Insolvência em foco

A objeção do credor na recuperação judicial da microempresa e empresa de pequeno porte

A objeção do credor na recuperação judicial da microempresa e empresa de pequeno porte.

4/6/2019


Texto de autoria de Alberto Camiña Moreira

A Constituição Federal determinou que à microempresa fosse instituído um tratamento favorecido (art. 179), visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei. A concretização constitucional desse objetivo veio com a emenda constitucional 42, que modificou o artigo 146 da Constituição Federal e outorgou à lei complementar competência para instituir a definição do tratamento diferenciado e favorecido às microempresas e empresas de pequeno porte, permitindo, inclusive, a instituição de regime único de arrecadação. A Lei Complementar 123/2006, por sua vez, em atenção ao comando constitucional, criou o chamado simples, com várias facilidades, especialmente de ordem fiscal.

Veja-se o grande esforço legislativo para se proporcionar à microempresa e empresa de pequeno porte a facilidade fiscal. A previsão do artigo 179 da Constituição Federal não era por si só suficiente para proporcionar vantagem para essas empresas. Houve necessidade de uma emenda constitucional e de uma lei complementar, instrumentos legislativos que exigem bastante apoio no Congresso Nacional, para que esses empresários fossem aquinhoados com um mecanismo fiscal adequado ou menos prejudicial.

No campo do direito da insolvência, a lei 11.101/05 também se preocupou com a microempresa e empresa de pequeno porte. Daí a previsão dos artigos 70 a 72. Esses dispositivos, na redação original da lei, eram bastante acanhados, pois (i) abrangiam somente o passivo quirografário e permitiam o (ii) pagamento em 36 parcelas mensais, iguais e sucessivas. A semelhança com a antiga concordata preventiva foi lembrada pela doutrina1. Exigiu-se, entretanto, o pagamento de correção monetária e juros de 12% ao ano, com carência de 180 dias2.

Na comparação com a prática do chamado plano geral para as empresas de médio e grande porte, essa previsão é bastante ruim para as pequenas empresas. Ao menos em São Paulo, há certa praxe de os planos preverem o pagamento de juros de 1% ao ano e atualização monetária pela TR, dada certa jurisprudência exigindo tais previsões nos planos de recuperação. Em outras palavras, a lei era prejudicial à pequena empresa, pois, em termos substanciais, exigia-lhe que suportasse mais encargos.

No âmbito processual, a lei 11.101/05, também com o fito de favorecer a pequena empresa, foi eliminada a convocação de assembleia-geral de credores. A esses assegurou-se o direito de apresentarem objeção ao plano de recuperação especial, "nos termos do art. 55 desta lei", conforme previsão do parágrafo único do artigo 72. Aparentemente, a objeção teria a mesma natureza, seja na recuperação de plano geral seja na recuperação de plano especial.

A objeção, na recuperação judicial com plano geral ou ordinário, tem a finalidade de propiciar a convocação da assembleia geral de credores. A objeção não é julgada pelo juiz, controvertendo a doutrina sobre a necessidade de ser motivada. A ausência de objeção implica aprovação tácita. A objeção acaba por representar um veículo que desencadeia o chamamento da assembleia geral de credores; trata-se de um mecanismo em que, na verdade, o credor pede mais diálogo, mais negociação com o devedor e tem em vista a assembleia de credores. Não se trata de efetiva resposta do credor ao plano, e, por isso, a objeção não assume caráter contestatório.

Pois bem. Na recuperação da microempresa e empresa de pequeno porte, não será convocada assembleia-geral de credores para deliberar sobre o plano (art. 72). Como a finalidade da objeção, no plano geral ou ordinário, é propiciar a convocação da assembleia-geral de credores, ato esse inexistente no processo de recuperação judicial da pequena empresa, tem-se que, evidentemente, a objeção se afasta do perfil que lhe dá a lei na disciplina da recuperação judicial do plano geral.

Qual a finalidade da objeção, então, e, principalmente, qual a amplitude da cognição judicial a respeito?

Dizia o parágrafo único do artigo 72 que o juiz julgará improcedente o pedido de recuperação judicial e decretará a falência do devedor se houver objeções de credores titulares de mais da metade dos créditos quirografários. A previsão legislativa criava perplexidade, e a doutrina já havia percebido o problema logo no início de vigência da lei, momento em que a recuperação da pequena empresa assemelhava-se à concordata preventiva.

Manoel Justino Bezerra Filho3 anotou "desvantagens para o pequeno empresário, pois, para os outros casos de recuperação judicial normal, se houver objeção dos credores, esta sempre poderá ser afastada pela assembleia geral". Para Carlos Henrique Abrão4, “há uma atecnia na redação da norma, uma vez que o decreto de improcedência exigirá um mínimo de segurança probatória, não se desejando que todo o poder emane dos credores e na intenção exclusiva deles de levar a empresa à quebra”. Fábio Ulhoa Coelho5 escreve que a objeção só pode versar sobre a adequação da proposta do devedor à lei, e que, diante da não convocação de assembleia-geral de credores, a aprovação ou rejeição do plano cabe exclusivamente ao juiz. Carlos Klein Zanini6 escreve que a interpretação literal do dispositivo levaria à falência caso houvesse objeção por mais da metade dos créditos sujeitos à recuperação. Ao rejeitar tal modo de interpretação, sugere o exame da “fundamentação empregada na objeção, de modo que não se venham a admitir objeções meramente caprichosas, ou deduzidas com o propósito de chantagear o devedor”.

Vê-se certa insatisfação doutrinária com a disposição legal. O que se pode dizer é que a objeção será, necessariamente, objeto de cognição judicial. Ela terá de ser apreciada pelo juiz, pois, diferentemente do plano geral, ela não serve para chamar a assembleia-geral de credores. A lei não aponta o objeto da objeção, como o fez, por exemplo, com a impugnação ao pedido de homologação do plano de recuperação extrajudicial (art. 164, § 3º).

Dada a limitação do plano de recuperação, na versão original da lei, o objeto da objeção, por certo, era, como escreve Fábio Ulhoa Coelho, a adequação da proposta à lei. Ainda aí, causa estranheza o seguinte ponto. Caso o plano tenha contemplado o pagamento em 36 parcelas, com juros e correção monetária, como mandava a lei, como o juiz poderia julgar a objeção apresentada por credores titulares de mais de metade dos créditos?

A prevalecer a objeção, a lei teria dado com uma mão e tirado com a outra, pois a objeção potestativamente suplantaria a recuperação ajuizada pelo devedor.

Ficaria sem sentido, então, a previsão do artigo 72 para objetar o plano de pagamento em 36 parcelas, como previa a lei originariamente. A adequação do plano à lei poderia ser controlada de ofício pelo juiz; aliás, para esse fim, a objeção sequer precisaria de quórum especial.

Ocorre que a lei mudou7, e, ainda na tentativa de beneficiar a pequena empresa, estabeleceu-se a possibilidade de abatimento do valor das dívidas (art. 71, II), além de admitir a submissão de dívidas outras que não a de natureza quirografária. Na redação do art. 71, I, o plano especial abrangerá todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos, excetuados os decorrentes de repasse de recursos oficiais, os fiscais e os previstos nos §§ 3º e 4º do art. 49.

Além do deságio, que já era corriqueiro, desde 2005, para a macroempresa, dilatou-se o âmbito dos credores submetidos. Antes limitado aos credores quirografários, agora o plano especial pode contemplar credores, basicamente, os credores trabalhistas e os credores com garantia real. Todavia, a lei não falou em classe de credores, nos moldes do artigo 41. A opção da lei foi a de remeter ao artigo 83 da Lei, que disciplina a ordem de pagamento dos credores na falência. A nova redação do parágrafo único do artigo 72 autoriza o julgamento de improcedência do plano especial se houver rejeição dos credores titulares de metade de qualquer uma das classes do art. 83, computados na forma do artigo 45.

Algumas dessas alterações são positivas, embora a referência ao artigo 83 da Lei 11.101/05 seja desastrosa8.

Não houve alteração do seguinte ponto. Apresentado o plano especial, não será convocada assembleia-geral de credores. Apesar de se prever o deságio, certamente a fonte das maiores controvérsias nos planos de recuperação judicial da macroempresa, não se previu nenhum espaço de negociação entre o devedor e os credores, e a negociação foi o grande mote para se alterar o regime de 1945. Certamente no afã de melhor aquinhoar a pequena empresa com a possibilidade de abatimento da dívida, não se apercebeu o legislador de que, correlatamente, precisaria instituir um mecanismo de diálogo entre os atores do processo. Se, para a hipótese de parcelamento automático, aos moldes da velha concordata, a objeção era e poderia ser limitada, ao prever outro meio de solução do passivo da empresa, a lei tinha de propiciar um instrumento apto a viabilizar a negociação.

Continua sem alteração, no que nos interessa, o parágrafo único do artigo 72, segundo o qual "o juiz também julgará improcedente o pedido de recuperação judicial e decretará a falência do devedor se houver objeções, nos termos do art. 55 desta Lei, de credores titulares de mais da metade dos créditos previstos no art. 83, computados na forma do art. 45, todos desta lei".

Não houve alteração do meio concedido ao credor nem alteração do quórum, embora tenha ocorrido nova disciplina sobre as classes. Permaneceu, portanto, a mesma objeção para a recuperação judicial assemelhada à concordata e para a recuperação judicial agora concebida como meio de reestruturação de dívida com a possibilidade de obtenção de abatimento do valor, com a seguinte observação. A limitação (sujeição somente dos quirografários) para o devedor implicava, correlatamente, uma limitação do teor da impugnação, que poderia versar sobre aspectos formais e sobre o parcelamento em si. A cognição judicial estava bastante limitada. Na medida em que se dilatou o âmbito dos meios de recuperação disponibilizados ao devedor ME ou EPP, que natureza ostenta a objeção do credor?

Enquanto a objeção do plano geral é mecanismo apto a gerar a convocação da assembleia geral de credores, a objeção do plano especial não permite a convocação de assembleia, que inexiste nessa sistemática. A objeção, insista-se, que papel exerce no processo de recuperação judicial da microempresa e da empresa de pequeno porte? Vale lembrar que o deságio previsto aproxima o plano especial do plano geral, em que os deságios são constantes.

A expressão financeira do deságio no âmbito do plano geral é objeto de negociação. Ressente-se de um espaço de negociação o processo de recuperação de microempresa.

Vamos a um exemplo. O plano de recuperação da microempresa prevê deságio de 10% e pagamento em 36 parcelas, com atualização pela Selic. A maioria dos credores objeta o plano, para dizer que se trata de perda exagerada, e que o devedor tem força para pagar sem o deságio.

Quais são os critérios pelos quais o juiz pode apreciar a objeção desse jaez?

A única previsão da lei é a de que a objeção pela maioria dos credores leva à derrota do plano. Mais. A prevalecer o entendimento jurisprudencial segundo o qual o juiz não examina o conteúdo econômico financeiro do plano de recuperação, vai prevalecer a vontade do credor, e o deságio, mínimo que seja, ou razoável, poderá ser impugnado por determinada classe, e com êxito.

Nessa circunstância, o juiz deve, cegamente, verificar a presença do quórum legal e decretar a falência ou deve examinar o conteúdo do plano de recuperação judicial e o seu contorno econômico, além de examinar, concomitantemente, o conteúdo da objeção?

Onde há negociação o juiz não deve intervir. Essa é a essência do entendimento jurisprudencial segundo o qual o juiz não examina o conteúdo econômico-financeiro do plano, exceto para controle de legalidade.

E onde a negociação está ausente, como na recuperação da pequena empresa? Haveria espaço para algo além do controle de legalidade? Quando se fala em ausência de negociação, fala-se em ausência de mecanismo processual apto a se chegar a esse momento. É claro que as partes podem, e devem negociar. Ocorre que para fins de interpretação e aplicação da lei, a lacuna relativa à falta de previsão de uma assembleia de credores ou de outra forma negociação ou, ainda de exame da manifestação do credor, leva à perplexidade que este texto procura acentuar.

A verdade é que o grande esforço legislativo que se viu com a modificação constitucional e com a lei complementar 114/2006 não se repetiu na disciplina da insolvência da microempresa. E ela é merecedora de melhor atenção por parte do legislador. Oxalá na reforma da lei a microempresa seja aquinhoada com uma disciplina legal que atenda ao mandamento constitucional do tratamento favorecido, pois a lei 11.101/05 não atende a esse desiderato, seja no aspecto substancial, seja no aspecto processual, em que impera a incerteza e, até, um rigor maior em desfavor da empresa de pequeno porte e da microempresa.

__________

1 Sergio Campinho, Falência e recuperação de empresa, 4ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 183. Para Hélia Marcia Gomes Pinheiro, A recuperação da microempresa e da empresa de pequeno porte, "é, na verdade, uma verdadeira concordata preventiva dilatória", in A Nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas, Coord. Paulo Penalva Santos. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 168.

2 Julio Kahan Mandel, Nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas Anotada. São Paulo:Saraiva, 2005, p. 144, fez “destaque negativo para a fixação de uma taxa de juro elevada, de 12%, remuneração em média maior do que aplicações em caderneta de poupança”.

3 Nova Lei de Recuperação e Falências Comentada, 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 185.

4 Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. Coord. de Paulo Fernando Campos Salles de Toledo e Carlos Henrique Abrão. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 186.

5 Comentários à Nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 186.

6 Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência, coord. Francisco Satiro e Antonio Moraes Pitombo. São Paulo: RT, 2006, p. 323.

7 Lei Complementar 147/2014 deu nova redação aos artigos 71 e 72 da lei 11.101/05.

8 Alguns dos problemas causados por esse aspecto são enfrentados por Marcelo Barbosa Sacramone, Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 297-298.

 

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Alberto Camiña Moreira é mestre e doutor pela PUC/SP. Advogado.

Alexandre Demetrius Pereira é mestre e doutor em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo. Pós-graduado (especialização) em Higiene Ocupacional pela Escola Politécnica da USP e em Gestão de Negócios pela Fundação Getúlio Vargas. Graduado em Ciências Contábeis pela FEA-USP. Foi professor de Direito Empresarial na Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, professor de pós-graduação no curso de Engenharia de Segurança do Trabalho do Programa de Educação Continuada (PECE) da Escola Politécnica da USP e professor de pós-graduação de matemática financeira, contabilidade e análise de demonstrações no Insper - Instituto de Ensino e Pesquisa.

Daniel Carnio Costa é juiz titular da 1ª vara de Falências e Recuperações Judiciais de SP. Graduado em Direito pela USP, mestre pela FADISP e doutor pela PUC/SP. Mestre em Direito Comparado pela Samford University/EUA. Pós-doutorando pela Universidade de Paris 1 - Panthéon/Sorbonne. Professor de Direito Empresarial da PUC/SP. Professor convidado da California Western School of Law. Membro do Grupo de Trabalho do Ministério da Fazenda para reforma da Lei de Recuperação de Empresas e Falências. Membro titular de cadeira da Academia Paulista de Magistrados e da Academia Paulista de Direito. Membro da INSOL International e do International Insolvency Institute. Autor de livros e artigos publicados no Brasil e no exterior.

Fabiana Solano é formada pela PUC/SP e tem LLM pela faculdade de Direito de Stanford - EUA. É sócia do Felsberg Advogados desde 2011. Foi foreign associate na área de insolvência do White & Case em Miami, onde atuou em processos de insolvência norte-americanos (Chapter 15) envolvendo empresas brasileiras. Atua na representação de devedores, credores e investidores em reestruturações privadas de dívidas e em processos de recuperação judicial, extrajudicial e falências. Em mais de 20 anos de atuação, participou dos casos mais relevantes de insolvência do país desde a entrada em vigor da lei 11.101/05, alguns deles vencedores ou finalistas do prêmio Deal of the Year da publicação Latin Lawyer.

João de Oliveira Rodrigues Filho é juiz de Direito da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da capital de São Paulo. Especialista em Direito Empresarial pela EPM. Professor do curso de pós-graduação em Falências e Recuperação Judicial da FADISP. Palestrante e conferencista.

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Márcio Souza Guimarães é professor doutor Visitante da Université Paris-Panthéon-Assas. Doutorado pela Université Toulouse 1 Capitole. Max Schmidheiny professor da Universidade de Saint Gallen. Foi membro do MP/RJ por 19 anos. Sócio de Márcio Guimarães/TWK Advogados, Árbitro e parecerista.

Otávio Joaquim Rodrigues Filho é mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Membro do IBR. Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo

Paulo Penalva Santos advogado no Rio de Janeiro e São Paulo. Procurador aposentado do Estado do Rio de Janeiro.