Insolvência em foco

O negócio jurídico processual na recuperação judicial

O negócio jurídico processual na recuperação judicial.

31/7/2018


Texto de autoria de Paulo Furtado

Enquanto são discutidas as propostas de alteração da lei 11.101/2005, é possível implementar desde logo medidas adequadas ao aumento da eficiência do procedimento de recuperação judicial, utilizando-se dois instrumentos muito úteis, que são o negócio jurídico processual e o calendário processual.

Dispõe o art. 190 do novo Código de Processo Civil:

"Versando o processo sobre direitos que admitem autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.

Par. único - De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade".

Esse o teor do art. 191 do novo Código de Processo Civil:

"De comum acordo, o juiz e as partes podem fixar calendário para a prática dos atos processuais, quando for o caso.

Par. 1º. – O calendário vincula as partes e o juiz, e os prazos nele previstos somente serão modificados em casos excepcionais devidamente justificados.

Par. 2º. – Dispensa-se a intimação das partes para a prática do ato processual ou a realização de audiência cujas datas tiverem sido designadas no calendário".

O negócio jurídico processual: a) tem como fundamento o princípio da autonomia da vontade; b) será admitido quando se tratar de direitos passíveis de autocomposição; c) as partes sejam capazes e estejam em situação de equilíbrio; d) tem por finalidade tornar mais eficiente o procedimento. O calendário processual, que tem por objeto a disciplina das datas para a prática de atos processuais ou a fixação de datas de audiências, dispensa a intimação das partes.

O procedimento de recuperação judicial, por sua vez, tem por fundamento a preservação da empresa e por finalidade viabilizar a superação da crise por meio de uma solução negociada entre o devedor e seus credores. De acordo com o professor Francisco Satiro, esse processo judicial se justifica porque, diante da complexidade estrutural das atividades empresariais atuais e da multiplicidade de credores com interesses e objetivos no mais das vezes incompatíveis, a tarefa de negociação e composição de débitos, ou mesmo de restruturação de negócios, tende a ser inefetiva (Castro, Rodrigo Rocha Monteiro de; Warde Júnior, Walfrido Jorge; Guerreiro, Carolina dias Tavares (coord.). Direito Empresarial e Outros Estudos em Homenagem ao Professor José Alexandre Tavares Guerreiro. São Paulo: Quartier Latin, 2013, Capítulo 5, Autonomia dos Credores na Aprovação do Plano de Recuperação judicial; pp. 102/104).

Para que o processo de recuperação seja eficiente, o professor Eduardo Secchi Munhoz destaca que são necessárias certas medidas, adotadas pela lei 11.101/2005: a) a suspensão das ações e execuções contra o devedor, de modo a interromper a corrida individual dos credores, evitando a liquidação precipitada de bens integrantes do patrimônio do devedor; b) divisão dos credores em classes, a fim de assegurar que a vontade dos credores na recuperação seja manifestada de forma coerente com as características e prerrogativas contratuais de cada crédito, evitando-se, com isso, desvios de ordem hierárquica dos créditos; c) decisão por maioria, dentro de cada classe, para evitar situações de hold up, nas quais algum credor, por conta de uma situação particular, poderia, isoladamente e contra a vontade da maioria, impedir uma solução avaliada melhor para todos. (Cessão fiduciária de direitos de crédito e recuperação judicial de empresa. Revista do Advogado. AASP. Ano XXIX, nº 105, setembro de 2009, p. 115-128.).

Não há incompatibilidade entre o modelo de negociação para superação da crise (os planos normalmente modificam os direitos dos credores, alterando valores, prazos e condições de pagamento) e o modelo agora adotado para o direito processual (que admite negociação sobre forma dos atos processuais, fixação de prazos para a realização dos atos pelos sujeitos do processo e alteração de atos do procedimento).

O que não pode ser negociado pelas partes são apenas os atos essenciais do procedimento de recuperação judicial, como, por exemplo, a suspensão das ações e execuções individuais por 180 ("stay period"), que é fundamental para que os credores não destruam o valor da organização empresarial. Também a divisão de credores em classes e a deliberação por maioria são aspectos essenciais do procedimento de negociação, para que credores de hierarquia superior não sejam tratados de forma pior do que credores de hierarquia inferior, e para que uma minoria não impeça uma solução considerada mais satisfatória pela maioria dos credores de determinada classe.

Contudo, outros atos do procedimento e a forma de realização destes atos podem ser objeto de negócio jurídico processual. A título de exemplo:

a) devedor e credores podem pactuar a forma de manifestação da vontade dos credores a respeito do plano, estabelecendo o voto escrito e não em assembleia, desde que seja possível ao administrador judicial conferir a autenticidade do voto;

b) as partes podem ajustar nova modalidade de comunicação dos atos processuais, desde que sejam seguras, como, por exemplo, a publicação no endereço eletrônico do administrador judicial, eliminando-se as custosas publicações de editais;

c) é possível que as impugnações sejam processadas extrajudicialmente pelo administrador judicial que a impugnação integralmente processada seja protocolada em juízo para decisão, poupando-se o cartório de repetidos atos de comunicação;

d) podem ser ajustadas sessões de mediação, de modo a permitir que os interessados apresentem suas necessidades e a devedora proponha um plano para a superação da crise que atenda aos diferentes grupos de credores;

e) é viável a fixação de calendário processual, com o objetivo de trazer previsibilidade, celeridade e economia ao procedimento, ficando os credores cientes desde o início das datas em que os atos processuais serão praticados, incluindo a apresentação do plano e as datas de realização da assembleia geral de credores.

Credores e devedora ajustaram calendário e negócio jurídico processual, nos autos do processo 1056004-07.2018.8.26.0100, da 2ª vara de Falências e Recuperações Judiciais da Comarca de São Paulo. A assembleia foi realizada logo no início do procedimento, permitindo uma aproximação entre devedora e credores, mais abertas ao diálogo, criando-se a expectativa de que a solução consensual quanto ao processo é o primeiro passo para a elaboração de um plano de recuperação judicial equilibrado.

Também é possível a eliminação ou redução do prazo de fiscalização judicial, estabelecendo as partes que o processo será encerrado com a decisão de concessão da recuperação, exatamente como se dá na recuperação extrajudicial.

A permanência do devedor em estado de recuperação por dois anos gera vários entraves, quer sob o aspecto financeiro, quer sob o aspecto negocial. Além de gastos com assessores financeiros, advogados e pessoas que devem estar à disposição do administrador judicial para prestar informações sobre as atividades, o devedor tem restrição de acesso ao crédito, pois as instituições financeiras são obrigadas a adotar provisões mais conservadoras nas operações com os devedores em recuperação e os demais agentes econômicos sentem-se inseguros em contratar com quem está no regime de recuperação judicial.

Por outro lado, se os credores são reunidos para decidirem sobre o conteúdo do seu direito de crédito, não há razão para proibi-los de escolherem se querem ou não fiscalizar o devedor que está obrigado a satisfazer o crédito. Os credores podem optar por uma fiscalização extrajudicial, nomeando pessoa de sua confiança, com acesso à contabilidade e ao caixa da recuperanda. Tal forma de monitoramento das atividades do devedor poderá ser mais barata e menos burocrática, superando as vantagens da fiscalização pelo administrador judicial. E mesmo depois da sentença de encerramento da recuperação, os credores poderão requerer a falência ou a execução do título, em caso de descumprimento das obrigações previstas no plano.

Enfim, os negócios jurídicos processuais são plenamente compatíveis com o procedimento de recuperação judicial e podem contribuir para que ele se torne um instrumento mais eficiente para a superação da crise econômico-financeira do empresário.

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Colunistas

Alberto Camiña Moreira é mestre e doutor pela PUC/SP. Advogado.

Alexandre Demetrius Pereira é mestre e doutor em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo. Pós-graduado (especialização) em Higiene Ocupacional pela Escola Politécnica da USP e em Gestão de Negócios pela Fundação Getúlio Vargas. Graduado em Ciências Contábeis pela FEA-USP. Foi professor de Direito Empresarial na Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, professor de pós-graduação no curso de Engenharia de Segurança do Trabalho do Programa de Educação Continuada (PECE) da Escola Politécnica da USP e professor de pós-graduação de matemática financeira, contabilidade e análise de demonstrações no Insper - Instituto de Ensino e Pesquisa.

Daniel Carnio Costa é juiz titular da 1ª vara de Falências e Recuperações Judiciais de SP. Graduado em Direito pela USP, mestre pela FADISP e doutor pela PUC/SP. Mestre em Direito Comparado pela Samford University/EUA. Pós-doutorando pela Universidade de Paris 1 - Panthéon/Sorbonne. Professor de Direito Empresarial da PUC/SP. Professor convidado da California Western School of Law. Membro do Grupo de Trabalho do Ministério da Fazenda para reforma da Lei de Recuperação de Empresas e Falências. Membro titular de cadeira da Academia Paulista de Magistrados e da Academia Paulista de Direito. Membro da INSOL International e do International Insolvency Institute. Autor de livros e artigos publicados no Brasil e no exterior.

Fabiana Solano é formada pela PUC/SP e tem LLM pela faculdade de Direito de Stanford - EUA. É sócia do Felsberg Advogados desde 2011. Foi foreign associate na área de insolvência do White & Case em Miami, onde atuou em processos de insolvência norte-americanos (Chapter 15) envolvendo empresas brasileiras. Atua na representação de devedores, credores e investidores em reestruturações privadas de dívidas e em processos de recuperação judicial, extrajudicial e falências. Em mais de 20 anos de atuação, participou dos casos mais relevantes de insolvência do país desde a entrada em vigor da lei 11.101/05, alguns deles vencedores ou finalistas do prêmio Deal of the Year da publicação Latin Lawyer.

João de Oliveira Rodrigues Filho é juiz de Direito da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da capital de São Paulo. Especialista em Direito Empresarial pela EPM. Professor do curso de pós-graduação em Falências e Recuperação Judicial da FADISP. Palestrante e conferencista.

Marcelo Sacramone é doutor e mestre em Direito Comercial pela USP. Professor de Direito Empresarial da PUC/SP. Juiz de Direito em exercício na 2ª vara de Falência e Recuperação Judicial de SP.

Márcio Souza Guimarães é professor doutor Visitante da Université Paris-Panthéon-Assas. Doutorado pela Université Toulouse 1 Capitole. Max Schmidheiny professor da Universidade de Saint Gallen. Foi membro do MP/RJ por 19 anos. Sócio de Márcio Guimarães/TWK Advogados, Árbitro e parecerista.

Otávio Joaquim Rodrigues Filho é mestre e doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo. Membro do IBR. Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo

Paulo Penalva Santos advogado no Rio de Janeiro e São Paulo. Procurador aposentado do Estado do Rio de Janeiro.