Texto de autoria de Luiz Dellore e Carolina Campos Rizzato
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Contextualização do tema
A recuperação judicial (RJ) no Brasil é regida pela lei 11.101/05 e corresponde a um benefício legal colocado à disposição do empresário que enfrenta uma crise econômico-financeira de caráter superável. Trata-se, portanto, de um procedimento que auxilia na reorganização da empresa por meio da renegociação das suas dívidas, mediante um processo judicial perante o Poder Judiciário1.
Para que o objetivo de reorganizar a empresa seja atingido, o legislador oferece à empresa recuperanda algumas benesses, como por exemplo o denominado stay period, conforme disposto no art. 6° da lei 11.101/05.
No stay period, por 180 (cento e oitenta) dias haverá a suspensão das ações e execuções movidas contra a empresa recuperanda. A rigor, esse período não pode ser prorrogado em razão de proibição da própria lei, em seu art. 6°, §4°. Na prática, entretanto, a jurisprudência tem admitido a prorrogação em alguns casos2.
A contagem do stay period é feita em dias3, iniciando-se após a decisão que defere o processamento da recuperação judicial.
A concessão de um período em que há suspensão das ações e execuções movidas contra a empresa devedora tem como objetivo principal permitir que a empresa consiga reorganizar suas atividades, possibilitando um fôlego e evitando eventual constrição de bens que possa obstar o prosseguimento da recuperação judicial.
Assim, a premissa do stay é bastante clara, no sentido de permitir a sobrevivência da empresa até a aprovação do plano de recuperação. Entretanto, na prática forense surgem inúmeros debates acerca do stay, como por exemplo se é possível, ou não, a consolidação da propriedade de um bem garantido fiduciariamente durante o stay period.
É o que enfrentaremos neste artigo.
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Alienação fiduciária em garantia
A alienação fiduciária, prevista pelo art. 1.361 do Código Civil, é o direito real de garantia em que o devedor e proprietário do bem aliena a coisa ao credor com o intuito de garantir determinada dívida. Com a alienação, o devedor passa a ser depositário e possuidor direto do bem, enquanto o credor detém a posse indireta da coisa sob condição resolutiva (posse resolúvel).
Havendo adimplemento da obrigação assumida pelo devedor, o contrato de alienação fiduciária é resolvido e o devedor volta a ser proprietário do bem.
Porém, se houver inadimplemento da obrigação, o credor poderá reaver a posse direta do devedor, executando (excutindo) a sua garantia. Neste caso, haverá a consolidação da propriedade do bem dado em garantia em nome do fiduciante (credor).
Vale destacar que a consolidação da propriedade fiduciária pelo credor é ato anterior ao leilão para alienação do bem dado em garantia. Ademais, a consolidação da propriedade não significa, necessariamente e de forma imediata a perda da posse do bem pelo devedor.
2.1. Alienação fiduciária no âmbito das recuperações judiciais
A alienação fiduciária é amplamente utilizada no âmbito das recuperações judiciais, de modo que a lei 11.101/05 oferece condições especiais à esta modalidade de garantia real.
Isso porque a Lei de Recuperações Judiciais determina que os credores fiduciários são considerados extraconcursais, ou seja, não se submetem à RJ, nos termos do art. 49, §3°.
Assim, se o plano apresentado pela recuperanda dispõe que haverá deságio (desconto do valor realmente devido), esta característica não afetará os credores extaconcursais, que terão suas condições contratuais mantidas, recebendo exatamente o mesmo valor que foi acordado contratualmente. Além disso, os credores não sujeitos à recuperação judicial não precisam aguardar o trâmite do procedimento recuperacional, de modo que ocupar a posição de credor fiduciário é bastante conveniente, sob a perspectiva do credor, no âmbito de uma recuperação judicial.
No entanto, para que possa gozar dos benefícios conferidos à sua posição, o credor fiduciário deve cumprir alguns requisitos que lhe garantam a extraconcursalidade de seu crédito, como por exemplo a alienação fiduciária ser anterior ao pedido de recuperação4.
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A consolidação do bem alienado fiduciariamente DURANTE o stay period
Chega-se agora ao ponto central do tema: uma vez não realizado o pagamento do devedor, existindo garantia fiduciária (que é extraconcursal), é possível se iniciar a consolidação da propriedade durante o stay period? Ou é necessário aguardar os 180 dias para somente aí proceder-se à consolidação da propriedade?
Conforme já exposto, a consolidação da propriedade fiduciária é um dos passos na execução da garantia – mais precisamente, no caso de bem imóvel, é o ato em que o tabelião promove a averbação, na matrícula do imóvel, da consolidação da propriedade em nome do credor, em razão do inadimplemento da obrigação assumida pelo devedor.
Assim, a consolidação da propriedade fiduciária não implica imediatamente na perda da posse do bem pelo devedor. Isso porque, caso não haja pagamento ou qualquer forma de composição, após a consolidação haverá a alienação do bem em leilão (CC, art. 1.364) e consequente entrega da posse – eventualmente mediante o uso de medida judicial específica para isso.
Vale relembrar que o objetivo da concessão do prazo do stay é justamente permitir que a recuperanda tenha um fôlego para reorganizar suas atividades, evitando qualquer situação que obste o prosseguimento da recuperação judicial, como uma constrição patrimonial.
Assim, partindo do pressuposto de que a consolidação do bem não implica na perda imediata da posse pelo devedor, é possível concluir que não haveria óbice à consolidação durante o stay, pois isso não configura a tomada do bem dado em garantia.
Contudo, os Tribunais não analisam a questão apenas sob essa perspectiva. O TJSP, nas suas 2 Câmaras Especializadas em Direito Empresarial – e, portanto, com competência para analisar o tema – tem julgados no sentido de que não é possível haver a consolidação da propriedade fiduciária quando o imóvel em comento for considerado essencial à atividade da empresa.
Nesse sentido, inicialmente trazemos julgados da 1ª Câmara Reservada (grifos nossos):
"Agravo de instrumento. Recuperação judicial. Decisão que deferiu tutela de urgência para suspender a consolidação da propriedade de dois imóveis alienados fiduciariamente à agravante durante o stay period. Manutenção. Bens essenciais ao soerguimento das recuperandas. Unidades produtivas. Atividade agrícola. Art. 49, §3º, da lei nº 11.101/05. Circunstâncias do caso concreto que justificam a manutenção da decisão agravada. Recurso não provido". (TJSP; Agravo de Instrumento 2122353-81.2018.8.26.0000; Relator (a): Alexandre Lazzarini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Garça - 3ª Vara; Data do Julgamento: 05/09/2018; Data de Registro: 06/09/2018)
O Desembargador Relator entendeu pela inviabilidade da consolidação dos imóveis dados em garantia fiduciária, alegando, em síntese: (i) o caráter essencial dos imóveis na manutenção das atividades das recuperandas; (ii) que a consolidação poderia obstar a recuperação judicial, haja vista que, uma vez consolidada a propriedade, a posse poderia ser postulada pelo credor fiduciário ou pelo eventual arrematante, prejudicando assim a recuperanda; (iii) o prazo de stay period tem como objetivo a reorganização das empresas, podendo garantir a purgação da mora e a manutenção dos imóveis pelos devedores.
Nesse mesmo sentido, da mesma Câmara, trazendo outros argumentos, o seguinte acórdão (grifos nossos):
"A reintegração de posse é mera consequência da consolidação da propriedade e, na forma da lei 9.514/97, pode ser postulada tanto pelo credor fiduciário como pelo arrematante. Parece extremamente severo sustentar que a propriedade pode ser perdida durante o pedido de reorganização da empresa, preservando-se apenas a sua posse direta. Isso porque, passado o período de seis meses, a sorte do imóvel dado em garantia já estará selada. Ainda que a devedor fiduciante consiga reorganizar-se e reunir recursos para purgar a mora, isso não mais será possível, uma vez que a propriedade plena já estará em definitivo consolidada nas mãos da credora fiduciária. Razoável, portanto, em harmonia com a própria finalidade do stay period, se evite nesse meio tempo situação definitiva e irreversível de perda da propriedade, permitindo à devedora soerguer-se, purgar a mora e retomar o contrato".
(TJSP; Agravo de Instrumento 2135163-59.2016.8.26.0000; Relator (a): Francisco Loureiro; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Jaú - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 22/08/2018; Data de Registro: 22/08/2018)
De seu turno, se o imóvel dado em garantia fiduciária não for bem essencial, portanto, é possível prosseguir com a consolidação da propriedade sem qualquer restrição. É o que consta do seguinte julgado, da 2ª Câmara Reservada (grifamos):
"Agravo de instrumento – Decisão que rejeitou os pedidos de suspensão da consolidação/leilão de propriedade das garantias de alienação fiduciária dos imóveis – Elementos que indicam a extraconcursalidade do crédito discutido, sendo inaplicáveis os efeitos do "stay period" (Lei 11.101/05, art. 49, §3º) – Exceção de mencionado dispositivo que abrange apenas os "bens de capital essenciais", que não é o caso dos autos – Validade do procedimento de consolidação da propriedade dos imóveis alienados fiduciariamente – Observância da Lei nº 9.514/97 – Precedentes jurisprudenciais – Decisão mantida – Recurso desprovido."
(TJSP; Agravo de Instrumento 2059745-47.2018.8.26.0000; Relator (a): Maurício Pessoa; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Porto Ferreira - 1ª Vara; Data do Julgamento: 06/06/2018; Data de Registro: 06/06/2018)
Vale ressaltar, por fim, que até o presente momento não há acórdão do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema5.
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Conclusão.
Considerando o exposto, tendo em vista (i) a extraconcursalidade da garantia fiduciária e (ii) o fato de que a consolidação da propriedade, por si só, não importa em perda da posse do bem, parece-nos que não haveria qualquer óbice legal à consolidação da propriedade de qualquer imóvel durante o stay period.
Contudo, necessário consignar que a jurisprudência do TJSP, no momento, consagra o entendimento no sentido de não permitir a consolidação da propriedade fiduciária durante o stay period quando se tratar de imóvel essencial às atividades da recuperanda.
*Carolina Campos Rizzato é bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, aprovada no exame de Ordem. Ex-estagiária da Caixa Econômica Federal, na área de recuperação judicial.
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1 Para uma visão geral acerca do procedimento da RJ, vide o seguinte texto desta coluna.
2 Mas isso é assunto para outro texto.
3 Acerca de ser dias úteis ou corridos, a questão já foi enfrentada em coluna anterior, mas segue polêmica, sendo recomendável sempre verificar qual é o entendimento adotado pela vara em que tramita o processo.
4 Há uma série de debates a respeito dessa questão, como por exemplo se existe a necessidade de registro para que haja a extraconcursalidade, quando se está diante de bens móveis. A respeito, conferir.
5 Ainda que não haja decisão colegiada do STJ acerca do tema, existem algumas decisões monocráticas, como por exemplo a seguinte: "AGRAVO DE INSTRUMENTO - BUSCA E APREENSÃO - AGRAVADO EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL - CONTRATO DE CRÉDITO BANCÁRIO, COM GARANTIA FIDUCIÁRIA - BANCO CREDOR TITULAR DA POSIÇÃO DE PROPRIETÁRIO FIDUCIÁRIO NÃO SE SUJEITA AOS EFEITOS DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL - BEM EM GARANTIA ESSENCIAL À ATIVIDADE PRODUTIVA DA EMPRESA RECUPERANDA – PERMANÊNCIA NA POSSE DURANTE O PRAZO DE BLINDAGEM – INTERPRETAÇÃO DOS ARTS. 49, § 3°, E ART. 6°, § 4°, AMBOS DA LEI 11.101/05 – RECURSO DESPROVIDO. O credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, via de regra, não se sujeita aos efeitos da recuperação judicial, a teor do art. 49, § 3°, da Lei 11.101/05. Todavia, constatado que o bem dado em garantia ao banco credor é essencial à atividade produtiva da empresa recuperanda, deve permanecer na sua posse durante o prazo de blindagem. (Recurso Especial n° 1.790.086 – MT. Relator: Ministro Marco Buzzi. Publicado no DJE em 11/02/2019)". Vale aduzir que dessa decisão pode até se defender que é possível a consolidação durante o stay, sendo vedada apenas a perda da posse, na linha do que defendemos no texto. Mas necessário esperar algum julgado de Turma para efetivamente se verificar qual a posição do STJ.