Insolvência em foco

A extensão da falência e o art. 82 – A da lei 11.101/05

A extensão da falência e o art. 82 – A da lei 11.101/05.

21/5/2019


Texto e autoria de Marcelo Barbosa Sacramone

A Medida Provisória 881, de 30 de abril de 2019, procurou instituir a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica e estabelecer garantias de livre mercado. Em sua exposição de motivos, justificaram-se suas imprescindíveis relevância e urgência pela exigência de criação de ambiente institucional de segurança jurídica aos empresários, condição que facilitaria o investimento e pela redução dos diversos custos de transação em benefício do desenvolvimento econômico nacional.

O art. 82-A, inserido na lei 11.101/05, a Lei de Recuperação de Empresas e Falência (LREF), contudo, se não devidamente interpretado, poderá vir em sentido diametralmente oposto ao objetivo pretendido pela Medida Provisória.

A extensão da falência da sociedade aos sócios é medida excepcionalíssima no Direito brasileiro. Pelo art. 81 da LREF, apenas nas hipóteses de sociedades tipicamente com sócios de responsabilidade ilimitada e solidária, a falência da sociedade será estendida aos seus sócios integrantes. A interpretação restritiva permitia a decretação apenas a sociedades com utilização diminuta na prática, como as sociedades em nome coletivo, as sociedades em comandita simples, quanto aos sócios comanditados, as sociedades em comandita por ações, quanto aos sócios diretores, e as sociedades em comum.

A restrição da extensão da quebra apenas aos sócios de responsabilidade ilimitada ocorria justamente para facilitar a proliferação de negócios jurídicos e o empreendedorismo. Ainda que empreender possa ser atividade arriscada, os diversos sócios eram incentivados a reciprocamente contribuir com bens ou serviços para o exercício da empresa por meio da constituição de sociedade que asseguraria a preservação de seus patrimônios individuais.

A sociedade limitada e a sociedade anônima, utilizadas em grande medida por essa razão, permitiriam aos sócios, na hipótese de sucesso do empreendimento, a partilha entre si dos resultados. No caso de insucesso da empresa, entretanto, com eventual decretação da falência da sociedade, a responsabilidade dos sócios quotistas seria restrita ao valor do capital social a ser integralizado e a dos acionistas ao valor das respectivas ações subscritas. Decretada a falência da sociedade, esses sócios de responsabilidade limitada poderiam livremente continuar a desempenhar atividade empresarial e não responderiam com seus bens pessoais para a satisfação das dívidas da sociedade, o que delimitava o risco do investimento individual.

O art. 82-A, todavia, subverte essa lógica. Pela sua redação, a extensão dos efeitos da falência passa a ser admitida quando estiverem presentes os requisitos da desconsideração da personalidade jurídica.

Pelo novo dispositivo inserido, ainda que os sócios possuam responsabilidade limitada pelas obrigações sociais, desde que tenham abusado da personalidade jurídica, seja por meio do desvio de finalidade ou por meio da confusão patrimonial, poderão ter a falência decretada. Por consequência, independentemente do prejuízo causado ou da solvência do sócio ou administrador, todos os seus ativos serão arrecadado e o produto de sua liquidação, juntamente com o produto da liquidação dos bens da sociedade, será utilizado para a satisfação de todos os credores, sejam eles da sociedade ou credores particulares do sócio falido.

Decerto a fraude e o abuso da pessoa jurídica devem ser coibidos. A extensão da falência aos sócios e administradores, contudo, não parece ser o melhor meio de fazê-lo.

Os atos ilícitos praticados pelos sócios de responsabilidade limitada, controladores e administradores da sociedade falida já eram disciplinados pela redação original do art. 82 da LREF, sem prejuízo dos diversos dispositivos societários, de que o art. 245 da lei 6.404/76 é mero exemplo. Mesmos nesses tipos societários em que a falência não poderia ser estendida originalmente aos sócios, tanto esses quanto os administradores poderiam ser pessoalmente responsáveis pelo cometimento de atos ilícitos que produzissem prejuízo à Massa.

A disciplina da responsabilização, sem extensão da falência, garantia segurança jurídica aos sócios e administradores, cujo ilícito poderia ser eventualmente reconhecido. Permitia-se o ressarcimento da Massa e dos credores indiretamente afetados pela redução do patrimônio social, mas com a segurança jurídica de que a constrição dos bens particulares seria realizada apenas nos limites dos prejuízos efetivamente causados.

A segurança também era preservada aos credores sociais. Com a responsabilização dos sócios e administradores ao ressarcimento do prejuízo causado, permitia-se apenas a constrição de ativos, mas não a inclusão concomitante do passivo particular do sócio. Desta forma, assegurava-se a busca dos ativos sem que houvesse a partilha do produto da liquidação do escasso ativo da sociedade falida com todos os demais credores particulares do sócio.

A conversão do art. 82-A em lei, assim, não apenas subverterá o sistema de insolvência vigente, como comprometerá os próprios objetivos de se aprimorar a segurança jurídica e de se facilitar o investimento e o desenvolvimento econômico nacional buscados pela própria Medida Provisória 881/2019.

 
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Alberto Camiña Moreira é mestre e doutor pela PUC/SP. Advogado.

Alexandre Demetrius Pereira é mestre e doutor em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo. Pós-graduado (especialização) em Higiene Ocupacional pela Escola Politécnica da USP e em Gestão de Negócios pela Fundação Getúlio Vargas. Graduado em Ciências Contábeis pela FEA-USP. Foi professor de Direito Empresarial na Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, professor de pós-graduação no curso de Engenharia de Segurança do Trabalho do Programa de Educação Continuada (PECE) da Escola Politécnica da USP e professor de pós-graduação de matemática financeira, contabilidade e análise de demonstrações no Insper - Instituto de Ensino e Pesquisa.

Daniel Carnio Costa é juiz titular da 1ª vara de Falências e Recuperações Judiciais de SP. Graduado em Direito pela USP, mestre pela FADISP e doutor pela PUC/SP. Mestre em Direito Comparado pela Samford University/EUA. Pós-doutorando pela Universidade de Paris 1 - Panthéon/Sorbonne. Professor de Direito Empresarial da PUC/SP. Professor convidado da California Western School of Law. Membro do Grupo de Trabalho do Ministério da Fazenda para reforma da Lei de Recuperação de Empresas e Falências. Membro titular de cadeira da Academia Paulista de Magistrados e da Academia Paulista de Direito. Membro da INSOL International e do International Insolvency Institute. Autor de livros e artigos publicados no Brasil e no exterior.

Fabiana Solano é formada pela PUC/SP e tem LLM pela faculdade de Direito de Stanford - EUA. É sócia do Felsberg Advogados desde 2011. Foi foreign associate na área de insolvência do White & Case em Miami, onde atuou em processos de insolvência norte-americanos (Chapter 15) envolvendo empresas brasileiras. Atua na representação de devedores, credores e investidores em reestruturações privadas de dívidas e em processos de recuperação judicial, extrajudicial e falências. Em mais de 20 anos de atuação, participou dos casos mais relevantes de insolvência do país desde a entrada em vigor da lei 11.101/05, alguns deles vencedores ou finalistas do prêmio Deal of the Year da publicação Latin Lawyer.

João de Oliveira Rodrigues Filho é juiz de Direito da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da capital de São Paulo. Especialista em Direito Empresarial pela EPM. Professor do curso de pós-graduação em Falências e Recuperação Judicial da FADISP. Palestrante e conferencista.

Marcelo Sacramone é doutor e mestre em Direito Comercial pela USP. Professor de Direito Empresarial da PUC/SP. Juiz de Direito em exercício na 2ª vara de Falência e Recuperação Judicial de SP.

Márcio Souza Guimarães é professor doutor Visitante da Université Paris-Panthéon-Assas. Doutorado pela Université Toulouse 1 Capitole. Max Schmidheiny professor da Universidade de Saint Gallen. Foi membro do MP/RJ por 19 anos. Sócio de Márcio Guimarães/TWK Advogados, Árbitro e parecerista.

Otávio Joaquim Rodrigues Filho é mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Membro do IBR. Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo

Paulo Penalva Santos advogado no Rio de Janeiro e São Paulo. Procurador aposentado do Estado do Rio de Janeiro.