 1 Capitole. Max Schmidheiny professor da Universidade de Saint Gallen. Foi membro do MP/RJ por 19 anos. Sócio de Márcio Guimarães/TWK Advogados, Árbitro e parecerista.

Otávio Joaquim Rodrigues Filho é mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Membro do IBR. Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo

Paulo Penalva Santos advogado no Rio de Janeiro e São Paulo. Procurador aposentado do Estado do Rio de Janeiro.